sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

O paradoxo das armas na América do Norte: uma história de ursos...

 


 9 de Fevereiro de 2024  

YSENGRIMUS — A história em questão começa no século XVIII, nos tempos da antiga cultura de fronteira, quando o que se mexia nos bosques à beira da estrada era amigo, inimigo ou urso. Nessa altura, o porte de uma arma era estritamente um bem nobre e, escusado será dizer, que um urso não se apercebe destas distinções de classe quando ataca. Assim, os revolucionários americanos rapidamente fizeram do direito de se defenderem nos bosques e nas suas quintas uma das suas prioridades fundamentais. O carácter americano desta exigência é sobrestimado. De facto, é mais republicana do que americana. De facto, se lermos com atenção os copiosos cahiers de doléances do período pré-revolucionário em França, veremos que a exigência de que o povo seja autorizado a portar armas aparece de forma proeminente em muitas comunas. Dito isto, não se podia fazer nada. Nas representações modernas, existe de facto um profundo americanismo em relação às armas de fogo. Inventores e criadores de vários tipos de armas de mão, da espingarda de repetição, da metralhadora (utilizada pela primeira vez na Guerra Civil Americana), para citar apenas alguns, a indústria, a cultura, o folclore e o simbolismo americanos estão profunda e solidamente marcados pela arma e pelo indivíduo armado.

A Revolução Americana legalizou o porte de armas de fogo. Revolução Americana: o Canadá, como de costume, não a seguiu... Desde 1760, os britânicos no Canadá actuam muito abertamente e muito serenamente como ocupantes, tendo apenas os oficiais e o pessoal militar o direito, estritamente limitado pelas suas funções, de portar armas. A população francesa ocupada não esperava outra coisa. A ocupação tem a sua lógica, e essa lógica exclui as armas da propriedade do pequeno povo. Com a Revolução Americana, a América do Norte britânica recuou para norte e os administradores coloniais, sobretudo a partir de 1776 e 1789, receavam suficientemente as ideias republicanas para terem o cuidado de nunca pôr armas entre as patas da população francesa rebelde ou, no interesse da boa coerência legalista, da crescente população inglesa (uma parte significativa da qual chegou do sul tricolor). Aqui não há tal coisa. Pelo menos, não legalmente, porque... e aqui tenho de trazer o urso de volta. O folclore quebequense e acadiano está repleto de um tipo muito específico de conto popular curto, as histórias de ursos. É sempre o mesmo padrão. Um homem matou um urso no bosque sem testemunhas, vem vender as peles na aldeia e fica infinitamente atolado em longas explicações sobre como conseguiu tal proeza, uma vez que não está autorizado a andar armado no bosque ou em qualquer outro sítio... O protagonista conta a um público zombeteiro e semi-cúmplice que trepou a uma árvore cujo ramo se partiu e caiu no ponto fraco das costas do urso, que lhe fez cócegas até ele morrer de riso, que o envenenou com geleia do local de corte da madeira, que repetiu o último sermão de domingo, matando-o de tédio, que esperou pelo Inverno para que ele morresse de frio. Etc... etc... etc... O drama histórico quebequense Le temps d'une paix (1980-1986) produz uma variação suave da história do urso no seu nono episódio, intitulado En cueillant des framboises (Apanhando framboeas - 1980). O ano é 1919 e o peso das convenções ainda pesa na vida da aldeia. O próspero agricultor Joseph-Arthur Lavoie e a sua vizinha Rose-Anna Saint-Cyr, viúva e viúvo lúcido e discreto, combinam encontrar-se perto de um arbusto de framboesas. O Sr. Lavoie traz consigo a sua espingarda de calibre 12 e "explica" à Sra. Saint-Cyr que há "um urso" a rondar os arbustos de framboesa, dando-lhe o pretexto para (literalmente) saltar a cerca e atirar-se para os braços do vizinho sedutor. O urso imaginário, sempre inevitavelmente associado ao porte de uma arma, torna-se aqui, nesta variação literária, o marcador da ficção, o pretexto que desencadeia a escapadela romântica. As variações da história do urso são, sem dúvida, infinitas. Estes elementos do folclore, e os seus contra-choques literários, indicam claramente que os Acadianos e os Quebequenses transportavam armas ilegalmente na sua própria dinâmica fronteiriça e provocavam discretamente os ocupantes com fogos de artifício já importados dos nossos vizinhos do Sul... Algumas destas armas ilegais, incluindo canhões, também apareceram durante as revoltas anti-coloniais de 1837-1838 tanto na parte francesa como na parte inglesa do Domínio do Canadá.

No século XVIII, a administração americana apresentava-se como magnânima, libertária, corajosa, confiante e respeitadora do direito de se defender. A administração canadiana aparece como retrógrada, colonial, antiquada, aristocrática, rabugenta e despreocupada com o bem-estar dos seus agricultores e caçadores. No século XXI, a perspectiva inverteu-se. Os americanos são vistos como psicopatas que se matam em restaurantes familiares com AK47s que são perfeitamente legais, mas que poderiam pulverizar um urso sem que nada de útil restasse do seu pelo. Os canadianos são vistos como corajosos modernistas que enfrentam o vasto flagelo continental das armas, com um olhar atento e alerta às fronteiras. A evolução histórica tem as suas inversões paradoxais e os Domínios e as Repúblicas vêem, por vezes, a legitimidade dos seus sistemas de valores inverter-se de forma inesperada.

