3 de Fevereiro de 2024 Allan Erwan Berger
ALLAN ERWAN BERGER
Passaram
seis anos desde que deixei a minha aldeia e vim para a capital. Entretanto, vi
e ouvi muito daquilo a que chamam "assuntos de Estado", mas não me
marcaram. Se me perguntassem como me influenciaram, responderia que só pioraram
o meu mau feitio. Francamente, desprezo cada vez mais os homens.
Um
pequeno incidente que testemunhei, no entanto, pareceu-me muito significativo.
Tirou-me do meu mau humor e não o consigo esquecer.
Foi
no Inverno de 1917. O vento norte soprava furiosamente, mas como eu tinha de
trabalhar para ganhar a vida, dei por mim na rua de manhã cedo. Não havia quase
ninguém e tive muita dificuldade em alugar um riquexó para chegar à porta S.
Pouco tempo depois, o vento abrandou; tinha varrido o pó e a estrada estava
limpa e branca. O condutor do riquexó trota mais depressa. Aproximamo-nos da
porta S. quando alguém que atravessava a rua apanhou uma maca do carrinho de
mão e caiu suavemente.
É
uma mulher de cabelos grisalhos e roupas esfarrapadas. Tinha saído do passeio
sem prestar atenção, directamente para o carrinho de bebé. Por mais que o condutor
de riquexó se afastasse, o velho colete da mulher, desabotoado e levantado por
uma rajada de vento, ficou preso na maca. Felizmente, o condutor de riquexó
tinha abrandado a velocidade, caso contrário ela poderia ter sido atirada ao
chão e ficar gravemente ferida. Ela não se levantou e o condutor de riquexó
parou. Eu estava convencido de que ela não estava ferida e, como não havia
testemunhas, estava zangado com o condutor de riquexó por se ter envolvido: ele
ia meter-se em sarilhos e fazer-me chegar atrasado!
Ela
está bem", disse eu, "continua!
O
condutor de riquexó não prestou atenção às minhas palavras, talvez nem sequer
as tenha ouvido. Pousando as macas, levanta suavemente a idosa e, segurando-lhe
no braço, pergunta-lhe:
"Como
se sente?
-
Magoei-me".
Pensei:
"Vi-a cair muito suavemente, de certeza que não se magoou? Estás só a
fingir, é desagradável! E tu, empurra-empurra, precisavas mesmo de te envolver,
se estás metido em sarilhos, é porque quiseste, despacha-te!"
Mas
depois de ter ouvido a velha, o condutor de riquexó não hesitou; segurando-a
ainda pelo braço, levou-a embora a passo lento. Atónito, olhei para ver para
onde iam e avistei uma esquadra da polícia. Depois do vento forte, ainda não
estava ninguém lá fora. O condutor de riquexó guia a velhota em direcção à
porta grande.
Tive
a estranha sensação de que as costas poeirentas do condutor de riquexó
começaram subitamente a crescer; quanto mais ele se afastava, maior se tornava
a sua imagem, de tal modo que rapidamente tive de levantar a cabeça. Além
disso, parecia-me que ele exercia uma pressão crescente sobre mim, esmagando
gradualmente o pequeno "eu" enterrado no meu vestido forrado a pele.
A
minha vida parecia estar a parar. Fiquei ali sentado, imóvel, sem pensar; só
quando vi um polícia a sair da estação é que saí do riquexó.
O
polícia disse-me:
"Procura
outro riquexó, este não te pode levar mais longe".
Sem
pensar, tirei uma grande mão cheia de trocos do bolso do meu casaco e
entreguei-a ao polícia, dizendo: "Por favor, dê-lhe isto.
O
vento tinha abrandado completamente, mas a rua ainda não estava muito
movimentada. Pensava enquanto caminhava e quase tinha medo de pensar em mim.
Alheio ao que acabara de acontecer, pergunto-me que significado terei dado
àquela mão cheia de dinheiro. Seria uma recompensa? E quem era eu para julgar o
condutor de riquexó? Não consegui encontrar uma resposta satisfatória.
Penso
muitas vezes neste incidente. Dá-me coragem para olhar frequentemente para
trás, mesmo quando é doloroso. Não me lembro das questões políticas e militares
dos últimos anos, tal como não me lembro dos clássicos que estudei em criança,
mas este pequeno incidente passa-me muitas vezes diante dos olhos. Vejo-o com
mais clareza do que na altura e isso ensina-me a ter vergonha, encoraja-me a
fazer as pazes e dá-me coragem e esperança.
julho
de 1920
Comentário
Este conto chama-se "Um incidente". É de Lu Xun, o escritor
chinês sobre o qual escrevi na semana passada no Les 7 du Québec. Aproveito a
tradução, com a única desculpa de que talvez vos dê vontade de comprar as obras
deste grande artista.
A escrita faz-me lembrar a do meu amigo Daniel Ducharme: o estilo é calmo e
sem afectos, sem adornos, sem espalhafato nem languidez, tudo equilibrado e
sábio, deixando muito espaço para a reflexão, e é apenas dessa reflexão que
nasce a emoção que me apaixona. É isto que me atrai em Lu Xun e que reencontro,
um século mais tarde, em Ducharme, cujo conjunto prodigiosamente encantador de
contos urbanos será publicado no próximo ano, um maravilhoso festim para a
mente e para o coração.
Porque, com Ducharme, sentimos que temos um amigo ao nosso lado, um amigo que nos ensina gentilmente a
refrear os nossos julgamentos e a aprofundar a nossa curiosidade sobre as
coisas que nos movem, mesmo as mais óbvias. Regularmente, levantamos o olhar da
página para contemplar o vazio durante um minuto, antes de voltarmos a
mergulhar na leitura, com o rosto desimpedido apesar do assédio contínuo do
barulho imbecil que nos assedia.
Fonte: https://les7duquebec.net/archives/222924
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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