28 de dezembro de 2024Ysengrimus
YSENGRIMUS — Apresentamos a coleção de poesia sem
maiúsculas de Thierry Noiret. Como o próprio autor explica, num curto
prefácio de três páginas que funciona um pouco como uma auto-revisão da sua
obra, a poesia de Thierry Noiret é uma procura de simplicidade e uma aspiração
à liberdade através da frescura da sua escrita. O poeta instala uma corrosão
silenciosa das conformidades gráficas. Para o conseguir, procede de forma
metódica. Embora despojada, a sua escrita mantém-se articulada e construída,
sem descurar a dimensão automática que pode emergir neste tipo de opção
textual. Se as maiúsculas são deliberadamente abandonadas, num gesto ritual tão
assertivo quanto invulgar, é em parte para evitar o estabelecimento de
distinções normativas que derivariam de convenções ortográficas herdadas e não
de prioridades mais íntimas e concretas que emanam do próprio texto. A opção
despojada. Aspiramos a uma expressão na direcção de um estilo de escrita livre que
não hesita em cultivar uma certa companhia com a brevidade, a elisão, a
paralipse, a elipse, mesmo quase uma espécie de mutismo. É, de facto, numa
dimensão de silêncio e de relação com o silêncio que devemos problematizar a
nossa leitura da poesia de Thierry Noiret. Ele recomenda abertamente que
leiamos a sua obra reto tono. Isto
teria o efeito de nos libertar de todos os efeitos, por vezes altamente
sofisticados, que estão muitas vezes profundamente entrelaçados nos jogos de
acentuação e tonalidade que são acrescentados quando recitamos um texto,
especialmente um texto que é rítmico, versificado ou utilizado numa expressão
culturalmente codificada (canções, recitativos, estrofes). Uma relação
semi-secreta com o silêncio é estabelecida, sedimentada, corroborada e
cultivada. E este silêncio assume uma dimensão temática profunda, sobretudo
quando o poeta nos faz compreender que o conteúdo fundamental do silêncio é, de
facto, intimamente cosmológico.
somos
vários
eu
sou muitos
mas
o silêncio rodeia-nos
inaudito
demorou
nada menos que
duas
horas
e
milhões de anos
para
que a humanidade
se
tornasse unânime
para
que as almas dançassem em concerto
que
o coro das nações
veja
nas estrelas
o
rio do nosso destino
e
aprendam a falar
mas
o silêncio rodeia-nos
silêncio
intempestivo
da
nossa existência
é
tão doloroso
esquecer
o nosso futuro
voltar
atrás
taciturno
cometas
taciturnos
quando
entram na dança
porque
não
seguir
os seus passos
unânimes,
o azul da perturbação
e
a respiração nasal
unânime
o sol diante dos nossos olhos
e
a lua
inaudito
o som da boca
quando
arranca as palavras
da
alma adormecida
mas
o silêncio rodeia-nos
unânimes
permanecemos
quando
o sono
o
sono
amanhã
haverá
algo
para falar
porque
é que o silêncio nos rodeia
atrevemo-nos
a negligenciar
de
ser demasiado humano
(texto XXVIII — disposição modificada)
Os trinta e quatro textos de Thierry
Noiret trabalham frequentemente ao nível das tematizações fusionais. Trata-se
de colocar em conjunto a articulação de grandes baluartes temáticos que,
implicitamente, entendemos serem, por outro lado, susceptíveis de serem
colocados de forma binarizada. E na realidade, aqui, o fluxo poético tematiza a
articulação das coisas colectivamente e, atrevemo-nos a usar a palavra
spinoziana, numa visão fundamentalmente monista. É assim, por exemplo, que se
pode mobilizar uma profunda e íntima correlacção entre Natureza e História.
Assim, o facto de ser uma planta, o facto de ser um ser biológico, um organismo
vivo, o facto de ser um pássaro e o facto de ter vizinhos e de existir no
interior de torres de condomínio... todas estas facetas do ser co-existem numa
configuração motriz que torna claro que o fluxo natural e o fluxo histórico se
autocriticam e se transgridem mutuamente, confrontando-se, menos de forma
pendular do que de forma complementar. É como o encontro de duas substâncias
químicas, como ácido/base ou catalisador/veneno, que, ao entrarem em contacto,
dão origem a um tipo de emulsão profunda que, entre outras coisas, tem o
impacto de alterar o mundo. As cores, as amplitudes, os crescimentos - nada sai
inalterado do choque temático da poética.
