segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Da Revolta Bíblica através da Alegria à Alegria Bíblica da Revolta

 

A Revolta não é incompreensível
senão para a velha ordem

 Fevereiro 19, 2024  Robert Bibeau  


Por Khider Mesloub.

 


Como foi proclamado no rescaldo do Maio de 68, tudo é político. Até bater no filho ou dar uma bofetada na mulher. Em todo o caso, nestes numerosos actos de natureza manifestamente política, só uma parte retira benefícios, ou mesmo um prazer sádico. A outra parte sofre o mal, a injustiça. Só uma parte obtém um prazer perverso à custa da outra. Tal como na cena política dilacerada pela luta entre as duas classes fundamentais antagónicas, um verdadeiro equilíbrio de forças domina este tipo de relações e de comportamentos. Uma relação assimétrica move estas duas partes. Um domina, o outro sofre. Um dita, o outro obedece.

O exercício da escrita é tanto mais político quanto mais o for. No entanto, a escrita é a única actividade em que é exercida para enriquecer intelectualmente o outro, em que é aplicada para elevar a alma do seu vizinho: o leitor. Estabelece-se uma verdadeira cumplicidade intelectual entre o escritor e o leitor. Uma verdadeira convergência espiritual aproxima estes dois seres complementares. Esta cumplicidade intelectual é criada através da escolha dos termos utilizados e da selecção dos temas apresentados.

A escrita é, sem dúvida, um exercício político. "A escrita é a continuação da política por outros meios", observa o escritor Philippe Sollers. O filósofo Gilles Deleuze escreveu que "o objectivo da escrita é dar vida a um estado de poder não pessoal". Por outras palavras, não escrevemos para nós próprios, mas para os outros.

Pela minha parte, quando decido digitar no computador para escrever um texto para um jornal argelino ou canadiano, ou para escrever um livro, não é certamente para tocar uma sinfonia editorial para adormecer os leitores com uma prosa hipnótica, narcótica e anestésica. Nem para vestir o manto do Profeta da Verdade Revelada. Nem vestir o traje moderno do guru desejoso de doutrinar os leitores para que se submetam a uma capela ou a uma mesquita. Nem para me transformar num tribuno do povo com o programa político perfeito para um partido institucional ao qual os leitores devem aderir servilmente. Nem concorrer a um lugar oficial para roubar mais do erário público com o aval dos leitores enfeitiçados pela minha retórica politicamente aliciante, sedutora e prometedora, à maneira dos políticos.

Inimigo do poder e do dinheiro, as duas mamas que alimentam as ambições dos seres desprovidos de alma humana, não cobiço nem a fama nem a riqueza, as duas toxinas que alimentam as bestas selvagens disfarçadas de seres humanos (seres que cheiram o dinheiro como o oxigénio da vida). Não sendo jornalista, nem académico, nem investigador (e muito menos descobridor), escrever é para mim um júbilo, um júbilo delicioso. Uma festa poética, uma poesia festiva. É por isso que me deixo levar alegremente pelos caminhos escriturais da estilística metafórica, pelos caminhos da prosa eufórica, pelas rotas da escrita orgásmica, para evitar as armadilhas do caminho académico batido, os becos sem saída dos registos editoriais herméticos consensuais.

A escrita deve ser um arco-íris textual. Todas as cores da vida devem estar impressas em cada texto. Cada texto deve ser colorido por todas as paletas estilísticas literárias.

A GUERRA ESMAGA UM POUCO MENOS A NOSSA CARNE
MAS ELA CUSTA BASTANTE MAIS CARO

Um texto deve ter as mesmas virtudes que o acto de amor: deve ser partilhado a dois, proporcionando o mesmo prazer ao escritor e ao leitor. Caso contrário, a escrita reduz-se a um mero onanismo intelectual, a uma masturbação escriturística.

