sábado, 4 de janeiro de 2025

A VELHA E O LOBO - HISTÓRIAS PARA SE MANTER DE PÉ. REFLEXÕES E POESIA (Anna Louise Fontaine)

 


4 de Janeiro de 2025Ysengrimus

Se tiver de fazer alguma coisa, será para agradecer
(p. 11).

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Anna Louise Fontaine , poetisa consagrada, escritora de prosa exploratória, filósofa tendencial, está aqui à beira de uma reflexão terminal sobre sua vida e sobre as nossas existências. E esta reflexão formula-se, na poesia e na prosa, pelo menos na escrita. Eu escrevo, ainda escrevo. Tudo o que flui dos meus olhos quando torço o meu coração. Para que ele possa expressar tudo o que o magoou, todo o silêncio que eu lhe impus (p. 51). Pela primeira vez, descobrimos uma obra pensada, que se alinha com diversas outras obras do mesmo autor, tendo produzido uma reflexão crítica sobre a questão da relação com o fim, com a finalidade global do ser, mas também com o fim, como privado declínio, como desaparecimento empírico, como declínio pessoal. Gradualmente, é a busca pelo sentido que se entrelaça, muito intimamente, com as antologias habituais da semântica verbal. Com as palavras procuro um sentido para a minha vida, um motivo para continuar nesse caminho que nem sei para onde vai (p. 51). Trata-se, portanto, de falar para pensar, de formular para ver, de descrever para sintetizar. Encontrar-nos-emos, de pernas para o ar mas também calmos, numa situação em que, no momento da síntese, não devemos nem podemos acomodar-nos numa dinâmica de auto-abandono, sem consciência. Surge aqui uma intensa preocupação em falar para se compreender. Porque na realidade a questão que se coloca é… mais uma vez… a de captar o carácter secreto das grandes curvas. Quem sou eu? Para onde estou a ir? Mas acima de tudo, a definição que me dou corresponde à minha real trajectória? E, neste tipo de reflexão, há sempre, inevitavelmente, momentos dolorosos, momentos que apertam, versos que colam. E entendemos que a reflexão não pode ser feita completamente sozinha. O Velho Pensador deve ser acompanhado por algo como um reflexo de todos os outros seres. Daí o aparecimento da figura alegórica do Lobo e de um certo número de outras figuras de animais mais furtivas, às quais voltaremos aqui, a título de destaque. A sede de se compreender a si mesmo é uma prioridade fundamental. Um dos guias espirituais do autor, Buda, disse: a pior contaminação é a ilusão . E é esta contaminação que a reflexão tranquilizada pretende firmemente lavar com muita água. Não se trata, por outro lado, de um daqueles exercícios de auto-crítica excessiva, que seriam pungentes, deletérios, branqueadores e despojadores. Pelo contrário, estamos aqui a adoptar uma espécie de olhar pacífico que apenas diz: tenha cuidado. Eu sou o que sou. Eu sei que não sei tudo. E sei que uma das prioridades do conhecimento é saber que ainda existem elementos que não poderíamos conhecer.

Combinando poesia e prosa, loucura e sabedoria, antecipação e memória, a obra abordará inevitavelmente uma das questões implacáveis ​​da finalidade e da definição humana do ser. Esta é a questão do amor. Nós gostamos? Sabíamos amar? Então, também, conseguimos realmente abordar o amor segundo uma dinâmica baseada numa adequação sã e relativa? Então eu duvido disso também. Eu realmente amei isso? Provavelmente sempre, tanto quanto possível. Com essa dúvida sempre. E esta pergunta insidiosa. O que é o amor? (p. 64)… Ah, ah, aqui, a Velha, inspirada no Lobo, faz-nos sentir que houve tensões. Um sócio acompanhou-o durante vários anos. Então ele morreu antes dela. E este cônjuge suscitou, tanto pela sua presença como pelo seu desaparecimento, problemas específicos. Há tantas pessoas que, a curto ou longo prazo, transmutam perfidamente o amor, disfarçando-o de jogo. Fiquei ressentido com todos aqueles que jogaram este jogo. Ressenti-me deste amante que queria que a sua única vontade governasse a minha vida. Eu culpo-me por ter cedido a essa tirania. Tudo isso por alguns orgasmos, pálido substituto do mundo ao qual tive acesso quando pude voar (p. 65). Assim, a presença do cônjuge, tirânico e travesso, sempre representou um peso, uma dinâmica de dificuldade, uma certa densidade de incómodo. Como corolário, o desaparecimento do referido cônjuge esteve associado a uma sensação particular de nova liberdade, de evaporação de tensões, de manifestação de tendências de abertura a outras coisas. Insidiosamente, depois cada vez mais abertamente, a dinâmica do amor... conjugal (ousemos dizer a palavra)... é alterada, depois reproblematizada, pela situação de sobrevivência fatal da Velha. Amar é ter amado, em todos os sentidos, todas as nuances e todas as curvas do termo. E, de facto, é todo o sentimento de amor, pelo menos no contexto heterossexual tal como é tradicionalmente definido, que é posto em causa. Tudo não escapa à necessidade de uma delicada delicadeza crítica, claro, respeitosa, cuidadosa em levar em conta quais eram as ligações emocionais, piedosamente acumuladas. Sem concessões, no entanto. Tenhamos o cuidado de levar em conta a excelência da visão que se exige quando, tanto na felicidade como no infortúnio, a mente se torna livre.

