segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

A vida capitalista é um longo rio de guerras que mudam de forma com frequência (I)

 


 1 de Janeiro de 2024  Robert Bibeau  


Por Khider Mesloub.

O capitalismo transformou a vida num campo de batalha onde cada indivíduo se tornou um soldado numa guerra permanente contra todos os outros seres humanos que também foram transformados em soldados individuais do capital.

Enquanto no passado o campo simbolizava para os nossos antepassados um refúgio de existência pacífica e uma fonte de alimento, o capitalismo transformou o campo da existência numa guerra permanente que destrói o alimento relacional humano.

O homem contemporâneo, saciado materialmente, tem fome de humanidade, devorada pelo capital, que se alimenta unicamente da produção anárquica de mercadorias, da extracção desenfreada de mais-valia e da acumulação insaciável de lucros.

Longe dos campos de guerras reais e permanentes espalhados por todos os continentes, acreditamos estar a viver tempos de paz numa comunidade humana pacificada. Na verdade, sob o capitalismo, há uma guerra proteana permanente, entre Estados e entre indivíduos: dentro das empresas (campo de batalha entre patrões e operários pela mais-valia), entre empresas (guerra económica pelos mercados), dentro dos países (guerra de classes entre burgueses e proletários), entre países (guerra militar), dentro da família (conflitos conjugais e intergeracionais), entre famílias (lutas pela propriedade), dentro do indivíduo (deprimido pelo patogénico sistema capitalista), entre indivíduos (diariamente em tensão e em conflito).

Um autor chinês disse um dia: "Tal como um longo rio, a vida só é magnífica se for serpenteada em muitas direcções". O capitalismo transformou este sábio aforismo numa frase belicosa: "Como um longo rio, a vida só é agradável quando oferece guerras torrenciais crónicas". O capitalismo adoptou a doutrina de Sun Tzu, general chinês do século VI a.C., autor de "A Arte da Guerra". Doutrina segundo a qual não haveria distinção entre períodos de paz e de guerra. A guerra é, portanto, permanente. A guerra de classes em particular. E o clímax não é a luta armada, mas subjugar o inimigo (subjugar e dominar uma classe social) sem lutar. Fazendo uma guerra psicológica de desgaste com o objetivo de eliminar qualquer forma de resistência.

Por seu lado, um artista fascista italiano, para quem a guerra é uma obra de arte total, escreveu: "A guerra, a única higiene do mundo". Na sociedade capitalista excremental, os homens, para se aliviarem da sua vida de merda, fazem agora guerra uns aos outros, como fazem naturalmente às suas necessidades.

Quanto ao filósofo alemão Hegel, produto do capitalismo nascente, escreveu a coisa mais sábia do mundo, sem o menor escrúpulo moral, como axioma para a nova classe dominante, a burguesia: "A guerra preserva a saúde moral dos povos". Uma coisa é certa: preserva sobretudo a saúde corporal e financeira da burguesia, que vive a guerra como espectador a partir dos seus palácios e das suas casas opulentas. No caso de Hegel, foi sem dúvida a sua adrenalina reflexiva. Este postulado hegeliano, imoral e belicoso, tornou-se o princípio director de todos os Estados capitalistas ocidentais, que obrigaram os seus respectivos povos a matarem-se uns aos outros no campo de batalha em numerosas ocasiões ao longo dos últimos dois séculos, nomeadamente em 1914-1918 e 1939-1945, quando quase 100 milhões de pessoas foram dizimadas. Ou a travar guerras de conquista colonial contra dezenas de povos africanos, norte-africanos e asiáticos.

No capitalismo, tal como nos tempos de guerra, em que os soldados partem para a luta de armas em punho, felizes por estarem equipados com a tecnologia da morte, sem se preocuparem com as suas próprias vidas e, sobretudo, com as dos outros beligerantes, igualmente felizes por serem carne para canhão, os indivíduos da sociedade moderna são treinados, sem o saberem e de livre vontade, para viverem em guerra permanente. Acima de tudo, estão encantados por serem objecto de exploração. A prova: estão dispostos a sacrificar meio século das suas vidas a um trabalho alienante. É claro que não vão para a colónia penal industrial, administrativa ou terciária para se matarem a trabalhar, mas felizes e despreocupados, com anti-depressivos e ansiolíticos nas veias, essas muletas da felicidade química, para lubrificar as engrenagens anquilosadas da sua máquina existencial, descarrilada pela alienação profissional.

