terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Geopolítica e religião 2/2

 


21 de janeiro de 2025 René Naba

RENÉ NABA — Este texto é publicado em parceria com www.madaniya.info.

Geopolítica e religião 1/2 - https://queonossosilencionaomateinocentes.blogspot.com/2025/01/geopolitica-e-religiao-12.html

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1- Religião

A religião pressupõe a elevação do pensamento em direcção ao seu Deus criador, a piedade, a meditação, a humanidade, a fraternidade, a solidariedade e a caridade. Em suma, belos sentimentos. A julgar pelo número de religiões existentes no mundo, o planeta não deveria ser o paraíso na terra, mas pelo menos um lugar de grande tranquilidade. Mas não é esse o caso. Não é de todo.

Espaço de comunhão e de exclusão, a religião é um espaço de competição: o judeu afirma ser “o povo eleito”, o muçulmano vê-se como pertencente ao “khairou oummaten ounjibat lil nass - a melhor nação oferecida ao Mundo” e o católico pertence à “igreja apostólica universal”.

O judeu encontra-se na Knesseth, a assembleia dos clérigos, o muçulmano em “Al Jameh” (o Recolhedor) e o católico na Igreja - Eklesia assembleia dos fiéis. Os que estão dentro do recinto estão em estado de comunhão. Os que estão fora são infiéis ou renegados, em qualquer dos casos em estado de ex-comunhão.

A tendência para a violência explica-se pela necessidade de preservar a coesão do grupo maioritário e o seu domínio.

A sociologia ensina-o e a prática confirma-o: qualquer pensamento dissidente conduz à repressão porque põe em causa a ordem estabelecida. O bode expiatório escolhido, neste caso, não é o verdadeiro responsável pela desordem.

Ele ou ela é escolhido para ser publicamente reivindicado e torna-se o culpado ideal, na medida em que a sua culpa não põe em causa a ordem social estabelecida.

Na Antiguidade, Jesus Cristo foi crucificado, não tanto pelo seu comportamento criminoso, mas pelas suas intenções pacíficas, na medida em que estas eram a semente de um desafio à ordem romana.

A violência não pode ser reduzida a uma religião específica. O cristianismo, perseguido sob o Império Romano, vai, por sua vez, infligir a inquisição e a perseguição na Idade Média contra os cismáticos, os protestantes ímpios... e noutras partes do mundo, a colonização, a escravatura, o tráfico de escravos, a forma mais hedionda de exploração humana.

Nos tempos modernos, a Índia, predominantemente budista e instigadora da não-violência na luta política pela sua independência, viu dois dos seus mais prestigiados líderes, o próprio Gandhi e a Primeira-Ministra Indira Gandhi, morrerem de forma violenta.

A este respeito, vale a pena referir que os massacres entre indianos e paquistaneses durante o desmembramento do Império Britânico Indiano causaram infinitamente mais vítimas na guerra interna entre hindus e muçulmanos do que na sua luta contra o colonizador comum.

A utilização da religião para fins políticos é uma constante na história. Todas as religiões recorreram a ela, em todas as suas variantes, quer se trate da guerra de conquista do cristianismo na América Latina ou das Cruzadas contra o mundo árabe, quer, pelo contrário, da conquista árabe da Ásia e da margem sul do Mediterrâneo ou de África.

A guerra religiosa no seio da cristandade ocidental (entre protestantes e católicos em França ou na Irlanda do Norte), ou a guerra religiosa no seio do Islão (entre sunitas e xiitas), ou finalmente a guerra inter-ocidental, que conduziu ao sionismo, na sequência dos pogroms e do genocídio hitleriano, a forma mais moderna de instrumentalização da Bíblia para fins políticos, através da implementação da noção de regresso a Sião, sobre os escombros da Palestina.

2 – Paquistão e Israel, a entrada em força da religião na política

Na era moderna, o Paquistão e Israel foram o sinal da entrada do religioso no político, nomeadamente na esfera islâmica, cuja instrumentalização mais completa viria a ocorrer 32 anos mais tarde, primeiro com a guerra anti-soviética no Afeganistão, depois contra os países árabes (Líbia, Síria).

Israel: a indemnização final do Ocidente pelo genocídio hitleriano, sub-contratando aos países árabes o anti-semitismo recorrente da sociedade ocidental. Trata-se de uma compensação pela propriedade alheia, gerando uma perversão triangular cujos efeitos se fazem sentir ainda hoje.

Israel foi o primeiro caso de sub-contratação ao Terceiro Mundo do anti-semitismo recorrente da sociedade ocidental e, meio século mais tarde, levou a que o anti-semitismo ocidental fosse trocado pela arabofobia e pela islamofobia, fazendo dos palestinianos os párias absolutos e, da mesma forma, da causa palestiniana o critério da luta anti-imperialista contemporânea.

A avidez da França em adoptar a definição de anti-semitismo formulada pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) testemunha a tetania do debate público em França, em resultado da colaboração nazi do regime de Vichy. Tende a transformar o sionismo na última forma de xenofobia, garantida impunemente pelo apoio ocidental. Mas será que esterilizar o debate público de qualquer crítica a Israel favorece a democracia? Ou, pelo contrário, favorece o autoritarismo e a arbitrariedade?

