19 de Outubro de 2021 Robert Bibeau
Alastair Crooke – setembro 2021 – Fonte de Cultura Estratégica
Washington não sabe o que fazer depois
do fim caótico da guerra "eterna" da América. Alguns
em Washington lamentam ter sido retirados do Afeganistão e apelam a um regresso
imediato; outros só querem seguir em frente - para a "Guerra
Fria" com a China, é claro. Os gritos suscitados pela debandada
inicial do Establishement e a
expressão da sua dor face ao desastre da retirada de Cabul, no entanto, indicam
como o foco quase obsessivo na obstrução da China parece, no entanto, ser uma
retirada humilhante para os falcões americanos, habituados a intervenções mais
abrangentes e ilimitadas.
Isto é, de facto, uma retirada. "Roma" relegou as suas "províncias remotas" à sua própria sorte, e até o seu pequeno círculo de fiéis foi despromovido à indiferença "benigna". Trata-se de uma aproximação ao "centro", cerramos fileiras para melhor reunir as forças para um ataque à China.
Há as regiões
complacentes que os americanos ocuparam após a Segunda Guerra Mundial (Japão e
Alemanha psicologicamente assustados), e depois há o império mundial americano,
que existe quimericamente onde quer que o poder comercial e cultural dos
Estados Unidos se expanda, e na prática na sua manta de retalhos de estados
clientes e instalações militares. Este terceiro império é considerado por
muitos americanos como o seu feito mais notável – um triunfo da "Cidade
da Luz".
A cena final da era pós-11 de setembro no aeroporto de Cabul, digna do
resultado da degustação na casa do Chapeleiro Louco, no entanto, foi uma clara
recordação do fim do Império Romano. Sim, o fracasso no Afeganistão pode ter ocorrido
longe de Roma, mas algo mais profundo paira no ar hoje: uma mudança de era.
E as derrotas nas fronteiras distantes podem ter consequências profundas –
mais próximas do núcleo imperial – à medida que a sensação de declínio imperial
acelerado se espalha nos debates nacionais, alargando já as divisões
ideológicas.
Um consenso nacional bem estabelecido pode mudar muito lentamente e,
depois, sob a pressão certa, tudo de uma vez. E de muitas formas subtis e por
vezes caóticas, este gatilho para a mudança veio de Trump. Nem pomba nem
sistematista, no entanto, tornou o realismo e o anti-intervencionismo quase
respeitáveis novamente.
Elbridge Colby, que
esteve no Pentágono de Trump para ajudar a desenhar a sua estratégia de defesa
nacional, publicou um novo livro, "A Estratégia de Negação: Defesa Americana na Era
do Grande Conflito de Poder", que defende uma política
externa que deixa para trás na era pós-11 de Setembro. O círculo exterior
da "periferia" é reduzido a uma
gestão da necro-tecnologia para além do horizonte, e "províncias próximas do império", como
a Europa, são consideradas
"atracções" em comparação com o evento principal, a China. Concentrar-se no Irão
ou na Coreia do Norte, diz, é simplesmente um equívoco.
Trata-se de um "livro realista, centrado
na tentativa da China de se estabelecer na Ásia como a ameaça mais importante
do século XXI", escreve Ross
Douthat no NY Times. "Todos os outros desafios são
secundários: só a China ameaça profundamente os
interesses americanos, através de uma consolidação do poder económico na Ásia
que compromete a nossa prosperidade, e através de uma derrota militar que pode
destruir o nosso sistema de alianças. Por isso, a política dos EUA deve ser
organizada de forma a negar a hegemonia regional de Pequim e dissuadir qualquer
aventureirismo militar – em primeiro lugar, através de um compromisso mais
forte para defender a ilha de Taiwan."
A "estratégia de negação" apresenta uma
versão particularmente pouco sentimental de um consenso de Washington que está
a consolidar-se rapidamente. O discurso de Biden justificando a retirada do
Afeganistão, acabando com a construcção da nação e focando-se na luta contra o
terrorismo – embora mais moderado – diz o mesmo que Colby.
