terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Iraque 1/3 – Iraque pós-Saddam Hussein, uma república de bandidos

 


 27 de Fevereiro de 2024  René Naba 

RENÉ NABA — Este texto é publicado em parceria com a www.madaniya.info.

.

Mandado de detenção emitido contra quatro colaboradores próximos do antigo primeiro-ministro Mustafa al-Kazimi

Foram emitidos mandados de prisão contra quatro colaboradores próximos do antigo Primeiro-Ministro iraquiano Mustapha Al Kazimi por desvio de fundos públicos, no âmbito de uma campanha lançada pelo Governo iraquiano contra a corrupção que tem afectado todos os níveis da administração iraquiana desde a invasão do Iraque pelos EUA em 2003.

Os mandados de captura foram emitidos pelo "Gabinete Federal de Honestidade" e dizem respeito às quatro personalidades seguintes Ali Alaoui, Ministro das Finanças, Raed Joudi, Director do Gabinete do Primeiro-Ministro, Ahmad Najati, Secretário Privado do Primeiro-Ministro e Mouwaffaq Abbas, seu conselheiro.

O Gabinete, que ordenou o arresto de todos os bens móveis e imóveis dos arguidos, acusa-os de terem facilitado o arresto de depósitos de garantia relativos à tributação de pessoas singulares e colectivas. Em linguagem corrente, chama-se a isto desvio de fundos ou roubo. Na gíria tecnocrática francesa, chama-se "une évaporation de recettes" (um evaporar de receitas – NdT).

O prejuízo ascende a 2,5 mil milhões de dólares. O que há de novo neste caso é que a luta contra a corrupção, até agora limitada aos quadros subalternos, já não poupa os quadros superiores, apesar de muitos deles beneficiarem da protecção das milícias iraquianas.

Moustafa al-Kazimi, primeiro-ministro de 2020 a 2022, tem fama de ser próximo dos Estados Unidos. Antigo chefe dos serviços de informação iraquianos, o ex-primeiro-ministro iraquiano, próximo da administração republicana de Donald Trump e do seu secretário de Estado Mike Pompeo, é acusado por grupos pró-iranianos de ter ajudado a eliminar Qassem Soleimani, o chefe da famosa "Brigada de Jerusalém", o batalhão de choque dos "Guardas da Revolução" iranianos.

Nascido em Bagdade em 1967, este jornalista e advogado defensor dos direitos humanos tinha feito campanha contra o regime baathista e teve de se exilar na Europa: primeiro na Alemanha, depois no Reino Unido, onde permaneceu até à queda de Saddam Hussein em 2003.

Reconhecido pelos americanos pelas suas capacidades de recolha e análise de informações, foi nomeado chefe do Serviço Nacional de Informações iraquiano, cargo que assumiu em 2016, quando o Iraque estava em plena guerra contra o grupo Estado Islâmico.

Kazimi tem sido poupado até agora, apesar de a imprensa estar repleta de informações sobre o desvio de fundos públicos, que desde a invasão americana do Iraque em 2003, há vinte anos, terá ascendido a várias centenas de milhões de dólares para bancos fora do Iraque. 

Elizabete Tsurkov

No que parece ser um indício da sua conivência ocidental, Moustapha Kazimi foi informado da presença no Iraque da académica Elizabeth Tsurkov, raptada em Março de 2023 por milícias xiitas iraquianas próximas dos Guardas da Revolução iranianos, as brigadas do Hezbollah (Kataeb Hezbollah).

Kazimi tinha conhecimento da presença desta investigadora, que tem dupla nacionalidade russa e israelita, bem como das suas actividades e dos perigos que corria, e tinha informado Moscovo e Washington. Elizabeth Tsurkov apresentou-se no Iraque como estando a preparar uma tese de doutoramento na Universidade de Princeton.

