16 de Setembro de 2023 Ysengrimus
YSENGRIMUS — Estas crónicas
do Colégio de l'Assomption cobrem os anos de 1970 a 1975, com algumas incursões
no final dos anos 60 (na escola primária), depois em 1992 (para o conventum de promoção)
e no século XXI (para as reuniões de antigos alunos, cerimónias de entrega de
prémios a professores reformados e amizades diversas). A escritora Marie-Andrée
Mongeau fala-nos de coisas que, na sua maioria, lhe aconteceram realmente.
Limita-se a enquadrar a dinâmica narrativa num universo semi-ficcional, em
torno de uma personagem chamada Liliane
Rancourt (nome fictício). Liliane é uma jovem de aspeto austero que usa
óculos. Ela lança um olhar sóbrio, interiormente intenso, desiludido, sardónico
e cáustico sobre o seu mundo social. O seu tratamento das questões escolares
deliciosamente amargas da sua juventude soa verdadeiro e limpo. A escrita é
muito precisamente realista, cultivando as características do diário, do
diálogo interior, da história imaginária e das memórias. O trabalho da autora
baseia-se no material que recolheu na sua juventude, cadernos, diários e
anotações diversas. A semelhança entre a génese desta obra e a do Mémoires d'une
jeune fille rangée, de Simone de Beauvoir (1908-1986) é
particularmente notável. Beauvoir escreveu o seu livro em 1958 (ano de
nascimento de Marie-Andrée Mongeau). A obra da filósofa francesa abrangeu uma
sequência da sua vida entre 1908 e 1937, um período de infância, adolescência e
início da idade adulta durante o qual tirou fotografias, recolheu notas,
manteve diários e escreveu cartas. A autora Beauvoir produziu a sua obra
acabada vinte a trinta anos após os acontecimentos que recorda, com base em
documentação contemporânea a esses acontecimentos. Marie-Andrée Mongeau, por
outro lado, escreve cinquenta anos após os acontecimentos que descreve, com
base em documentação que também é contemporânea dos acontecimentos que
descreve. Mongeau confidenciou-me que não tinha lido a obra de Simone de
Beauvoir e que não fazia ideia da dinâmica do seu processo de escrita. O que
temos aqui, portanto, é um fenómeno muito interessante de um processo de
engendramento paralelo, em ambos os autores. E, de facto, Beauvoir e Mongeau
não são apenas semelhantes na sua metodologia de escrita. Em muitos aspectos,
os seus temas e visão são os mesmos.
O programa de escrita de Liliane foi-se formando em plena infância, tal como o seu programa de vida. A frescura do seu tom e a jovialidade do seu tratamento estão já presentes, ainda que escassamente, na documentação de época de Marie-Andrée Mongeau. De facto, ela utiliza abertamente, e por vezes literalmente, os seus documentos antigos, citando-os habilmente e fazendo referências explícitas aos seus trabalhos anteriores. A rapariga da escola era perspicaz. Parece que, aos doze ou treze anos, já pensava em escrever ficção sobre os temas da sua juventude. O que temos aqui é a concretização de um exercício literário iniciado na infância e concluído hoje. Juntamente com Liliane, entramos na outra secção do cérebro da memória humana. Quase tudo neste livro se passa numa altura em que a co-educação só existia no Colégio de l'Assomption desde 1966. A nossa aventura universitária começou em 1970. Aritmética terrível e implacável. Só havia estudantes do sexo feminino neste estabelecimento privado há quatro anos quando Liliane chegou. E é evidente que as coisas ainda não estão bem encaminhadas quando se trata de respeitar a parte do universo social habitada por aquilo a que Madame de Beauvoir chamou o segundo sexo. A partir da ponta do óculo, o referido segundo sexo utiliza aqui a dinâmica de luta semiconsciente que era a sua, quotidiana, naquele tempo. A obra de Marie-Andrée Mongeau não é um exercício feminista no sentido explicitamente doutrinário do termo (embora...). Excepto que o feminismo comum escorre de todas as páginas. É perfeitamente delicioso e muito importante ter este tipo de documentação historiográfica sobre todos esses pequenos factos ultrapassados que nunca devem ser esquecidos.
