- texto do major-general CARLOS BRANCO
(em 'The Blind Spot - Geoestratégia', 25/08/2023)
A «operação especial» levada a cabo pela Rússia na Ucrânia tem captado a
atenção internacional e, em particular, a europeia. Desde a primeira hora que
considero ser a solução diplomática o caminho para a paz. Contudo, uma máquina
de propaganda bem oleada tem passado a ideia de que era possível uma vitória
ucraniana rápida e fácil, o que não coincide com os factos. Apesar desta realidade
ser cada vez mais incontornável, os mensageiros dessa propaganda, que repetiram
e amplificaram a vitória ucraniana como certa dizendo tudo e o seu contrário,
contribuíram para a manipulação da opinião pública que, no momento presente, é
confrontada com o falhanço da estratégia de Biden e com a necessidade de uma
solução política.
Como muitos analistas, também eu considerei que a Rússia não invadiria a Ucrânia, “só o farão in extremis.” A razão por detrás dessa consideração é, ainda hoje, válida. A Rússia não estava militarmente preparada para o confronto que daí adviria. Tinha-se preparado para enfrentar sanções, mas não para fazer face à resposta solidária do Ocidente, em especial nos termos e na dimensão em que ocorreu. Mas o in extremis aconteceu. As forças ucranianas concentradas no Donbass preparavam-se para atacar as duas repúblicas independentistas. Putin antecipou-se e invadiu a Ucrânia.
A necessidade da solução diplomática
A convicção arrogante do Ocidente de que seriam “favas contadas” levou à
sabotagem das iniciativas de paz quando, em março de 2022, Zelensky manifestou
publicamente a intenção de renunciar a ser membro da NATO. Nessa altura, Minsk
estava ainda na agenda e tudo era reversível. A continuação da guerra viria a
ter consequências dramáticas em múltiplos aspetos, em particular na convivência
futura de povos que tinham, até aí, coexistido sem problemas de maior no mesmo
território.
Mas se a Rússia não estava preparada para este embate, o Ocidente também
não! Três décadas de operações de paz deram no que deram. Foi evidente a
incapacidade do Ocidente para fornecer, em tempo e em quantidade, os recursos
necessários à manutenção de uma guerra prolongada.
Embora se soubesse que o confronto não envolveria apenas a Rússia e a
Ucrânia, como a Newsweek deu nota, «seria pouco plausível admitir que um país
com um PIB de $200 mil milhões e uma população de 44 milhões de habitantes
conseguisse derrotar um país com um PIB de $1.8 triliões e uma população de 145
milhões,» ao que se acrescenta uma força aérea «não desprezível», uma indústria
de defesa poderosa e capacidade nuclear. «A Ucrânia tem quase tanta
possibilidade de vencer uma guerra contra a Rússia como o México tem de vencer
uma guerra contra os EUA.».
Exatamente por estar convicto de que a Rússia não iria ser derrotada militarmente, defendi sempre uma solução política para o conflito. O seu prolongamento iria ser altamente prejudicial, em especial para a Ucrânia, mas também para a Europa. Passado um ano e meio, a Ucrânia tem a economia destroçada, o aparelho produtivo destruído, menos de 30 milhões de habitantes, quase 50 mil amputados e mais de 200 mil mortos, civis e militares, numa estimativa modesta. E para quê? A Ucrânia traz à memória a guerra na Bósnia. Três anos de uma guerra fratricida conduziram, em Dayton, a uma solução política pior do que aquela inicialmente encontrada em Lisboa (plano Cutileiro).
A propaganda e os seus mensageiros
Não têm faltado especialistas instantâneos oriundos dos mais diversos
setores de atividade (academia, comunicação social, etc.) para corroborar
voluntariamente a mensagem, quais apresentadores de televendas. Para que as
massas acreditem na verossimilhança de um plano idiota, também as elites têm de
ser coaptadas para a causa. É preciso fazer com que as massas acreditem
dogmaticamente ser possível o “Ocidente alargado” derrotar estrategicamente a
Rússia, sem colocar “botas no terreno” e recorrendo apenas à «mão-de-obra»
ucraniana. Como disse o Presidente polaco Duda, explicando porque é que os EUA
deviam mobilizar-se para ajudar a Ucrânia, «Agora, o imperialismo russo pode
ser parado de modo barato, porque os soldados americanos não estão a morrer.
Mas, se não pusermos agora um fim à agressão russa, haverá um preço alto a
pagar.».