Desde a guerra da Síria (2010-2011), tinha desenvolvido uma rede de contactos no seio dos grupos rebeldes sírios. No Iraque, a sua investigação centrou-se nas milícias xiitas iraquianas. Foi consultora do Conselho do Atlântico e do Instituto Europeu para a Paz.

Veja este link sobre este caso: https://www.lemonde.fr/international/article/2023/07/06/une-chercheuse-israelo-russe-kidnappee-en-irak_6180722_3210.html

O sinal de alarme de Adel Abdel Mehdi: 450 mil milhões de dólares desapareceram entre 2003 e 2015

Adel Abdel-Mehdi, ex-primeiro-ministro de 25 de Outubro de 2018 a 7 de Maio de 2020, foi o primeiro a dar o alarme, revelando que quase 50% do orçamento iraquiano entre 2004 e 2015, que ascendia a 850 mil milhões de dólares, se tinha evaporado, ou seja, 450 mil milhões de dólares de receitas fiscais tinham sido pilhados, dirigindo-se para a Suíça, para a City de Londres e até para o Dubai.

Nascido a 1 de Janeiro de 1942 em Bagdade, Adel Abdel-Mahdi foi membro do poderoso partido xiita Conselho Islâmico Supremo Iraquiano, ou SIIC, até 2017.

Há muito sediado no vizinho Irão, o grupo opõe-se à administração norte-americana do país, mantendo ligações estreitas com grupos apoiados pelos Estados Unidos que se opunham a Saddam Hussein, incluindo os curdos e o Congresso Nacional Iraquiano.

Filho de um guerrilheiro de 1920, Adel Abdel-Mehdi foi educado no Colégio dos Jesuítas em Bagdade. Aderiu ao Partido Baath em 1960, mas abandonou-o após quatro anos, em 1964.

Sob a presidência de Abdel Karim Kassem, foi julgado pelas suas ideias nacionalistas árabes e preso. Em Fevereiro de 1963, foi libertado pela Revolução Baathista. Após a sua libertação, Adel Abdel-Mehdi foi nomeado vice-presidente da União Nacional dos Estudantes Iraquianos.

Em 1969, decide exilar-se em França. Falante de francês e pai de quatro filhos, todos de nacionalidade francesa, assumiu durante a sua estadia em Paris a direcção do Instituto Francês de Estudos Islâmicos. Tem um doutoramento em economia e é autor de uma enciclopédia económica árabe.

Em 2007, Adel Abdel-Mehdi foi vítima de um atentado em que foram mortas quatro pessoas, mas escapou apenas com ferimentos ligeiros.

Em Setembro de 2014, foi nomeado ministro do petróleo do governo de Haïdar al-Abadi. Em Março de 2016, demitiu-se do governo. Dois anos mais tarde, tornou-se primeiro-ministro em 3 de Outubro de 2018.

Em 1 de Outubro de 2019, foi alvo de protestos à escala nacional que causaram quase 100 mortos e 3000 feridos. Em 29 de Novembro, anunciou a sua demissão, que foi aceite pelo Parlamento em 1 de Dezembro.

Ministro das Finanças do governo provisório de Iyad Allawi, foi durante o seu mandato como ministro das Finanças que a dívida do Iraque foi consideravelmente reduzida (em 80%) num acordo histórico em 2003 no Clube de Paris que reuniu os principais Estados credores do Iraque.

Assalto do Século

A dimensão do escândalo é tal que a imprensa iraquiana não hesitou em descrevê-lo como o "roubo do século". Os principais escândalos incluem a reparação da rede eléctrica e a compra de detectores de explosivos.

a- Reparação da rede eléctrica.