As contradições
implícitas da guerra contra o terrorismo e a ocidentalização coerciva da era 11
de Setembro podem ter-se tornado demasiado óbvias hoje, com a retrospetiva do
20º aniversário, mas outras contradições do eixo "Conter a China" são potencialmente tão
fatais para o seu sucesso, assim como os pressupostos erróneos que sustentaram
o zeitgeist da era pós-11 de Setembro.
A sua contradição mais
fundamental é que, longe de fornecer o bálsamo em torno do qual os americanos
se podem reunir e unificar, o eixo para a China é susceptível de apenas
desintegrar a argamassa de uma "nação" heterogénea que está cada vez mais
virada para dentro.
Primeiro, de acordo
com o "novo
consenso",a melhor maneira de a América enfraquecer a China é torná-la "o mundo contra a China" – confrontando-a com uma
ampla coligação transnacional, baseada na luta de valores entre a democracia e
o autoritarismo. Sim, mas repete o erro por detrás da política de 11 de Setembro
– assumir que o resto do mundo ainda admira a democracia liberal americana e
aspira a emulá-la. Veja o que aconteceu no Afeganistão. O mundo mudou – a
deferência aos valores ocidentais evaporou-se.
Houve um tempo em que
os "pró-europeus" estavam também
convencidos de que o mundo seria quase inevitavelmente refeito à imagem do
Ocidente, que estava constantemente a expandir as suas regras e a exportar o
seu modelo. Desde então, até os europeus perderam a confiança na sua visão de
mundo e tornaram-se psicoticamente mais defensivos (imaginando "ameaças" iminentes de todo o lado e
de todos). E como o modelo europeu se esvaziou da sua substância, tornando-se
menos credível, a Europa também cedeu ao mercantilismo bruto. A lógica da
situação europeia é clara. Precisa da China, mais do que a China precisa da
Europa.
Seria, portanto, um
grande exagero para Washington imaginar que "o resto do mundo" poderia ficar do
lado dos seus valores democráticos contra o "autoritarismo" da China. Como recordação,
a democracia americana tem sido manchada aos olhos do mundo à luz das eleições
de 2020. E cerca de 70 a 80 milhões de americanos também partilham desta
opinião. Vimo-lo todas as noites nos nossos ecrãs.
Em segundo lugar,
assume que o sistema económico capitalista e "corporativo" americano é um
trunfo considerável na Guerra Fria contra a China. Bem, não é esse o caso. A
China tem os seus problemas económicos, certamente, mas ao contrário da maioria
dos Estados ocidentais, está a tentar afastar-se do neo-liberalismo bruto e da
liquidez interminável – como se, armados com um martelo, todos os seus
problemas se tornassem pregos. A China está deliberadamente a afastar-se das
distorções deste modelo, do aumento do custo da habitação e da vida, das
enormes desigualdades e dos danos sociais colaterais. Seria um erro
subestimar a
"atracção" desta visão diferente (mesmo para os europeus). A China é, por si só, um polo
civilizacional.
Em terceiro lugar,
existe uma contradição fundamental em focar-se como um laser no objetivo de"dificultar a China",quando isso só é feito
à custa da alimentação do sentimento de declínio imperial acelerado dos
americanos que resulta em tensões internas.
É o argumento de Pat
Buchanan num artigo intitulado "Quem e o que está a destruir os EUA?" Responde:
Depois do 11 de Setembro, Bush invadiu o Afeganistão e o Iraque. O Presidente Barack Obama atacou a Líbia e mergulhou-nos nas guerras civis sírias e iemenitas. Assim, em 20 anos, fomos responsáveis pela morte de centenas de milhares de pessoas e expulsamos centenas de milhares de pessoas das suas casas e países. Os americanos são assim tão inconscientes? ... Muitos destes povos querem que deixemos os seus países pela mesma razão que os americanos dos séculos XVIII e XIX queriam que os franceses, britânicos e espanhóis deixassem o nosso país e o nosso hemisfério.