Será que a França pensou um pouco nos traumas infligidos aos palestinianos pela desapropriação da sua pátria, em resultado de um crime cometido por europeus e de uma divisão arbitrária, na pura tradição colonial? Da ignomínia resultante da indemnização dos bens alheios, a mais completa forma de perversão triangular, na medida em que iliba um criminoso e penaliza um inocente, sem dar plena satisfação ao beneficiário da indemnização, sem apaziguar a sua sede de vingança?

A indiferença dos países ocidentais perante o drama palestiniano e o seu apoio continuado a Israel por causa do genocídio hitleriano leva-nos a perguntar se os palestinianos não serão, de facto, “as últimas vítimas do nazismo”.

O Paquistão foi fundado e desejado pelo Primeiro-Ministro britânico Winston Churchill para retirar da influência soviética uma parte considerável do que era então a Índia pró-soviética e para transformar a “terra dos puros” numa base ocidental e guarda-costas da jovem monarquia wahhabita. Em retrospectiva, parece que os Estados Unidos pagaram à Arábia Saudita um dividendo pela sua conclusão do Pacto de Quincy (1945), que fundou a parceria estratégica entre a grande democracia americana e o regime mais obscurantista do planeta, e a dívida do mundo muçulmano para com o Ocidente. 

3 – A dívida do mundo muçulmano para com o Ocidente

A religião é uma característica dominante do Médio Oriente, o berço das três religiões monoteístas, um caso único no mundo, na medida em que as três grandes religiões monoteístas são originárias da Ásia. Este facto pode explicar, mas não justifica, a virulência dos conflitos inter-religiosos.

Como parceiro importante da Aliança Atlântica durante a Guerra Fria soviético-americana, o mundo muçulmano tem uma dívida de honra para com o Ocidente, com a Turquia como sentinela avançada da NATO no flanco sul da URSS, ampliada pela participação de 50.000 árabes-africanos na guerra contra o Exército Vermelho no Afeganistão, com a participação adicional de quase 2 milhões de árabes-africanos nas duas guerras mundiais contra a Alemanha.

Mas, paradoxalmente, apesar desta contribuição historicamente única, o Islão e os muçulmanos são um dos principais temas da polemologia contemporânea, agora promovidos ao papel de espantalho na produção intelectual ocidental, enquanto os países muçulmanos são os grandes perdedores da cooperação islâmico-ocidental.

A Turquia nem sequer tem assento na União Europeia e nem uma única parcela da Palestina foi devolvida aos palestinianos, ao mesmo tempo que a operação francesa Serval, no Mali, em Janeiro de 2013, para neutralizar o grupo Ansar Eddine do Qatar, e a operação Sangaris, na RCA, libertaram a França da sua dívida para com as tropas ultramarinas. Por outro lado, os apelos do Mufti Youssef Qaradawi da NATO para bombardear os países árabes (Líbia, Síria) libertaram as antigas potências coloniais ocidentais da sua dívida para com os árabes e os muçulmanos.

Depois foi a vez de uma aliança regional e internacional de “Amigos da Síria”. E, por fim, uma nova aliança internacional e regional “Contra o Terrorismo”, na sequência dos excessos sanguinários de Jabhat an Nosra e Da'ech, que sustente uma guerra frontal contra as declinações do conceito de nação, nacionalidade, co-cidadania e nacionalismo árabe que exige e desafia a hegemonia israelo-americana; uma guerra contra os exércitos nacionais árabes, concedendo à hegemonia israelo-americana na região o que esta dupla não conseguiu assegurar nem pela paz nem pela guerra.

O mundo muçulmano tem sido o alvo da piada da estratégia ocidental, e a Palestina a menor das preocupações dos grupos terroristas islâmicos.

A religião é um factor-chave no Médio Oriente, berço das três religiões monoteístas, um caso único no mundo em que as três grandes religiões monoteístas provêm da Ásia. Este facto pode explicar, mas não justifica, a virulência dos conflitos inter-religiosos. Sem ter em conta este facto, os apelos do mufti Youssef Qaradawi, da NATO, para bombardear os países árabes (Líbia, Síria), libertaram as antigas potências coloniais ocidentais da sua dívida para com os árabes e os muçulmanos.

Pior ainda, a guerra anti-soviética no Afeganistão contribuiu para a implosão do império soviético, que tinha actuado como um contrapeso global à hegemonia americana.

Pior ainda, durante o cerco de Beirute, em 1982, quando os últimos elementos do movimento de protesto árabe - os palestinianos e os combatentes progressistas libaneses - se curvavam sob um dilúvio de fogo da força aérea e da marinha israelitas, e Yasser Arafat, o líder da luta nacional palestiniana, era perseguido nos recônditos da capital libanesa, Osama Bin Laden, o líder da Al Qaeda, trombeteava um comunicado de vitória anunciando orgulhosamente, em Agosto de 1982, que os seus homens tinham destruído um comboio de tanques soviéticos, mas nada dizia sobre a Palestina e muito menos sobre o drama de Beirute.