Como em tempo de guerra, quando todos estão unidos no patriotismo, sem saberem que estão a ser politicamente manipulados pelos seus governantes, estes indivíduos vivem a sua exploração e opressão com fervor e júbilo, para grande prazer e benefício do capital.

"A guerra é o sofrimento dos humildes, mas o divertimento dos poderosos". Da mesma forma, o trabalho assalariado aliena os proletários, mas enriquece os capitalistas. Através do trabalho assalariado, o proletário faz a guerra ao seu corpo e à sua psique, gradualmente destruídos pela exploração implacável destes dois fundamentos constitutivos da sua alienação do capital.

Se, em tempo de guerra, a norma é a guerra, em que a promessa é a vitória e o meio é a carne humana, em tempo de descanso numa economia "pacificada", a norma é a guerra económica, a promessa é o ganho (a mais-valia, o consumo, a aquisição de bens para o soldado-salariado); o meio é toda a gente (a carne a explorar).

A correlação entre estes dois momentos semelhantes da vida reside nos condicionamentos culturais e pedagógicos que prepararam o caminho para a guerra e na normalização da mentalidade belicista, induzida pela educação e pelos media. Em ambos os contextos, a vida é um campo de batalha, um terreno de conflito permanente.

Todas as manhãs, todos os soldados e assalariados se levantam para ir (fazer) a guerra económica. Tal como em tempo de guerra as estradas enchem-se de soldados prontos para a batalha, na economia "pacificada", os empregados-soldados saem todos os dias para a estrada nos seus carros (ou autocarros) para ocuparem os seus lugares na empresa e travar a batalha da produção desenfreada e das cobiçadas quotas de mercado, para grande gáudio da Majestade do Capital, que lucra, nos dois sentidos da palavra, com o trabalho assalariado e a alienação.

Se, em tempo de guerra, os soldados são os instrumentos e os meios da violência desenfreada, em tempo de economia "pacificada", os trabalhadores são os instrumentos e os meios do capitalismo desenfreado. Sem estes soldados assalariados, alienados e permutáveis, nem a guerra nem o capitalismo existiriam. Como escreveu Etienne de la Boétie: "Eles só são grandes porque nós estamos de joelhos" (a trabalhar para eles e a travar as suas guerras).

Dizem-nos que temos de ganhar a vida com o suor do nosso rosto. Esta máxima peremptória assenta que nem uma luva nesta recomendação militar: é preciso ter orgulho em perder a vida na frente de combate. Em ambas as circunstâncias, só se ganha as divisas depois de se ter sacrificado a vida nas frentes do suor do trabalho exsudado pela exploração e da mortalha oblativa vomitada pelas guerras: o túmulo do desconhecido para o soldado, o retiro sepulcral para o assalariado.

É com os proletários que os ricos educadamente fazem a guerra. Mas é com as guerras quotidianas que os ricos derrotam politicamente os proletários. As tensões e os conflitos permanentes entre os indivíduos, alimentados e mantidos pelo sistema capitalista, que é essencialmente beligerante, prejudicam os interesses do proletariado, desarmam o seu poder de luta, esgotam os seus recursos de combatividade colectiva, dissolvem o seu vigor intelectual e o seu ardor reflexivo.

 No capitalismo, o velho espírito de combatividade foi desviado do seu objetivo. Como escreveu Guy Debord: "Agora, o homem já não pode assemelhar-se às lutas do seu pai ou do seu avô; tem de estar estreitamente ligado à imagem prostrada do eterno presente da submissão ao dinheiro".

Vítimas deste espírito oblativo (militar) inerente a qualquer sociedade de classes, dominada pela mentalidade de rebanho, os soldados assalariados perdem a vida a ganhá-la na linha da frente de um trabalho alienante e destrutivo.