A leitura é a apoteose da escrita. O leitor é o ponto alto da prosa. Quando se decide passar um texto para o ecrã, a alegria deve ser vista na sua forma editorial estilizada. A beatitude envolve a sua mensagem. O seu fervor subversivo deve conquistar o leitor, acender o seu espírito rebelde e galvanizar o seu espírito insurreccional. Acima de tudo, o texto deve inserir-se no nosso contexto.

Respirar o ar intelectual do nosso tempo. Reflectir a atmosfera cultural da modernidade. Traduzir as preocupações e as aflições do nosso tempo. Revelar as contradições e as divisões sociais do nosso tempo. Exprimir a revolta dos humildes. Encarnar as suas esperanças. Personificar os seus sofrimentos. Materializar as suas reivindicações. Iluminar a sua situação que foi obscurecida. Desmistificar a sua alienação.

O texto deve cheirar à fragrância miserável e revoltante das nossas casas de colmo proletárias, e não ao aroma sumptuoso e indecente dos palácios burgueses.

É proibido proibir!

 O meu lema: cada frase deve cantar o hino da alegria num texto de revolta. Cada   revolta deve ser carregada por frases que cantam o hino à alegria.

 As revoltas de desespero surgem muitas vezes com entoações lamentosas na boca   e tons vingativos na caneta. Não é de admirar que sucumbam rapidamente aos   instintos assassinos e sacrificiais. E acabam por perecer por falta de   encantamentos humanos salvadores.

 A essas revoltas abortadas faltava o sopro da vida. De poesia revolucionária. De amor pela vida. A linguagem da morte envolveu os seus discursos.

Os seus discursos incendiários imolaram as suas esperanças de emancipação, consumidas pelo fogo de uma acção estéril e politicamente dissolvente. Estas revoltas falharam o encontro com a linguagem política e o compromisso poético.

A inspiração subversiva libertadora nunca se resigna a ir buscar os seus recursos à vox populi, nem se apoia nas directivas do pensamento dominante. O homem em revolta que se reconecta com a sua poesia subversiva não precisa de um glossário político académico.

Assim que a histeria colectiva niilista suplanta a lúcida raiva política, ela concede aos governos a legitimidade para activar a máquina repressiva, para empregar a violência assassina. Não transformemos a insurreição emancipatória numa guerra civil. Só servirá os poderosos. "A ordem sempre precisou se afirmar fomentando a desordem."

Quando a esperança de um mundo melhor se detém ao nível do solo, a abominação sobe ao topo do poder, que esmaga descaradamente a sociedade com a sua governação despótica. Elevemos a esperança de um mundo melhor ao cume da militância emancipadora, para melhor derrubar do seu pedestal a governação tirânica e prevaricadora.

A revolta deve ser uma força explosiva de protesto, não uma farsa de protesto implosivo. Bakunin, o anarquista russo, dizia: "O desejo de destruição é ao mesmo tempo um desejo criador". A maioria das revoltas parece parar a meio desta lição de subversão. Contentam-se em destruir (por falta de um espírito criativo poético ou de um espírito político criativo?).

NÓS NÃO SOMOS NADA,
SEJAMOS TUDO.

 A revolta
é uma narrativa política apoiada num discurso poético. Os surrealistas   defendiam a revolução da poesia, mas também a poesia dentro da revolução. Entre poesia e revolução: a poesia ao serviço da revolução; a revolução ao serviço da poesia. A rebelião através da poesia faz parte de uma abordagem revolucionária. Na ausência de poesia revolucionária, a carga subversiva da revolta é neutralizada, amortecida pelo poder estabelecido. A revolta salutar deve ser escrita na linguagem da vida, para dar origem à linguagem universal da revolução triunfante. Levada pelas palavras poéticas revolucionárias, a revolução triunfará certamente sobre a sociedade responsável pelos nossos males.

