segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

JORION: "Livrar-se do capitalismo é uma questão de sobrevivência"

 


 Fevereiro 18, 2024  ROBERTO GIL 

Pesquisa realizada por Robert Gil


Paul Jorion
está muitas vezes nas nuvens quando se trata de questões de estratégia política - ao ponto de fazer campanha pela candidatura de Piketty... - mas, em certos assuntos em que se empenhou bastante, vale a pena lê-lo.

Se o movimento de protesto contra a lei El-Khomri deu recentemente origem a um debate particularmente intenso sobre o lugar e o futuro do trabalho na nossa sociedade, a destruição do emprego assalariado e do trabalho humano pelo sistema capitalista e pela ofensiva da tecnologia parece, no entanto, ter sido ignorada tanto pelo movimento social como pela classe política em geral. Porquê? Explicações do sócio-antropólogo e antigo comerciante Paul Jorion.

Sciences Critiques: Na sua opinião, a mecanização, a robotização e a digitalização do trabalho representam um progresso social ou uma catástrofe antropológica?

Paul Jorion: É um progresso para a civilização humana, porque esta capacidade de invenção, que os outros animais não têm, é um dos aspectos positivos da raça humana. Esta capacidade inventiva é o que nos torna únicos. Desde que nos foi possível, tentámos reduzir o esforço necessário para transformar o mundo que nos rodeia, para comer, para encontrar um lugar para viver, etc. Sempre procurámos ter os meios técnicos para eliminar as tarefas perigosas, cansativas, fastidiosas, degradantes, etc. A tecnologia é consubstancial ao homem. Segundo o etnólogo André Leroi-Gourhan, o desenvolvimento do cérebro é concomitante com a utilização de ferramentas. Utilizamos ferramentas, mas também as desenvolvemos. Estamos constantemente à procura de formas de as melhorar. Faz parte da nossa natureza. O ser humano sente um certo prazer em confrontar-se com o mundo.

O CAPITALISMO É UM SISTEMA QUE CRIA UMA CEGUEIRA EM RELAÇÃO AO SEU CARÁCTER ABSOLUTAMENTE ABOMINÁVEL.

No entanto, não estamos a transpor essa capacidade de transformar o mundo que nos rodeia para a aplicação racional dos melhores sistemas de organização política... Vivemos hoje num sistema político extremamente desigual, que gera a concentração da riqueza em poucos. Aqueles que beneficiam deste sistema bloqueiam o acesso a uma vida melhor para todos. Neste contexto, o progresso tecnológico que permite reduzir o trabalho é confiscado por alguns, em detrimento de todos os outros. Por outras palavras, o problema não é que as nossas invenções sejam más em si mesmas, mas sim que toleramos um sistema político que as desvia da sua capacidade de fazer o bem. E esse sistema político é o capitalismo. O capitalismo é um sistema que cria uma cegueira para a sua natureza absolutamente abominável.

Sciences Critiques: No entanto, a tecnologia é o "braço armado" do capitalismo...

Paul Jorion: Eu não diria isso. Os cientistas vivem no seu próprio mundo. Estão relativamente afastados de qualquer reflexão sobre o sistema político. De facto, penso que a tecnologia e o capitalismo são independentes. O desenvolvimento tecnológico é independente do desenvolvimento das sociedades. Pode ser uma catástrofe simplesmente porque lhe falta o ambiente para o canalizar. E à nossa volta existe um sistema político que organiza a confiscação da tecnologia que, na minha opinião, é neutra.  O que é mortal é o quadro em que esta tecnologia é implantada.

Sciences Critiques: O desenvolvimento da tecnologia no sistema capitalista é sinónimo de destruição do trabalho humano?

Paul Jorion: Sim, claro. Em Janeiro passado, investigadores de Oxford afirmaram que a robotização irá criar um milhão de empregos nos Estados Unidos até 2022. Trata-se de um aumento de 18%, o que é considerável. Nesse ano, quatro milhões de pessoas estarão a trabalhar em TI, a fazer software, robôs, a desenvolver a Internet das Coisas, Big Data, etc., o que é um aumento enorme. Ora, quatro milhões em 160 milhões de trabalhadores são apenas 2,7% do emprego. Isso não é nada! Na realidade, pode haver um milhão de trabalhadores a mais, mas 100 milhões de empregos vão desaparecer ao mesmo tempo... É muito difícil imaginar as consequências do desenvolvimento tecnológico.

A PARTIR DO MOMENTO EM QUE UMA INVENÇÃO TÉCNICA DESTRÓI MAIS EMPREGOS DO QUE CRIA, SURGE UM PROBLEMA SOCIAL.