Nem a Al-Qaeda, nem o Daech, nem qualquer dos grupos terroristas islamistas mencionaram uma única vez a palavra Palestina na sua logomaquia. É evidente que a Palestina é a menor das suas preocupações e que o termo nem sequer figura na sua propaganda.

A guerra anti-soviética no Afeganistão foi um sub-produto da luta pela libertação da Palestina, deslocando o belicismo dos islamistas sem noção para cinco mil quilómetros de distância do campo de batalha, contra um país que não tinha uma história colonial com os árabes. É mais parvo do que isso.

A aberração mental continuou durante a chamada “primavera Árabe”, na década de 2010. Assumiu a forma de patrocínio do Qatar, da Turquia e da Arábia Saudita a grupos de oposição off-shore na Líbia e na Síria em 2011, como prelúdio da criação de uma aliança regional e internacional de “Amigos da Síria”.

O resultado final será uma nova aliança internacional e regional “contra o terrorismo”, com os excessos sanguinários de Jabhat an Nosra e Da'ech, sustentando uma guerra frontal contra as declinações do conceito de nação, nacionalidade, co-cidadania e nacionalismo árabe que exige e desafia a hegemonia israelo-americana;

Uma guerra contra os exércitos nacionais árabes, concedendo à hegemonia israelo-americana sobre a região o que esta dupla não conseguiu assegurar nem pela paz nem pela guerra. 

4- Islamismo político, uma teologia da libertação?

Basta de charlatanismo ideológico: a expressão “o islamismo político, sob a forma de teologia da libertação, é um grande logro”.

A fábula de que o islamismo é a versão muçulmana da teologia da libertação do mundo ocidental é uma farsa.

A teologia da libertação no Ocidente, nomeadamente na América Latina, tem sido uma “aliança de classes”. Uma “aliança horizontal”, ou seja, uma aliança de camponeses, operários, crentes ou não crentes, cristãos ou não cristãos, mulheres e homens, civis e padres contra a hierarquia religiosa e a hierarquia militar, a junta no poder na América Latina, bem como os capitalistas.

Quem não participava na luta de libertação era ignorado, posto de lado. Não houve violações, nem profanações, e muito menos destruição de símbolos religiosos como os Budas de Bamyan ou as estelas de Timbuktu do Islão Negro. O objectivo era libertar o povo de todas as formas de opressão.

O islamismo, apresentado como a teologia da libertação no Islão, é uma “aliança sectária”. Uma “aliança vertical” constituída EXCLUSIVAMENTE, BEM EXCLUSIVAMENTE, por muçulmanos sunitas do movimento salafista takfirista.

O objetivo é a primazia sunita do rito wahhabita e a sua submissão ao império americano, principal protector de Israel, e não o derrube da ordem social. Qualquer pessoa que não pertencesse ao Islão sunita wahhabita sofria o revés da decapitação ou da conversão forçada ao wahhabismo.

A teologia da libertação na América baseava-se no povo para lutar pela libertação do povo

O islamismo confiava nos inimigos do povo árabe e muçulmano para triunfar sobre os seus antigos colonizadores. Youssef Al Qaradawi, o mufti do Qatar, que implora à NATO que bombardeie a Síria - um país que travou 4 guerras contra Israel - permanecerá uma mancha moral indelével.

O bilionário polígamo lançou o seu apelo a partir de Doha, onde se encontrava a salvo de um ataque israelita, protegido pela grande base do CentCom, situada a 30 km de Doha, cuja área de competência se estende do Afeganistão a Marrocos.

A religião não é condenável em si mesma. Os seus excessos sim, porque a piedade não exclui nem a inteligência nem o livre arbítrio. Não exclui o espírito crítico. Em todo o caso, não pode ser desviada para causas que sirvam o interesse nacional. Mas em nenhum outro lugar a instrumentalização da religião se desviou tanto do seu objectivo como no seio da liderança árabe sunita, em detrimento da causa árabe e em benefício dos seus patrocinadores, os Estados Unidos, o melhor aliado do seu principal inimigo, Israel.

No início do século XX, os árabes, instigados pelo agente britânico Thomas Edward Lawrence, revoltaram-se contra os seus correligionários muçulmanos sunitas do Império Otomano e foram recompensados com a Promessa Balfour de criar um “Lar Nacional Judeu na Palestina” no final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

No início do século XXI, os beduínos do Golfo, sucessores longínquos dos bucaneiros da antiga Costa dos Piratas, procederam à destruição sistemática do mundo árabe com a ajuda da sua coorte de zombies criminógenos takfiristas, colhendo, como retribuição pelo seu empreendimento criminoso, “o negócio do século”, a resolução barata da questão palestiniana através da venda da Palestina.

Repetir sistematicamente um erro nunca foi a melhor marca de inteligência.

A religião é capaz de fazer tanto o pior como o melhor. Animada pelos pacifistas, é um factor de paz. Quando utilizada pelos belicistas, a religião é belicista, ou mesmo beligerante.

 

Fonte: https://les7duquebec.net/archives/297112?jetpack_skip_subscription_popup

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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