sexta-feira, 1 de julho de 2022

A cebola como modelo ontológico

 


 1 de Julho de 2022  Ysengrimus 

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YSENGRIMUS — Não se trata de se tornar umperturbador dos ADORADORES de CEBOLA, um micro-culto franco-francês do século passado que cultivou uma série de correlacções selvagens entre Jouvence, a castração e práticas hortícolas, apostando no facto de esculpir os planos das cebolas de uma certa forma para lhes garantir uma espécie de juventude perpétua, real ou ilusória (esta estranheza é genuína). Castração e horticultura à parte, a questão levantada por este tipo de seita materialista e de modelação é de validade filosófica incongruente, mas tudo em tudo muito meritório. A questão que nos desafia aqui é, muito prosaicamente: certos objectos materiais específicos poderem tornar-se modelos ontológicos?

Em primeiro lugar, esforçar-nos-emos por distinguir entre um modelo ontológico e um modelo cosmológico. Um modelo cosmológico tomaria uma posição física ou material sobre o que o cosmos assume, em princípio, como uma forma eficaz. Muito simplesmente, num estilo algo heraclitiano, podemos sugerir que o rio ou a chama são modelos cosmológicos elementares, uma vez que o cosmos é possivelmente uma grande entidade em movimento e flacotante contida num dispositivo maior que integra e foge permanentemente (rio) e cuja existência é, ao mesmo tempo, um avanço fugaz e precipitado para o seu propósito de destruição (chama). ). Um modelo ontológico é menos concreto ou tangível do que isso, na reflexão que propõe. Uma espécie de jogo de simples abstracções manifesta-se aí. É menos uma questão de imitar o cosmos, uma vez que um globo da Terra imita a Terra real, do que de formular uma reflexão ontológica generalizada, de natureza solidamente metafórica ou analógica, entre o modelo ontológico e as principais categorias que aspira a projectar. Um modelo cosmológico esquematiza uma configuração de hardware. Um modelo ontológico faz-nos pensar num conjunto de problemas correlaccionados em relação ao ser. Vamos ver como funciona com a cebola.

 


E, nesta reflexão sobre a cebola como um modelo ontológico, começaremos... a partir de um damasco. O damasco está binarizado. Dá-nos, quando cortados, a imagem clara e distinta de carne macia e um núcleo duro. A carne macia representa o seu presente (comestível, putrescível, transitório), o núcleo representa o seu futuro (duro, chato, não comestível, será necessário plantá-lo para obter algo dele). Inevitavelmente, e muito directamente, o modelo ontológico do damasco traz-nos de volta ao velho díade das ideias aristotélicas de essência e acidente. O damasco conjuntural é o que comemos, o damasco essencial é o que vamos plantar para que volte para nós. O raciocínio implícito aqui centra-se num futuro linear, numa continuidade agrária, numa ordem acordada. Há um antes e um depois. Tudo neste modelo ontológico funciona como um binarismo.

O modelo binarista (modelo de damasco) é, de facto, ainda em grande parte dominante, especialmente no pensamento ocidental. Sempre um pouco pretensioso, mesmo em questões de filosofia vernácula, o pensamento comum gosta de descascar o que decreta trivial e ostensivamente convidar em busca do aqui presente núcleo duro. Núcleo duro, radicalidade, essência secreta da coisa, superficialidade da escória também. Estamos muitas vezes, em pensamento comum, no modelo do damasco. Procuramos os chefes, as eminências cinzentas, as forças de condução secretas, os abrigos anti-nucleares, os tesouros escondidos, as chaves da leitura, o centro da terra.

 


É, portanto, muitas vezes com o modelo ontológico do damasco em mente que nos aproximamos da cebola. A cebola descasca facilmente. Dourada, superficial e de uma finesse eminentemente rachada, a sua pele superficial lembra papel quebradiço.. Não há nada a ganhar com esta fina superfície da cebola. Vamos começar a descascá-la rapidamente. A pele, enquanto descasca, humedece e engrossa um pouco. Mas não importa, permanece pele, superfície, acidente. Mal podemos esperar para encontrá-lo, o núcleo, e ver o quão brilhantemente se imporá à nossa consciência. No entanto, não há núcleo. Há apenas a pele da cebola e esta, no fundo, para o centro, para o outro perímetro. A cebola é um modelo monístico. Ela não contém senão ela mesmo. Não cultiva a distinção entre o duro e o macio, o radical e o superficial, a essência e o acidente, a circunferência e a substância. Tudo é radical na cebola e tudo é superficial aí também.

A cebola é como um povo ou como um concerto. Procure o elemento essencial de um concerto, procurará por muito tempo. Um concerto não é um núcleo no seu pacote de nutrientes. É uma implantação unitária e unário. É uma entidade onde cada nota conta, nem mais nem menos do que a outra. Para apreender o concerto, é necessário abordá-lo na sua totalidade. Para comer a cebola, você terá que fritar quase todos as diferentes camadas de pele que você tinha inicialmente considerado insignificante. Um povo não tem como núcleo os seus reis, os seus líderes, os seus ricaços ou as suas classes dominantes. Trate as pessoas como pele insignificante e açoitada pelos seus chefes e ricaços, e você vai perder totalmente a sua nomeação com um grande povo em favor de mundana inútil com pequenos toques obsessivos-compulsivos. O encontro crucial é vivido na troca e não no palácio. Sabemos disso desde Voltaire, e mesmo antes.