Quem, há um ano, questionava os motivos oficiais desta guerra e não
alinhava na versão simples e maniqueísta do «invadido e do invasor», dos bons
contra os maus, e antevia que a Rússia não ia ser derrotada, sendo necessária
uma solução diplomática, era democraticamente trucidado na praça pública,
vítima de julgamentos de carácter, apelidado de putinista, traidor, e objeto de
outros encómios. Independentemente da razoabilidade dos seus argumentos, a sua
opinião era, por não enquadrada nos cânones permitidos, liminarmente
desconsiderada. Esta campanha de comunicação estratégica veio trazer à tona o
estado deplorável da democracia e do espaço mediático em que vivemos. Deixou de
haver necessidade de escrutinar os argumentos. Qualquer coisa servia.
Não bastavam as infantilidades de fontes «insuspeitas» como os serviços secretos ingleses ou o Instituto dos Estudos da Guerra – os soldados russos não tinham munições, aprendiam a manejar as armas na wikipedia, estavam mal equipados, não tinham meias, Shoigu tinha sido demitido, e Putin tinha vários cancros, etc. Ouvimos, inclusivamente, a Presidente da Comissão Europeia no Parlamento Europeu dizer, sem se rir, que «o Exército russo está a retirar chips das máquinas de lavar e dos frigoríficos para consertar o seu armamento, porque já não tem semicondutores. A indústria russa está feita em cacos.». Não se ouviu a voz de nenhum mensageiro a comentar tão ridículo disparate. Remeteram-se obedientemente ao silêncio.
A propaganda e o double thinking
A propaganda em que os mensageiros alinharam sem pudor visava criar nas
opiniões públicas ocidentais a perceção de que a campanha militar ia ser «um
passeio no parque». As sanções iam dar cabo da Rússia. As elites recusaram-se a
questionar o óbvio. Esqueceram-se do histórico pantanoso do Vietname, Iraque,
Líbia, Afeganistão, etc. Nada aprenderam. Tornaram-se num instrumento de
credibilização da propaganda. Salvo honrosas exceções, deleitaram-se com verves
belicistas sem questionar a possibilidade de a «coisa» não ser exatamente como
se contava. O que seria, por exemplo, a reação da Rússia se confrontada com a
eventualidade de uma derrota convencional? Ponderaria o recurso a armas
nucleares? Minudências…
Se calhar até nem seria descabido procurar entender as legítimas
preocupações securitárias de Moscovo e incluí-las na equação. Nem seria uma
ideia original. Já muitos outros pensadores de elevada craveira o fizeram. Não
significava abraçar nem defender o regime russo.
A intoxicação das mentes afetou muita gente por esse mundo fora. Como se nada tivesse acontecido em 2014, o Guardian, que antes dava as «boas-vindas à Ucrânia, a nação mais corrupta da Europa»» veio depois afirmar que a “luta pela Ucrânia é o combate pelos ideais liberais»; a Reuters, que antes apontava o «problema neonazi na Ucrânia», veio depois afirmar que «para os combatentes estrangeiros [evitando usar o termo mercenário] a Ucrânia oferece um propósito, camaradagem e uma causa»; enquanto antes a Vox dizia que «um comediante ucraniano tornado presidente está envolvido na confusão da impugnação de Trump», a CNN veio depois dizer que «os ucranianos estão a dar duas lições de democracia que os americanos esqueceram»; o Neweurope veio dizer que a «liderança do presidente ucraniano tornou-se corrupta e autoritária», enquanto o Washington Post (WP) veio mais tarde afinar a pontaria e dizer «Zelensky: o presidente que a TV tornou herói de guerra.». A guerra serviu para reabilitar, por exemplo, Oleh Tyahnybok, líder do partido de extrema-direita Svoboda. Em junho de 2013, Tyahnybok fora impedido de entrar nos EUA pelas suas posições antissemitas, o que não obstou a que, em dezembro de 2013, socializasse com John McCain em Kiev e fosse, em 2014, recebido pelo então Vice-Presidente Joe Biden na Casa Branca. Tudo normal e sem merecer reparos.
Afinal, a Ucrânia não vai vencer
Em fevereiro de 2023, o WP dava já nota da ansiedade que começava a grassar por Washington e colocava pressão sobre Kiev para obter ganhos significativos no campo de batalha, enquanto as armas e a ajuda dos Estados Unidos e dos seus aliados aumentavam. Os trunfos foram apostados na designada contraofensiva ucraniana, que tardava em chegar e que, quando chegou, rapidamente deixou perceber que iria ficar muito aquém das expetativas. Nesta linha, em fevereiro de 2023, o Die Welt avançava com cinco razões para explicar porque era cada vez menos possível a Ucrânia ganhar a guerra. Aos poucos, o Ocidente foi percebendo que a Ucrânia não ia vencer.