Ao contrário das gerações anteriores, as nossas divisões no século XXI são muito mais amplas – não só económicas e políticas, mas sociais, morais, culturais e raciais. Aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e direitos transgénero dividem-nos. O socialismo e o capitalismo dividem-nos. Acção afirmativa, black lives matter, crime urbano, violência armada e teoria da raça crítica dividem-nos. Alegações de privilégio branco e supremacia branca, e exigências de igualdade de oportunidades para dar lugar à justiça das recompensas, dividem-nos. Na pandemia COVID-19, usar máscaras e obrigações de vacinação dividem-nos.
"O debate sobre a identidade
nacional americana é sete vezes amaldiçoado", escreve Darel Paul,
professor de ciência política na Williams College:
Os Estados Unidos são mesmo uma "nação"? No sentido de uma
ascendência comum (a raiz da "nação" é a nasci latina, a nascer) –
claramente não. O medo generalizado de um sentido tão étnico de identidade
americana suscita uma hostilidade considerável à própria ideia de nacionalismo.
A maioria das elites americanas prefere palavras como
"patriotismo"... O problema desta concepção de patriotismo é que é uma
argamassa fraca. A história recente dos Estados Unidos oferece amplas provas
disso. Em vez de objectos de acordo – a liberdade, a igualdade, os direitos
individuais e a autodeterminação dos povos - são, pelo contrário, objectos de
discórdia.
Aqui chegamos à verdadeira argamassa da América: desde a fundação do país
no calor da guerra, os Estados Unidos têm sido um império republicano
expansionista sempre incorporando novas terras, novos povos, novos bens, novos
recursos, novas ideias. Este "império da liberdade", como Thomas
Jefferson lhe chamou, não conhecia limites... A contínua expansão militar,
comercial e cultural de Jamestown e Plymouth tem cultivado a turbulência,
vigor, optimismo, autoconfiança e amor à glória pela qual os americanos são conhecidos
há muito tempo. A argamassa da América sempre foi, portanto, o que Niccolò
Maquiavelli chamou de virtù ao serviço de uma "riqueza comum em
expansão". Tal república ainda está em tumulto, mas um tumulto que, se
devidamente ordenado, encontra a sua glória...
O movimento para a frente torna-se assim o elemento vital de tal entidade
política. Sem isso, o propósito dos laços cívicos de unidade é inevitavelmente
posto em causa. Uma América que não é um glorioso império republicano em
movimento não é uma América, ponto final. Esta parte do mito americano, Lincoln
não o mencionou em Gettysburg.
Desde a década de 1960,
a glória do império americano da liberdade tem ficado manchada. Desde meados
dos anos 2010, tem sido submetido a um ataque interno sustentado. Os fracassos
do objectivo nacional no Vietname, no Iraque e no Afeganistão são amplificados
pelo fracasso da mundialização em gerar riqueza comum para a Comunidade. Se os americanos não estão unidos
por uma grandeza republicana expansionista, então de que serve todas estas
raças, crenças e culturas heterogéneas? Se a crença de que a autodeterminação
das pessoas pode desaparecer da terra sem a unidade americana pode ser
plausível em 1863 ou 1941, é difícil vender em 2021.
Esta luta contra a China faz sentido? Poderá a América, cujo sistema económico e financeiro é agora muito precário, dar-se ao luxo de empurrar a China para uma situação económica desfavorável? Poderá a América, que deslocou grande parte da sua capacidade de produção para a China, por causa de lucros a curto prazo, dar-se ao luxo de descolar? Será que os líderes empresariais americanos realmente partilham da opinião de que a (inevitável) consolidação do poder económico na Ásia põe em risco a prosperidade americana, e que esta consolidação destruiria a ordem imperial baseada no dólar? É possível. Temem-no.
Alastair Crooke
Traduzido por Zineb,
revisão por Wayan, para o Saker Francophone
Fonte: La guerre froide avec la Chine va désagréger le ciment de l’Amérique – les 7 du quebec
Este
artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice
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