A revolta deve evitar concentrar o seu protesto enérgico nos detentores do poder, cujas cabeças podem ser retiradas e substituídas. Deve centrar a sua luta no sistema capitalista. Não são os políticos e governantes vilões que devem ser expulsos, eliminados da paisagem social devastada pelas suas políticas anti-sociais e pela sua governação despótica, mas sim o sistema mafioso e bélico que os produz, ou seja, o modo de produção capitalista que os reproduz. Como escreveu o situacionista Raoul Vaneigem, "a construção de um mundo novo convida-nos a inventar novos modos de subversão".

Não há dúvida de que na nossa sociedade mercantil desenvolvida, onde a inteligência é sistematicamente comprada e vendida, no caso do plumitivo orgânico, a postura do intelectual neutro e objectivo é muitas vezes uma farsa. Com o plumitivo de serviço, o jornalista, o escritor, a cultura elitista exala uma prosa burguesa e uma postura aristocrática por todos os poros. A aridez do seu estilo reflecte a secura da sua alma venal. A secura da sua alma revela a ganância do seu estilo de vida mercantil. Estes escravos da pena só se rebelam com o consentimento dos seus senhores, que lhes ditam as palavras de ordem, o seu léxico ordenado.

Qualquer sociedade dividida e hierarquizada, dividida em duas classes antagónicas, é necessariamente idealista: a elite esclarecida dita as normas e a "massa bruta" deve submeter-se a elas sem questionar.

Na nossa época venal, dominada pelo capital, os pensadores contemporâneos são forçados à mediocridade ou ao silêncio. Quando adoptam a primeira opção, com um sentido cortesão e vil, os intelectuais orgânicos costumam dizer em público, servilmente, o que engoliram inteiro nos recintos da sua classe escolar e no seio da sua categoria social privilegiada. Adornado com conhecimentos venais estranhos à escola da vida, o seu discurso exala o fedor pútrido da sua casta intelectual, da sua classe burguesa pestilenta.

Nesta sociedade da divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, a pena do intelectual orgânico serve para nos despojar da nossa fome de justiça social e da nossa aspiração à dignidade, e para tecer coroas retóricas para os seus senhores, a fim de perpetuar a nossa alienação e justificar e legitimar a nossa servidão. Mergulhada em tinta religiosa ou republicana, liberal ou de esquerda, a sua pena é semelhante à pregação das religiões da resignação. O seu saber oficial, extraído do templo do conhecimento santificado pela doxa estatal que garante uma cultura estática, não é susceptível de inflamar os espíritos sedentos de erupções políticas, famintos de abalos sísmicos sociais, impacientes de transformações económicas, ávidos de igualdade social, amantes irredutíveis da emancipação do homem oprimido.

É pouco provável que os escritos do intelectual orgânico consigam cativar a precária multidão letrada, encantar a sua imaginação, refreada pelos poderes estabelecidos, silenciada pelas classes proprietárias detentoras exclusivas dos meios de comunicação e dos instrumentos culturais.

Hoje, na era do declínio da sociedade capitalista governada por plutocratas gangrenados pela decrepitude física e pela senescência mental, a inteligência radical e a inventividade política residem nos cérebros dos novos proletários, instruídos, diplomados, amantes da liberdade, sedentos de justiça social, portadores de ideais universais e de projectos emancipatórios.

Argelino, mas sobretudo proletário, cidadão do mundo e internacionalista, filho (neto, sobrinho, primo, filho de uma aldeia e de uma região da Cabília) de um Moudjahid - combatente anti-colonialista - procuro apenas, modestamente, agitar as consciências letárgicas para as convidar à reflexão política, à introspecção interior, à defecação de toxinas comportamentais nocivas ao desenvolvimento da nossa personalidade e, consequentemente, ao advento da emancipação da nossa classe social maioritária (os povos oprimidos do mundo), à construção de uma sociedade universal, humana e sem classes.

