1 de Setembro
de 2023 Ysengrimus
YSENGRIMUS — Quem é que se preocupava com os retoques informáticos no início do século? Uma fotografia minha num vasto relvado verde brilhante, ternamente debruçado sobre o meu spaniel Médor, parecia-me um fracasso porque o tio Firmin aparecia, cambaleante ao longe, entre mim e o meu spaniel, e como que grotescamente pousado na ponta do nariz deste último. Basta, com alguns cliques e movimentos do rato, pulverizar o velho tio ao fundo e aproximar ligeiramente o Medor de mim, tudo, claro, sem alterar o verde sereno do relvado. Dois amigos fraternos, sem qualquer tipo de problemas, estavam destinados a amarem-se com um amor... visual sem mistura. Estava tudo dito e feito, e ninguém tinha nada a dizer sobre isso. Então, porque não, uma coisa levou à outra e eu comecei a escurecer o meu cabelo, a clarear a minha tez, a cinzelar o meu nariz, a suavizar as minhas rugas e... a emagrecer.
O fenómeno do retoque fotográfico propagou-se como um incêndio entre 2000 e 2010, ao ponto de assumir a escala e a proporção de um vasto acontecimento cultural colectivo. Por volta de 2008, a maioria das fotografias de pessoas comuns na rede social Facebook foram retocadas. Naturalmente, os figurões não ficaram de fora. Actores e actrizes viram a sua aparência alterada para além do reconhecimento. A pele ficou como que plastificada ou metalizada, o cabelo ganhou um brilho irreal de ficção científica, as figuras ficaram impossivelmente arqueadas, a fotografia transformou-se numa espécie de desenho animatrónico congelado no irreal e no impossível. Depois, os nossos olhos - ou melhor, os das pessoas nas imagens - tornaram-se gradualmente inabordáveis. Começámos a praquejar nas caixas de supermercado. Uma revolta da mente. Uma actriz perseguiu um pato que tinha enroscado a cabeça no corpo de outra pessoa, um daqueles corpos de vespa ineptos que ela não aprovava. Uma empresa de sabonetes baseou um dos seus anúncios na denúncia da natureza irreal e ilusória de uma imagem de uma jovem comum engolida por uma sucessão quase ininterrupta de retoques animatrónicos tão falsos quanto desumanizantes. Foi esse o choque empírico. Mais tarde, a mesma empresa foi criticada por ter retocado fotografias de modelos que devem ter transgredido subversivamente as normas insanas da época, distinguindo-se como naturais e não sujeitas a cânones. Foi então o choque moral...
Estamos agora a entrar claramente na era do retoque fotográfico como o descrédito pelo qual somos julgados. Garanto-vos que, em breve, aparecerão etiquetas como ESTA ILUSTRAÇÃO É GARANTIDA SEM RETOQUE, que também serão verdadeiras ou enganadoras, dependendo da situação. De facto, algumas publicações de mexericos já garantem o carácter não retocado das fotos que utilizam... para denegrir o aspecto físico, ou a saúde, ou o tom de uma personalidade que banem das normas (porque há também o mundo desonesto e pérfido dos anti-retocadores). E debateremos. E os advogados vão envolver-se. A difícil curva evolutiva da tecnologia de retoque fotográfico está claramente em vias de perder toda a sua fria inércia técnica de outrora e de se tornar mais um episódio da resistência contemporânea das mulheres à tirania dos padrões de aparência. E quando um filme ansiosamente aguardado fracassar porque a vedeta foi retocada no cartaz, os vendedores de beleza falsa perceberão a dica e, mais uma vez, a tecnologia terá de se curvar às pressões sociais. Entraremos então na era da rectidão fotográfica. Provavelmente, o tio Firmin não será restaurado na ponta do nariz do Médor na minha velha fotografia de juventude... mas todas as imagens privadas e públicas de corpos e rostos entrarão abruptamente na memória vidrada em papel de 2000-2010... a idade de ouro dos retoques fotográficos descontrolados (os quais já não queremos e dos quais não temos saudades)...
Retoque fotográfico:
uma questão sobre a qual somos julgados
Este
artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice
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