Então aqui estamos nós com, cara a cara, dois modelos ontológicos: o damasco binarista e a cebola monista. Por que valorizar um em vez do outro? Não é do seu confronto que um pensamento frutífero surgirá? Sem dúvida. Vamos jogar o jogo, então. Avancemos, por exemplo, pela negativa. Procuremos a falha ideológica de cada modelo. Isto é feito muito facilmente (qualquer modelo sendo, por definição, ao mesmo tempo esboçado, deformado e orientado, é inevitavelmente repleto de falhas). O damasco dá para conceber um modelo onde haveria superficial, insignificante que se oporia a um essencial duro e radical. Mas imensos erros tácticos e estratégicos foram cometidos negligenciando a escória, a casca, o elemento social aparentemente insignificante. O sentido da globalidade contemporânea caminha cada vez mais para uma concepção de que, como tudo está ligado, tudo é essencial. Isto é, entre outras coisas, o que o objecto fractal nos diz. A falha ideológica da cebola, por seu lado, é a dos objectos monísticos. A cebola dá-nos a ideia de que tudo é idêntico a si mesmo e ao resto, e que nada difere radicalmente. Temos uma impressão de suavidade, monotonia, unidade sombria, planeza unitária, uma bolha global. Hiatos, crises, explosões, alteridades radicais não parecem estar previstas neste modelo. Este parece ser um destino bastante precipitado para todas as - mas cruciais - facetas da mudança qualitativa.

Mas o monismo inesperado da cebola é tão certo? Porque, finalmente, ainda temos que integrar no nosso pequeno dispositivo reflexivo uma das peculiaridades mais originais da cebola. Quando se descasca ou corta um damasco, nada de terrível acontece. Dá para sentir o seu cheiro e textura um pouco, e está tudo dito. Quando descascas ou cortas uma cebola, também sentes o seu cheiro e textura, como um condimento, como um vegetal... e, além disso, começamos a chorar intensamente. Trata-se de um facto tão incongruente como é sabido que deve ser absolutamente acrescentado à modelação. Então temos um objecto que parece não ter nenhuma radicalidade interna particular, nenhum núcleo, nenhum centro duro, nenhum subterrâneo secreto. Mas quanto mais avançamos, mais o seu impacto, digamos, intersubjectivo é singularmente amplificado sobre nós e isso, ao ponto de perturbar todo o nosso metabolismo activo. Choramos como uma pequena Madalena. Precisamos parar para recuperar o fôlego. A cebola, no seu monismo plano, tem, portanto, o equivalente evanescente da radicalidade inesperada simbolizada, no damasco, por um núcleo áspero e temporariamente inerte. É este efeito de lágrima, decorrente da massa aberta da cebola em vez do seu centro espacial, que puxa radicalmente a nossa subjectividade para o coração da acção. A negação do dualismo pela cebola vai ao ponto de não podermos descascar a cebola na indiferença da nossa fisiologia em acção. Ela está a chorar...

Vamos conceber estas duas radicações internas. O damasco dá-nos para ver e sentir um núcleo que os nossos sentidos embirrentos continuam a dominar, sem qualquer desventura particular. O damasco confirma o seu pouco dualismo permanecendo outro em relação a nós que nele actuamos. A cebola, por seu lado, nega conscientemente a sua monotonia monística inicial, uma vez que quanto mais entramos nela, mais esta crise radical se impõe sobre nós. O núcleo da cebola também está lá. Simplesmente, invisível, empiricamente problemático, subversivo, contradiz a dualidade que lhe se opõe no modo simples de um objecto que cede sob a força da acção de um sujeito. Ele agarra-nos e traz-nos lágrimas objectivas, livres de sentimentos subjectivos. A cebola automaticamente impõe-nos a força da sua relação com a totalidade. Ela dita a sua singularidade ao ponto de comprometer a nossa acção nela. Uma força parece habitá-la. Entendemos que alguns místicos (fatalmente antropomorfizantes) se sentiram desafiados.

O monismo da cebola dialécticamente incorpora o dualismo, precisamente por causa deste fluxo de lágrima que emana dela na nossa direção. A cebola substitui o núcleo duro pelo núcleo fluido e obriga-nos a incorporar a dimensão objectal do inter-subjectivo (o homem é um cortador de cebola choroso) no coração do modelo. O modelo de damasco, confrontado com isto, é mais trado, mais comum, e convida a reiterar um corpus de pensamentos muito mais convencionais. Estes factos inegáveis fazem da cebola um modelo ontológico que é simultaneamente dialécticamente mais rico e mais purulento de questões críticas do que o modelo de damasco.

Note-se, concluindo- se que, embora os modelos ontológicos baseados em objectos comuns sejam passos cruciais, na gnoseologia vernácula, deve-se permanecer sensível às limitações importantes deste tipo de aparelhos intelectuais. O génio de Heráclito era ter sido capaz de explorar este modo de reflexão em miniatura, o que lhe permitiu superar as limitações dos tempos de Heráclito. Queremos acreditar que as limitações históricas e sociais deste velho filósofo pré-socrático já não são nossas... Ou então é porque temos de aprender cuidadosamente a reconectar-nos, especialmente nas nossas cozinhas, com o nosso interior pré-socrático e as insatisfações que continua a fazer emergir na densidade do mundo.

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Do meu livro, PHILOSOPHY FOR THE THINKERS OF ORDINARY LIFE, na editora ÉLP, 2021.

 

Fonte: L’oignon comme modèle ontologique – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




 

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