 A estupidez do Canadá não desapareceu por isso. Oh, meu Deus! Veja-se. Toronto, 2001-2010, a metrópole canadiana com três milhões de habitantes, regista um aumento constante do número de homicídios com armas de fogo, incluindo em plena luz do dia, em ruas movimentadas, com balas perdidas e tudo o resto. O quê, o quê, o quê? As armas de fogo não são ilegais neste lugar esquecido por Deus? Resposta das autoridades canadianas: sim, todos os crimes com armas de fogo cometidos em Toronto, no contexto da guerra de gangs, do tráfico de droga e dos tiros de metralhadora nos cafés da baixa da cidade, são cometidos com armas ilegais. É isso mesmo! Então, de onde vem todo este material proibido? É um verdadeiro arsenal, é... é como os planos para a canábis na Colúmbia Britânica! Os americanos compram-na na loja de armas local. Não queremos mais, mas pelo menos sabemos de onde vem. Mas e nós? A resposta das autoridades canadianas: oh, já sabe, as armas que são roubadas caso a caso durante os assaltos a casas de coleccionadores, as espingardas e pistolas de tiro ao alvo que os atiradores desportivos com licenças recreativas roubaram uma a uma das bagageiras dos seus carros, as réplicas realistas de armas de fogo compradas a estúdios de cinema por assaltantes imaginativos, as espingardas de caça do avô que são cortadas. As pessoas são engenhosas, sabe...

Desculpem, desculpem, desculpem! É outra história de ursos... As autoridades canadianas fecham os olhos à sua incompetência em manter uma proibição que está a ganhar importância social, tal como os americanos fecham os olhos à sua incapacidade de travar os crimes que a sua Constituição ultrapassada facilita. É a América em todo o lado. Os factos implacáveis são estes: quase todas as armas de fogo utilizadas no Canadá, tanto para crimes graves como para pequenos crimes, são armas modernas, práticas, de marca, eficazes, não folclóricas, contrabandeadas directamente dos Estados Unidos. As autoridades canadianas estão tão envolvidas na sua história de clubes de armas caseiros, roubados sabe-se lá por quem, que o Presidente da Câmara de Toronto decidiu, em 2008, dar um golpe. Tornou ilegais todos os clubes de armas da sua cidade, remetendo-os assim para os lucros e prejuízos da luta contra a banalização das armas de fogo na vida urbana, que, neste caso, envolve uma luta contra as mentiras e a hipocrisia insidiosamente cúmplice sobre as origens sinistras de todas estas bombinhas. Depois desta medida, se ela se mantiver, resta-nos ver se o número de armas na Cidade Rainha diminui assim tanto, ou melhor, se, como os guardas das aldeias do Velho Domínio tiveram muitas vezes de observar, o urso não tem um buraco óbvio entre os olhos.

E entretanto, bem, a história do urso continua, inexoravelmente, sob outra perspetiva. Um ambientalista "psicótico" faz pessoas reféns, apoiando-se fortemente na crença contemporânea da inutilidade do ser humano. É prontamente abatido por uma força policial armada até aos dentes. Pum, pum. Eis alguém que, naquele dia, tinha todas as razões para desejar ter sido um urso ou um lobo. Urso ou lobo, tê-lo-íamos neutralizado com uma seringa hipodérmica e ele teria sobrevivido, por mais "psicótico" que fosse. Como humano, contentámo-nos em disparar sobre ele com munições reais. Dir-se-ia que os seus opressores partilhavam os elementos cruciais da sua doutrina da futilidade do humano... Ou de um urso Kodiak. Um urso Kodiak é uma psicose permanente. Não tem medo de nada, de nenhum predador, ele ataca, ponto final. Mas se um urso Kodiak nos ameaçar, existem, e já há muito tempo, cartuchos hipodérmicos que o vão lixar e entorpecer antes de o ursinho ter tido hipótese de respirar de alívio. O urso adormece. A história do urso evoluiu e tornou-se mais refinada. Já não os matamos e também não o justificamos. O facto é que, hoje em dia, os seres humanos têm de sofrer (tasers) ou morrer (munições reais). Não há hipodérmicas adaptáveis para humanos... Por razões técnicas, não. Não mais. Razões sociais. É que, em nome do fascismo vulgar, a pena de morte instantânea é aplicada aos seres humanos "psicóticos" para que os seus semelhantes mantenham a cabeça nos ombros e permaneçam socialmente dóceis... Assim diz o folclore contemporâneo.

Um conto de ursos, um conto de humanos, um conto de promoção da fusca, história de morte. Das 31.000 mortes por armas de fogo nos Estados Unidos todos os anos, menos de 300 são homicídios que podem ser considerados "legítimos", uma categoria que inclui disparar contra um assaltante, um atacante violento ou um violador. Mais de 40% das casas americanas com crianças têm uma arma de fogo. De notar também que 50% de todos os homicídios nos EUA são cometidos com uma arma de fogo. Assim, acabamos por ter jovens de 20 anos a andar por aí com semi-automáticas e a chacinar crianças em idade escolar, enquanto o resto de nós discute a "retórica inflamada" dos políticos americanos...

Abolição imediata, por decreto, do "direito" constitucional ao porte de armas. Apreensão e destruição, sem aviso ou indemnização, de todas as armas pessoais no continente norte-americano. É esta que será, um dia, a verdadeira resposta política a estas "terríveis tragédias provocadas por desequilibrados"... A fétida "liberdade" de portar armas deve ser absolutamente abolida, tal como tantas outras liberdades civis foram abolidas, rápida e viamente, durante o tempo da antiga "guerra contra o terrorismo"... Este terrível consenso de violência implícita, dócil e cobarde nunca me contará entre os seus membros. O postulado fatalista da arma é um crime sórdido e vil. Nunca o partilharei.



 

Fonte: https://les7duquebec.net/archives/251801

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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