Finalmente, como argelino, aspiro também a ser a má consciência da Argélia. Aquele que, por humildade e humanidade, aponta as disfunções do nosso país, as aberrações da nossa sociedade, os arcaísmos do nosso universo cultural, as purulências das nossas práticas culturais, os anacronismos patológicos da nossa mentalidade pessoal. Todos aqueles que denunciam o conformismo moral, o conservadorismo comportamental, as convenções sociais ultrapassadas, os arcaísmos societais religiosos ou étnicos, a ordem capitalista dominante, a polícia do pensamento islâmico e berberista, as injustiças sociais. Todos os que querem libertar a sociedade argelina das instituições repressivas e das alienações depressivas. Quem quiser transformar o mundo para mudar a vida.

Mas para mudar a vida, parece essencial transformar o mundo. Em suma, através das minhas modestas rebeliões escriturísticas, tento desmistificar e libertar dos seus aspectos místicos as nossas maneiras de pensar, as nossas maneiras de existir, as nossas maneiras de compreender a realidade e a política, as nossas maneiras de analisar as nossas convergências e, sobretudo, as nossas divergências em matéria política, filosófica, educativa e religiosa.

Cada um de nós é então livre de acrescentar a sua contribuição reflexiva e combativa ao edifício deste empreendimento para dinamitar o nosso modo de ser regressivo, para pulverizar a nossa sociedade argelina opressiva, repressiva e depressiva.

Para mim, cada escrito grita de revolta. Cada escrito descreve a opressão da vida, descreve a exploração salarial, grita contra a alienação. Depois, cabe a cada leitor partilhar este grito de revolta, revoltar-se contra o meu grito ou condenar a minha escrita.

"Ninguém mente mais do que um homem indignado", escreveu Nietzsche. A indignação não é digna de um homem digno. Só o homem indignado leva bem alto a bandeira da dignidade. A revolta é filha da revolução. A revolução é apenas o salto qualitativo das revoltas quantitativas e repetitivas. A indignação é a filha natural da resignação. Protesta contra a alienação da sociedade com a bandeira do fatalismo, a mentalidade da lealdade e o espírito do legalismo.

Nenhum sistema despótico pode conter a força de subversão que espreita no corpo social do povo oprimido, latentemente trabalhada pelo fermento da revolta, emboscada na mente de cada proletário instintivamente apaixonado pela liberdade.

Por mais assustador que seja o poder da opressão, por mais longo que seja o servilismo fatalmente aceite, basta um lampejo de consciência humana para abalar a máquina opressora, acender as brasas férteis da revolta social e galvanizar o espírito da revolução. A sociedade de classes gera sistematicamente uma poesia insurreccional que se transforma inevitavelmente numa narrativa revolucionária.


Para matizar este optimismo salvífico, termino com esta citação do poeta-escritor surrealista André Breton, tão actual ainda, mas nos nossos céus argelinos islâmicos dominados pelo fatalismo social e pelo fanatismo religioso: "Enquanto as orações forem feitas para serem recitadas nas escolas sob a forma de explicações de textos e de passeios pelos museus, gritaremos despotismo e procuraremos perturbar a cerimónia", escreveu. Parafraseando-o, mas em sentido inverso, acrescentaria que: enquanto as escolas argelinas continuarem a ser transformadas em anexos de mesquitas, os espaços públicos em depósitos de roupa, os edifícios nacionais em sentinelas arquitectónicas e os meios audiovisuais nas fossas culturais dos países islamistas do Golfo, o despotismo político e religioso argelino poderá continuar o seu passeio tirânico e teocrático sem encontrar perturbações verdadeiramente emancipatórias. Nem, portanto, uma revolta social consciente e poética, capaz de mudar a vida através da transformação revolucionária da sociedade argelina.

Nietzsche dizia: "A crença de que nada muda provém ou de má visão ou de má fé. A primeira pode ser corrigida, a segunda pode ser combatida.

Será que a Argélia está a sofrer de má visão ou de má fé? Eis a questão.

Khider MESLOUB

 

Fonte: De la révolte scripturale par la joie à la joie scripturale de la révolte – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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