Os cortes de electricidade são frequentes no Iraque, com uma média de 18 horas por dia. O Governo tinha afectado 30 mil milhões de dólares à reparação da rede eléctrica. Mas os milhares de milhões perderam-se e a energia não foi restabelecida.

b- Detectores de explosivos:

O Iraque encomendou ao Reino Unido 6000 detectores de explosivos no valor de 400 milhões de dólares. Quando foram utilizados, estes detectores revelaram-se inoperantes, provocando a morte de vários milhares de iraquianos devido à explosão de cargas.

c- A inspecção surpresa das casernas de Bagdade pelo Ministro da Defesa iraquiano: para onde foram os milhares de milhões de dólares gastos na defesa?

Sintomático da deterioração geral dos serviços públicos iraquianos foi a inspecção surpresa efectuada por Thabet Al Abassi, Ministro da Defesa do Iraque, ao quartel da 6ª Divisão de Bagdade, responsável pela defesa da capital.

Consternado e chocado com o estado de degradação das instalações, o ministro exclamou: "Que estado deplorável! Onde estão os milhares de milhões de dólares gastos na defesa? Que dormitório para seres humanos. Como é que se pode tolerar viver em tais condições? Ninguém aceita viver em tais condições e, se vocês aceitam, eu não aceito por vocês", prosseguiu com raiva.

O ministro efectuou a sua inspecção surpresa num táxi, acompanhado por apenas um funcionário. Prometeu que iria fazer mais para ter uma ideia clara do estado da defesa do país.

Formado em ciências militares, Abbassi foi nomeado Ministro da Defesa do governo de Mohamad Chayyah Al Soudani em 27 de Outubro de 2022, por recomendação do seu grupo parlamentar "Azm" (Determinação), que, com 20 membros, é o segundo maior grupo (sunita) do parlamento iraquiano, presidido por Mohamad Halboussi.

O relato desta inspecção surpresa neste link, cf Ar Rai Al Yom 10 de abril de 2023

O assalto de Donald Trump

Donald Trump não se deixará perturbar por considerações protocolares. Ao estilo dos cowboys do Oeste Selvagem, o presidente americano vai efectuar um assalto ao saque iraquiano. Recém-eleito e empossado em Janeiro de 2017, Donald Trump inaugurou o seu mandato com um grande golpe financeiro.

À maneira do novo "capo" das máfias, para marcar a sua tomada de poder, ordenou ao Tesouro americano que congelasse as contas bancárias de uma vintena de altos dirigentes iraquianos, que chegaram ao poder após a invasão do Iraque em 2003. O Tesouro americano identificou 22 contas bancárias financiadas em dólares americanos, num total de 553 mil milhões de dólares! 22 contas bancárias pertencentes a figuras políticas iraquianas, a grande maioria das quais está actualmente no poder, consideradas aliadas dos Estados Unidos.

"Em reparação do sangue americano derramado no Iraque".

Surpreendentemente, o Presidente Trump considerou que este dinheiro confiscado pertencia legitimamente ao povo americano "em reparação do sangue derramado pelos soldados americanos no Iraque".  Este dinheiro foi acumulado ao longo de uma década pelas novas elites iraquianas que surgiram após a invasão do Iraque pelo presidente norte-americano George Bush, e provém da apropriação indevida de dinheiros públicos iraquianos através de transacções estatais, principalmente nos sectores do petróleo e da reconstrução.

Nenhuma conta em nome do clã Saddam Hussein

É de salientar que o Tesouro americano não encontrou qualquer conta bancária em nome do Presidente Saddam Hussein ou dos seus filhos, nem em nome de Tarek Aziz, o seu antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Taha Yassine Ramadan ou Izzat Ibrahim al-Douri, o sucessor de Saddam Hussein à frente da guerrilha anti-americana Ba'athist, ou qualquer outro dos rostos que figuram na sua macabra carta de baralho, nem qualquer ministro iraquiano que tenha sido membro de sucessivos governos durante o longo reinado do regime Ba'athista.