verdejante
não
é isso que nos espera a todos
somos
árvores mal plantadas
que
brincam à noite
as
minhas pernas são moles
pele
flácida
de
molho na sopa primordial
bondades
há
plantas que rastejam
silvas
nenúfares
cães
perdidos
torres
de condomínio
subúrbios
em forma de fortaleza
há
vida
onde
há paz
vernáculo
é a afirmação
que
me vem à cabeça
tento
soletrar
nada
de que se orgulhe
o
verso tem ar para se divertir
se
és um poeta conheces o canto dos pássaros
disseram-me
a
liberdade tem duas asas diz-me o meu vizinho
cheio
de diplomas
mas
as minhas imagens permanecem no chão
encantadas
eu
também, responde o carvalho frondoso
não
é a conversa que nos une
somos
madeiras de lei que falam demasiado
que
escrevem à noite
fechados
nos nossos boudoirs
há
mais para viver
quando
a paz chega
A dinâmica global do exercício resulta de um sentido dialéctico tão feliz quanto solidamente controlado. A relação constitutiva de Thierry Noiret com os grandes temas da Cosmologia, da Natureza e da História não lhe retira, de modo algum, uma fina e arguta capacidade de cultivar a presença da motricidade poética em miniatura, nomeadamente na miniatura da existência sociológica e etnográfica do próprio poeta, do seu assentamento humano, da sua habitação principal enquanto ser vivo e até da sua quota-parte de idas e vindas à aldeia. É assim que nos encontramos, num dado momento, a descobrir textos que são quase descrições ou proto-narrativas, nas dobras das quais se desenrolam, atormentadas ou tranquilas, muitas pequenas coisas da vida comum e vernácula. Estas evocações, fugazes e sentidas, vêm à nossa procura, sussurrando-nos que, sim, o fluxo poético é perfeitamente capaz de co-existir com algo como a linguagem da vida comum.
chove
escória
a
nossa alma está cheia dela
a
infância é uma paisagem
mas
a igreja
não
fica no centro
da
aldeia
ela
traz-a ao mundo
no
fundo
a
encosta íngreme da nossa
memória
esparsa
como
um grande campo
iluminado
por casas de colmo
que
se estende em direcção à floresta
a
meio do caminho, a escola distribui
conhecimentos
elas
saem com saias cinzentas
meias
brancas
ao
meio-dia do colégio interno
evito
pensar demasiado nisso
da
janela
onde
me esqueci de adormecer
a
vida à espreita no oco
da
minha memória
é
uma subida sensível
em
direcção à luz
a
minha infância
apanhou-a
na
curva de um caminho
para
o qual eu tinha deitado fora a chave
as
casas tornam-se
verdadeiramente
minhas
quando
as abandono
em
frente à taberna
onde
grandes faixas
de
carne sobre madeira
a
cerveja flui das
colinas
flamengas
Não
posso demorar-me
jovens
senhoras sereis
finalmente
minhas
quando
eu tiver esquecido
pensa
ele com astúcia
mais
acima no hospital onde
os
mutilados
como
baleias perdidas
há
o longo campo
que
revive a minha juventude
no
alto a biblioteca
no
limite do bosque
lá
eu amarro confetes
iluminados
das
minhas boas recordações
diz
ele ironicamente
mais
à frente reina o esquecimento
as
raparigas perdidas
os
filhotes uivam
eles
dizem
mas
os caçadores imersos
na
sua leitura esquecem-se
de
patrulhar
Terei
alguns esboços para
para
pôr no papel
quando
tiver subido a colina
resisti
ao afogamento
nos
volumes arrumados
da
minha vida já
catalogada
(texto XXIII — disposição modificada)
A tapeçaria textual que Thierry Noiret desdobra subtilmente acompanha axiomaticamente o seu convite inicial à leitura verbalizada. A leitura em voz alta e monótona da minha colecção irá aumentar ainda mais a experiência, para que se deixem levar pelas imagens, pelo ritmo, pelas evocações e pelas contradições (extracto do prefácio). Assim, embarcamos, de uma forma muito fluida, numa pequena aventura de leitura livre. E acabamos por nos reapropriar daquela velha noção de texto livre da nossa infância. E é assim que, ao lermos Thierry Noiret em voz alta, e ao deixarmos esta poesia fluir através de nós, descobrimos uma espécie de re-harmonização do verso livre e de uma obra, simultaneamente forte e íntima, ao nível da flutuação dos temas e da incitação das teses implícita ou explicitamente defendidas. E, no final da caminhada, tudo isto dá um resultado simultaneamente intelectualmente satisfatório e altamente original. Eis, portanto, uma leitura que não deixará de agradar e de representar um trunfo cantante e dançante na vizinhança da poeticidade activa contemporânea. De facto, nos nossos serões de poesia dos últimos anos e décadas, ouvimos muita desta poesia rítmica em voga. Pois bem, algo disso está a instalar-se discretamente na obra de Thierry Noiret. Mas, ao mesmo tempo, não é forçada, não é executada, não se desenrola sob a forma de gestos ajustados ao som, como uma performance pré-configurada. Em vez disso, a fluidez textual, a interacção dos ritmos e a organização dos temas são verbalizados. Tudo isto é feito com uma grande naturalidade e uma espécie de paz de sons e sentidos. O jogo é jogado, tanto graças a uma pena incisiva como a um conjunto de correlações de escrita e de intertextualidade bem estabelecidas e bem temperadas. Tudo isto transpira uma relação com a experiência que não mente ao longo do percurso. À medida que se vai lendo, tem-se a sensação de se estar perante um texto simultaneamente muito puro, muito simples, limpo, fresco, imaculado... mas também profundamente amadurecido.
Fonte: https://les7duquebec.net/archives/292399?jetpack_skip_subscription_popup
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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