Porque é que aceitamos levantar-nos todas as manhãs e partir alegremente para a guerra capitalista? Porque se tornou a norma e a cultura comuns. Graças à força poderosa da doutrinação ideológica, o indivíduo não consegue conceber outra realidade, outra forma de viver em solidariedade e paz, baseada na satisfação das necessidades humanas e não no lucro. No capitalismo, a barbárie, através do condicionamento das mentes, tomou o rosto da humanidade: assim, todos acreditam que a barbárie capitalista é a normalidade. É como se a doença, que substituiu a saúde através da contaminação por um sistema patogénico controlado por um poder mefistofélico, se tornasse a norma da vida. A barbárie capitalista tomou o rosto da humanidade, porque o capitalismo conseguiu transformá-la em normalidade.

Todos percepcionam a realidade unicamente através do prisma do capital alojado e incorporado nos seus cérebros, se é que se pode chamar cérebro a essa coisa, maleável à vontade e alienável a baixo preço, para quem a promessa de uma casa, de um carro ou de um smartphone justifica todas as cedências, traições e depravações morais. Mesmo que a casa, o carro e o smartphone nunca lhes pertençam de facto, mas sim ao banco (que vende a nossa existência a crédito).

Tal como a empresa onde trabalha como um escravo de manhã à noite, o produto nunca lhe pertencerá. Pelo contrário, ao menor contratempo financeiro ou flutuação económica, a empresa dispensa-o como um lenço de papel usado.

E, no entanto, continua a sentir-se orgulhoso por alienar a sua vida a uma empresa que lhe vende a esperança de poder endividar-se para comprar a sua vida a crédito, para grande lucro dos banqueiros. Pobres prolos! Ele pensa que é livre. Na realidade, está a ser espremido pelo patrão, pelos banqueiros e pelos credores.

Na guerra e na fábrica. Comprar a sua existência a crédito é o cúmulo da alienação. Pensamos que somos donos da propriedade, mas na realidade somos possuídos pela propriedade. Somos duplamente escravizados pela mercadoria. Produzi-la sem a possuir (ela continua a ser propriedade do capitalista que detém os meios de produção). Em seguida, compra-a a crédito (potencialmente continua a ser propriedade do banqueiro em caso de incumprimento).

O futuro incerto e caótico é a única perspectiva existencial oferecida pelo mundo capitalista. Neste universo impiedoso da economia liberal anárquica, as promessas nunca honram o futuro com a sua presença. O futuro sempre se compadece com a ausência de promessas no banquete da existência, que constantemente perde o seu encontro com a felicidade, um valor desconhecido no mundo capitalista. O capitalismo reconhece apenas um valor, o valor de mercado, apenas uma felicidade adulterada, a solvência.

A insegurança é o modo de existência do capitalismo. O capitalista vive no medo constante de não conseguir vender, de não conseguir realizar a mais-valia. O trabalhador vive com medo da quebra do seu contrato de escravatura assalariada, eufemisticamente chamado desemprego. Estas espadas de Dâmocles que pairam sobre a cabeça de todos os indivíduos aguçam o seu temperamento agressivo, tornando-o ainda mais aguçado e sangrento. Aos seus olhos, a sociedade transforma-se numa arena de combate, cheia de ódio e de raiva, onde todos os truques (sujos) são válidos.

A desconfiança e a suspeita servem de escudo nas suas relações frontais. As trocas entre indivíduos atomizados e lobotomizados (porque a velha expressão "relações humanas" é inadequada para descrever o modo de comunicação habitual no capitalismo) são marcadas por relações mercantis. O interesse enquadra as suas relações. A ganância orienta as suas intenções. O lucro orienta as suas expectativas. Tal como num mercado onde apenas as trocas comerciais dominam, também as relações em sociedade são regidas por relações comerciais. Julgamo-nos uns aos outros. Medimo-nos a nós próprios. Avaliamos os nossos valores monetários respectivos para decidir se a relação é rentável e vale a pena.

A suspeita rege todas as relações. A fraternidade inocente, a gratuidade sentimental, a pureza amistosa são suspeitas aos olhos da maioria dos indivíduos moldados por uma mentalidade gananciosa. Para eles, qualquer troca exala o perfume de uma transacção lucrativa, cheira a dinheiro. 

 

Khider MESLOUB

 

Fonte: La vie capitaliste est un long fleuve de guerres protéiformes tranquilles (I) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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