domingo, 4 de fevereiro de 2024

Um incidente

 


 3 de Fevereiro de 2024  Allan Erwan Berger 



ALLAN ERWAN BERGER

Passaram seis anos desde que deixei a minha aldeia e vim para a capital. Entretanto, vi e ouvi muito daquilo a que chamam "assuntos de Estado", mas não me marcaram. Se me perguntassem como me influenciaram, responderia que só pioraram o meu mau feitio. Francamente, desprezo cada vez mais os homens.

Um pequeno incidente que testemunhei, no entanto, pareceu-me muito significativo. Tirou-me do meu mau humor e não o consigo esquecer.

Foi no Inverno de 1917. O vento norte soprava furiosamente, mas como eu tinha de trabalhar para ganhar a vida, dei por mim na rua de manhã cedo. Não havia quase ninguém e tive muita dificuldade em alugar um riquexó para chegar à porta S. Pouco tempo depois, o vento abrandou; tinha varrido o pó e a estrada estava limpa e branca. O condutor do riquexó trota mais depressa. Aproximamo-nos da porta S. quando alguém que atravessava a rua apanhou uma maca do carrinho de mão e caiu suavemente.

É uma mulher de cabelos grisalhos e roupas esfarrapadas. Tinha saído do passeio sem prestar atenção, directamente para o carrinho de bebé. Por mais que o condutor de riquexó se afastasse, o velho colete da mulher, desabotoado e levantado por uma rajada de vento, ficou preso na maca. Felizmente, o condutor de riquexó tinha abrandado a velocidade, caso contrário ela poderia ter sido atirada ao chão e ficar gravemente ferida. Ela não se levantou e o condutor de riquexó parou. Eu estava convencido de que ela não estava ferida e, como não havia testemunhas, estava zangado com o condutor de riquexó por se ter envolvido: ele ia meter-se em sarilhos e fazer-me chegar atrasado!

Ela está bem", disse eu, "continua!

O condutor de riquexó não prestou atenção às minhas palavras, talvez nem sequer as tenha ouvido. Pousando as macas, levanta suavemente a idosa e, segurando-lhe no braço, pergunta-lhe:

"Como se sente?

- Magoei-me".

Pensei: "Vi-a cair muito suavemente, de certeza que não se magoou? Estás só a fingir, é desagradável! E tu, empurra-empurra, precisavas mesmo de te envolver, se estás metido em sarilhos, é porque quiseste, despacha-te!"

Mas depois de ter ouvido a velha, o condutor de riquexó não hesitou; segurando-a ainda pelo braço, levou-a embora a passo lento. Atónito, olhei para ver para onde iam e avistei uma esquadra da polícia. Depois do vento forte, ainda não estava ninguém lá fora. O condutor de riquexó guia a velhota em direcção à porta grande.

Tive a estranha sensação de que as costas poeirentas do condutor de riquexó começaram subitamente a crescer; quanto mais ele se afastava, maior se tornava a sua imagem, de tal modo que rapidamente tive de levantar a cabeça. Além disso, parecia-me que ele exercia uma pressão crescente sobre mim, esmagando gradualmente o pequeno "eu" enterrado no meu vestido forrado a pele.

A minha vida parecia estar a parar. Fiquei ali sentado, imóvel, sem pensar; só quando vi um polícia a sair da estação é que saí do riquexó.

O polícia disse-me:

"Procura outro riquexó, este não te pode levar mais longe".

Sem pensar, tirei uma grande mão cheia de trocos do bolso do meu casaco e entreguei-a ao polícia, dizendo: "Por favor, dê-lhe isto.

O vento tinha abrandado completamente, mas a rua ainda não estava muito movimentada. Pensava enquanto caminhava e quase tinha medo de pensar em mim. Alheio ao que acabara de acontecer, pergunto-me que significado terei dado àquela mão cheia de dinheiro. Seria uma recompensa? E quem era eu para julgar o condutor de riquexó? Não consegui encontrar uma resposta satisfatória.

Penso muitas vezes neste incidente. Dá-me coragem para olhar frequentemente para trás, mesmo quando é doloroso. Não me lembro das questões políticas e militares dos últimos anos, tal como não me lembro dos clássicos que estudei em criança, mas este pequeno incidente passa-me muitas vezes diante dos olhos. Vejo-o com mais clareza do que na altura e isso ensina-me a ter vergonha, encoraja-me a fazer as pazes e dá-me coragem e esperança.

 

julho de 1920

 

Comentário

Este conto chama-se "Um incidente". É de Lu Xun, o escritor chinês sobre o qual escrevi na semana passada no Les 7 du Québec. Aproveito a tradução, com a única desculpa de que talvez vos dê vontade de comprar as obras deste grande artista.

 

A escrita faz-me lembrar a do meu amigo Daniel Ducharme: o estilo é calmo e sem afectos, sem adornos, sem espalhafato nem languidez, tudo equilibrado e sábio, deixando muito espaço para a reflexão, e é apenas dessa reflexão que nasce a emoção que me apaixona. É isto que me atrai em Lu Xun e que reencontro, um século mais tarde, em Ducharme, cujo conjunto prodigiosamente encantador de contos urbanos será publicado no próximo ano, um maravilhoso festim para a mente e para o coração.

 

Porque, com Ducharme, sentimos que temos um amigo ao nosso lado, um amigo que nos ensina gentilmente a refrear os nossos julgamentos e a aprofundar a nossa curiosidade sobre as coisas que nos movem, mesmo as mais óbvias. Regularmente, levantamos o olhar da página para contemplar o vazio durante um minuto, antes de voltarmos a mergulhar na leitura, com o rosto desimpedido apesar do assédio contínuo do barulho imbecil que nos assedia.

 



Fonte: https://les7duquebec.net/archives/222924

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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