A Administração Biden começou discretamente a preparar-se para essa
possibilidade. Enquanto, publicamente, a equipa do Presidente Joe Biden
oferecia apoio inabalável à Ucrânia – armas e ajuda económica «pelo tempo que
for necessário» -, nos bastidores, os funcionários do governo não escondiam o
seu ceticismo relativamente à possibilidade de a Ucrânia algum dia vir a
recuperar a Crimeia.
Começou a tornar-se difícil disfarçar e encobrir o óbvio: a incapacidade
ucraniana para repelir a Rússia do seu território. Afinal, a ofensiva ucraniana
não estava a quebrar a Rússia nem era o golpe fatal que ia acabar com a guerra.
Washington percebeu e aceitou que a contraofensiva ucraniana não tinha chance.
A admissão mais evidente de tal facto foi feita por Richard Haass, antigo presidente
do reputado Council on Foreign Relations, «Se a Ucrânia não pode ganhar no
campo de batalha, surge inevitavelmente a questão de saber se não será a hora
de uma paragem negociada dos combates». Esquecendo-se do apoio prometido à
Ucrânia as long as it takes,pragmaticamente Haass diz que «É caro, estamos a
ficar sem munições, temos [EUA] outros desafios no mundo para os quais temos de
nos preparar.». Imagino que os afegãos que leiam este texto compreendam
imediatamente onde pretendo chegar.
Progressivamente, a narrativa do apoio as long as it takes foi sendo
substituída pela necessidade de se encontrar uma solução política, surgindo
imensas propostas. Um artigo publicado no Wall Street Journal dizia que as
negociações dos EUA com a Rússia teriam lugar até ao fim do ano, e apontava a
possibilidade de a China vir a ser um dos mediadores.
Ironicamente, Richard Haass e Charles Kupchan escreveram um artigo na
Foreign Affairs com o título «O Ocidente precisa de uma nova estratégia para a
Ucrânia» (13 de abril de 2023) onde defendiam «um plano para se ir do campo de
batalha para a mesa das negociações… por reconhecerem que a Ucrânia é incapaz
de expulsar totalmente as forças russas e restaurar a sua integridade
territorial». E, acrescentavam que «O Ocidente precisa de uma abordagem que
reconheça essas realidades sem sacrificar os seus princípios.», seja lá isso o
que for.
Numa entrevista à UnHerd, Edward Luttwak veio dizer que «a guerra na Ucrânia pode terminar antes do esperado», e que «Biden e Putin estão prontos para fazer um acordo.». Luttwak argumentou que «uma mudança na situação geral resultou em líderes mais dispostos a negociar o fim da guerra na Ucrânia.».
A adaptação à nova narrativa
Conforme previ, a estratégia de Biden está a falhar. A probabilidade de não falhar é extremamente reduzida, porque foi mal concebida e assentou em premissas erradas. O Ocidente começa progressivamente a dar-se conta que Kiev não vai vencer. Sente-se que o tom da narrativa está a mudar. E tal sente-se nas manchetes dos órgãos da comunicação social ocidental, em particular da norte-americana. A busca de uma solução política para o conflito começa a prevalecer no discurso dos mensageiros.
Essa alteração de narrativa começa também a notar-se em Portugal, em
especial no contorcionismo da maioria dos mensageiros. Ontem diziam que «A
Ucrânia tem de ganhar», hoje dizem que «tem de haver compromissos, tem de se
negociar uma solução política.». Sempre disponíveis para o que der e vier, uns
para enganar e outros para ser enganados, amanhã regurgitarão o que lhes for
mais conveniente, moldarão o seu discurso conforme a conveniência e
alinhar-se-ão com aquilo que estiver a dar. Impulsionados pelo comboio
castrador da propaganda, os mensageiros continuarão a demitir-se dos valores da
verdade e enfileirarão na desinformação.
Em matéria de calculo estratégico, o Kremlin tem sido muito discreto no que
toca ao anúncio das suas intenções futuras. Só faltava, para tornar tudo mais
difícil, e em particular a campanha presidencial de Joe Biden, a Rússia lançar
uma contraofensiva decisiva em 2024. Sendo uma hipótese a não descartar, caso
tal se verifique estarei atento ao que os mensageiros dirão sobre o assunto, e
confrontá-los-ei inevitavelmente com o que andaram a dizer durante dois anos.
Avaliaremos então a qualidade do seu contributo para o esclarecimento do
público.
Carlos Branco
Major-General
Fonte: https://theblindspot.pt/2023/08/25/os-cataventos-do-comentario/
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