Diz-se frequentemente que, nos anos 60, se deu uma grande transição no mundo do trabalho: a passagem das fábricas para os serviços. No espaço de cerca de dez anos, um número considerável de pessoas passou de trabalhadores manuais a vendedores ou comerciantes. O que é preciso sublinhar é que a formação necessária para transformar um operário em vendedor demora no máximo duas ou três semanas. Mas são necessários pelo menos quatro anos para que um trabalhador manual ou um trabalhador do sector dos serviços se torne um programador que codifica software para robôs. E sabemos que nem toda a gente será capaz de escrever software...

Sciences Critiques: Quem é penalizado pelo avanço da tecnologia? 

Paul Jorion: Pessoas que querem vender a sua força de trabalho: o proletariado de outrora, o assalariado de hoje. O fenómeno já não se limita aos operários. Aqueles que calculam o número de empregos que vão desaparecer nos próximos anos são ingénuos, porque acreditam que só o trabalho manual será substituído. Mas o sistema financeiro actual conduz também à substituição do trabalho dispendioso, mesmo, e sobretudo, do trabalho intelectual. E isso está a ser feito! O caso dos traders substituídos por algoritmos é um exemplo disso. Há também exemplos no domínio da medicina. Existem actualmente máquinas que fazem diagnósticos médicos muito precisos. Cometem menos de 1% de erros, enquanto um médico comete uma média de 10%... Entre os dois, desperdiçam-se vidas humanas, morrem pessoas. A questão é esta: quanto tempo demorará até que a Segurança Social exerça pressão, argumentando que o diagnóstico médico por máquina custa menos e poupa vidas humanas?

Sciences Critiques: Houve uma ruptura histórica no mundo do trabalho com o advento da digitalização?

Paul Jorion: Não houve uma ruptura fundamental. Mesmo com o advento do computador pessoal nos anos 70 e a sua subsequente adopção em massa, a tendência básica manteve-se a mesma: a destruição de empregos. De um modo geral, quando uma invenção técnica destrói mais empregos do que cria, há um problema social, porque o equilíbrio de poder entre trabalhadores e proprietários de capital está ligado a uma certa escassez de mão de obra. Esta escassez significa que aqueles que produzem trabalho devem ser pagos por ele. Se essa escassez diminuir, se houver um emprego para cada 500 candidatos, os salários baixarão inevitavelmente. Mas não há um limite absoluto para essa descida, a não ser que o Estado decida o contrário. E o que se verifica actualmente com a "uberização" da economia é que os salários estão a descer abaixo do salário mínimo, colocando em concorrência todos os que sabem fazer alguma coisa. Num mundo em que o número de postos de trabalho tende a desaparecer, os salários vão acabar por descer abaixo do salário mínimo.

NÃO HOUVE UMA RUPTURA FUNDAMENTAL NO MUNDO DO TRABALHO COM A CHEGADA DA DIGITALIZAÇÃO. A TENDÊNCIA SUBJACENTE MANTÉM-SE A MESMA: A DESTRUIÇÃO DE POSTOS DE TRABALHO.

Por último, há uma perda em relação ao século XIX. Nessa altura, a mão de obra que deixava o campo em grande número podia ser empregada nas cidades. As condições eram certamente difíceis: salários de miséria, jornadas de trabalho de 13 horas, com crianças a trabalhar, etc. Mas havia compreensão por parte do patrão, para que o salário não descesse abaixo do salário de subsistência da altura, porque o patrão precisava do trabalhador no dia seguinte. Ele sabia que o trabalhador tinha de receber o suficiente para voltar na manhã seguinte. Actualmente, já não é assim. Estamos agora dispostos a alinhar os salários franceses com os do Bangladesh... Chamam-lhe "competitividade"! É como se fosse um filme de Orwell: demos um nome completamente inocente a um fenómeno completamente destrutivo.

Se aceitarmos o princípio de que é o mercado que governa, ou seja, o simples equilíbrio de forças entre trabalhadores e empregadores, os salários aproximar-se-ão do zero... Tanto mais num mundo onde a concorrência entre candidatos a emprego é cada vez maior. O céu é o limite - é esse o problema! O economista suíço Jean de Sismondi já o dizia na década de 1820: quem é substituído por uma máquina não beneficia, enquanto indivíduo, da sua substituição. Sugeriu então que quem fosse substituído por uma máquina recebesse uma renda vitalícia sobre a riqueza gerada pela máquina. A mecanização é um progresso colectivo. Mas se for confiscada por alguns e oprimir todos os outros, deixa de ser progresso. A mecanização deve ser definida algures como um benefício para toda a humanidade.

Fonte

 

Fonte: JORION: «Se débarrasser du capitalisme est une question de survie» – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




Sem comentários:

Enviar um comentário