E a Liliane faz-nos uma boa visita guiada. Começamos pelo quarto das raparigas. Situava-se por baixo da grande sala dos rapazes, que era aberta, arejada e luminosa, e tinha mesas de bilhar e de Mississipi. Como Jim Crow era uma escola para raparigas, a sala das raparigas nunca passava de um vestiário estreito, apenas com cacifos e espaço para mudar de roupa. A enfermaria, por outro lado, era um local onde as raparigas se podiam refugiar, sobretudo quando sentiam desconforto feminino, real ou imaginário. Dali emana toda uma cultura íntima, que Liliane evoca com brio. Também menciona um certo corredor cor-de-rosa. Era um espaço específico, com paredes cor-de-rosa pálido, onde os amantes se reuniam e, tanto pela sua cor como pelo seu sabor romântico, este famoso corredor fazia sonhar rapazes e raparigas de formas muito diferentes. O ginásio e a mezzanine eram as únicas áreas académicas que continuavam a ser estritamente segregadas. As raparigas iam para a educação física em horários separados dos rapazes. Mais uma vez, a câmara foca um mundo particular que Liliane nos ajuda a descobrir.
Boa aluna, Liliane é uma intelectual. Além disso, não tem as mesmas ideias que toda a gente. Por isso, vai atravessar os altos e baixos da sua vida à sua maneira e relatá-los no seu próprio tom. Sem revelar tudo, atrevemo-nos a dar alguns exemplos. A Liliane não tinha medo de apanhar um castigo disciplinar. Ia para a sala de estudo e fazia os trabalhos de casa, sem se sentir particularmente castigada ou envergonhada. A Liliane participava no jornal dos estudantes. Era muito activa, pois sentia o apelo das musas e já estava a trabalhar num romance sobre... o quotidiano de uma estudante. Recitais e composições eram obrigações a cumprir, com uma caligrafia cuidada. Escritora no sentido material e escritural do termo, e desenhadora, Liliane fala-nos detalhadamente do papel timbrado em relevo, dos lápis, das canetas e dos vários objectos finos utilizados na intimidade da caligrafia e da escrita. Há até um poema da época que presta homenagem ao seu apagador. É muito sentido. Há também toda uma secção sobre a orientação académica das jovens universitárias. Nesta parte do livro, onde as dimensões documental e crítica se conjugam em perfeita harmonia, ficamos a saber que, nos anos 70, rapazes e raparigas eram submetidos a testes de orientação destinados a ajudá-los a escolher as suas futuras carreiras. Mas as escolhas profissionais não eram realmente as mesmas para os dois lados do muro duro da divisão entre os sexos. Marie-Andrée Mongeau desenvolve esta questão de uma forma simultaneamente muito precisa e incrivelmente desopilante.
Não vamos falar do que Liliane tem a dizer sobre os seus professores. Ela aprende com eles, mas também luta contra eles, resiste-lhes. A nossa Liliane cogita, aprende, absorve, mas também desafia. O protesto era extremamente fértil naqueles anos, e a nossa jovem cogitadora recorda algumas das revoltas estudantis que lhe proporcionaram uma emancipação pessoal que ela não tinha previsto à partida. Os anos 1970-1975 marcaram uma revolução de valores. Nessa altura, o vestuário era uma questão central e muito sensível. Na altura, este colégio tradicionalista ainda usava uniformes, e estes uniformes, especialmente para as raparigas, apresentavam, digamos... fraseados cromáticos particularmente sofisticados, sobre os quais Liliane nos fornece alguns pormenores fascinantes. Descobrimos, ou redescobrimos, que o vestuário feminino é sempre muito semiologizado. Do protesto ao vestuário, às alegrias e às angústias, entramos no mundo secreto dos sentimentos de Liliane. Amores e amizades. O que ela pensa sobre os rapazes e o que diz sobre eles não deixa espaço. E isso dá-nos um outro documento de época particularmente saboroso e irresistível, cuidadosamente inserido no desenvolvimento principal do livro, intitulado Ode aux gars du collège. Uma leitura obrigatória.
Voltemos a dizê-lo. Tudo aqui se centra no ângulo da rapariga... e esta é certamente a qualidade mais marcante desta obra suave. Descobrimos que, há cinquenta anos, as jovens viviam num mundo onde, atrevemo-nos a dizê-lo, as injustiças silenciosas que sofriam eram permanentes, implícitas. E a necessidade imperiosa de feminizar os nossos espaços mentais, tanto nas formulações contemporâneas como nas do passado, está a emergir. A leitura deste livro é uma oportunidade, sobretudo para as jovens, de compreenderem melhor como viviam as suas mães e avós numa época que só podemos imaginar feliz, mas que também gostaríamos de ver ultrapassada. A jovem estudante de 1970-1975 aqui mencionada usava, sem dúvida, óculos. Mas será que ela era, de facto, a menina tonta que retrata? Deixemos isso ao critério de quem ler e reflectir sobre este livro.
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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