Lista dos dirigentes iraquianos despojados dos seus milhares de milhões de dólares, dirigentes que até à data não protestaram nem levaram o seu caso aos tribunais americanos:

§  Nouri al-Maliki, 66 mil milhões de dólares

§  Massoud Barzani, 59 mil milhões de dólares,

§  Bahaa al-Araji, 37 mil milhões de dólares

§  Adel Abdel-Mahdi, 31 mil milhões de dólares

§  Baqir Jabr al-Zubeidi, 30 mil milhões de dólares

§  Rafaa al-Issawi, 29 mil milhões de dólares

§  Saleh al-Mutlaq, 28 mil milhões de dólares,

§  Osama al-Noujaifi, 28 mil milhões de dólares

§  Adnan al-Assadi, 25 mil milhões de dólares

§  Hoshyar Zoubeiri, 21 mil milhões de dólares

§  Mohamed al-Karbouli, 20 mil milhões de dólares

§  Mohamed Derradji, 19 mil milhões de dólares

§  Ali al-Allaq, 19 mil milhões de dólares

§  Saadoun Dlimi, 18 mil milhões de dólares

§  Haydar Al-Abadi, 17 mil milhões de dólares

§  Farouk al-Araji, 16 mil milhões de dólares

§  Salim al-Jabouri, 15 mil milhões de dólares

§  Ahmed Nouri al-Maliki, 14 mil milhões de dólares

§  Ali al-Yasari, 12 mil milhões de dólares

§  Hassan al-Anbari, 7 mil milhões de dólares

§  Tariq Najm, 7 mil milhões de dólares

https://www.madaniya.info/2018/03/22/le-hold-up-americain-sur-le-pactole-irakien-source-dinspiration-pour-son-poulain-saoudien-mohamad-ben-salmane-sur-le-magot-saoudien/

O custo da invasão americana do Afeganistão e do Iraque: 8 triliões de dólares

A "guerra contra o terrorismo" liderada pelos Estados Unidos matou quase um milhão de pessoas em todo o mundo e custou mais de 8 mil milhões de dólares desde que foi lançada em 2001, de acordo com um relatório do projecto Custos da Guerra da Universidade de Brown. O relatório estima que a guerra contra o terrorismo matou directamente entre 897.000 e 929.000 pessoas, incluindo pelo menos 387.072 civis. Em 2015, os Médicos para a Responsabilidade Social, galardoados com o Prémio Nobel, estimaram que mais de um milhão de pessoas tinham sido mortas directa e indirectamente só nas guerras do Iraque, Afeganistão e Paquistão.

Entre os custos económicos registados no seu relatório, Costs of War enumera 2,3 triliões de dólares gastos pelos Estados Unidos em operações militares no Afeganistão e no Paquistão, 2,1 triliões de dólares no Iraque e na Síria e 355 mil milhões de dólares na Somália e noutras partes de África.

Num relatório publicado em 2022, o Costs of War calculou que a guerra contra o terrorismo deslocou pelo menos 37 milhões de pessoas, para além das centenas de milhares de vítimas directas da violência.

As autoridades também falsificaram deliberadamente as informações sobre as mortes causadas pelas forças norte-americanas: "O Gabinete de Influência Estratégica (OSI) do Departamento de Defesa dos EUA (2001-2002), de curta duração, é um exemplo notável de desinformação produzida pelo governo para induzir a opinião pública a apoiar a sua política no Iraque", referem os autores do relatório intitulado "Casualty Figures after 10 years of the War on terror".

https://www.middleeasteye.net/fr/opinion-fr/irak-guerre-invasion-etats-unis-destruction-corruption-sectarisme-democratie

PARA IR MAIS LONGE NO MESMO TEMA

§  https://www.madaniya.info/2018/09/21/le-martyrologe-scientifique-irakien/

§  A versão árabe do "assalto do século", ver este link Ar Rai al Yom terça-feira, 4 de março de 2023

§  E o jornal libanês Al Akhbar

 

Fonte: Irak 1/3 – L’Irak post Saddam Hussein, une République de brigands – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




Sem comentários:

Enviar um comentário