A reflexão que se realiza está associada a uma indubitável propensão libertadora resultante da passagem do tempo, este último desdobrando-se indefinidamente e sem pausa. Na minha história não há fim nem pausa planeada para hesitar entre todos os caminhos abertos pelo meu desejo. Nem ogros nem dragões terríveis permanecem. Apenas algumas emoções retrospectivas (p. 85). A passagem do tempo não é revolucionária. É bastante evolutivo. Mas traz consciência para um novo conjunto de prioridades. As prioridades ansiosas, stressadas e assustadas da Juventude e da Feminilidade de uma época não são necessariamente tão adequadas quanto o que a sustentabilidade da vida vem corroborar. Tanto que acabamos por não dizer tudo, sabendo calar nos pequenos pedaços, nos pontos cegos conscientemente. Não tenho nada a dizer que não seja mentira por omissão porque calei todos os meus medos até que eles me despedaçaram (p. 41, fragmento de poema). Aqui, no percurso das reflexões da Velha diante do Lobo, enfrentamos uma dinâmica de desaparecimento dos medos. Os grandes medos do passado, os terrores maravilhosos, os elevados sentimentos de dever, as manifestações de vontades transcendentes mal corroboradas... chegam a se desgastar, a quebrar, a perder a força. A pele da criança dos tempos em que nada assustava, mas ressurge subtilmente. Encontro os meus sonhos de infância e a confiança de que eles se tornarão realidade. Os sonhos que me habitavam antes do medo se instalar, antes de eu pensar que estava sozinho. Antes de compartilhar esta grande ilusão. Não estamos sozinhos, mas todos conectados (p. 36). Instalação de uma consciência de tranquilidade colectiva que já não procura compensar os pequenos medos dos insectos que eram os do passado. É como se a Velha, em contacto com o Lobo, deixasse de ser um animálculo e se tornasse plenamente um animal. Sem realmente deixar de ser uma figura pequena e assustada, ela torna-se uma entidade estabilizada. E, do desaparecimento dos medos, extraímos, como que correndo o risco da mais profunda das fatalidades, uma amplificação e uma tranquilização da consciência.

O facto de se ter reconectado intelectualmente com uma particularidade crucial da juventude verde... a ausência de medos... cria uma situação em que, em última análise, acaba por ser cada vez mais aceitável, e até mesmo admissível, atingir a maioridade. Aceito até envelhecer porque me desligo do passado porque ele não existe mais. Se for preciso envelhecer e ver a morte a chegar para alcançar esse desapego, que assim seja! Não é muito para pagar. Mas mesmo que a minha vida terminasse amanhã, eu teria vivido um momento fora do tempo, um momento de liberdade total. Talvez este seja o objectivo final, a Taça do Graal, o sentido da vida. Renunciar à vida para finalmente conhecê-la , foi o que escrevi num poema. Num momento maravilhoso de lucidez, sem mais miragens, ambos os pés no orvalho do oásis (p. 72). Muito se tem dito... e há certamente um grão de verdade nisso... que o velho regressa à infância e que é algures o laço da espiral conclusiva que gira, que torce, que volta atrás e que aceita . Hoje, depois de lembrar o quanto comemorei cada uma das idades da minha existência, quero viver com a mesma intensidade cada um dos momentos do meu progresso na vida. Cante sobre a velhice, como cantei sobre os meus amores e a minha liberdade. Porque é aventura. Porque ela está ali, na minha porta. Porque é a minha vida. Este é o meu presente. O meu enigma do dia. O caminho da minha busca (p. 43). Encontro de liberdades, instantaneidade e reabsorção de medos. Sabedoria. Serenidade. Filosofia. Aceitar o envelhecimento obviamente está directamente relacionado com o fim dos medos. E também, enfrentando a grande fatalidade terminal que nos espera a todos.

A vida... a vida física e a vida social... assim como o fluxo da existência e a progressão fatal e irreparável rumo à finalidade, tudo isto em nada altera a exigência radical de uma relativização do ideal. Vejo como o meu ideal me manteve longe de mim mesmo. Porque foi tecido a partir das expectativas dos outros e da minha ideia de perfeição (p. 86). Viver, terminar de viver, acabar vivendo, isso não altera a prioridade intelectual. A prioridade do pensamento é aquela que é a primazia central do andamento de todo este trabalho. Porque do que se trata aqui? Em última análise, o que estamos a tentar trazer à tona, manifestar, expressar? Trata-se, fundamental e principalmente, de produzir um ponto de vista crítico, de dizer, formular, nomear o que está errado. Comecei a nomear todas as minhas crenças que se tornaram inúteis. Porque eles, com o tempo, foram incorporados no meu corpo, criando desconforto e doenças. A crença mais teimosa é que estou separado do Todo. Isto é sem dúvida o que chamamos de falha original. Eu posso lidar com isso ou não. Isto é livre arbítrio. Liberdade (pág. 44). Trata-se de avaliar que o pequeno ideal individual, cornificado nos cantos, enrugado no centro, não desaparece por tudo isso, e que continua a perpetuar-se através de alterações que, em vez de o perturbarem, e antagonizá-lo, enriquecê-lo, densificá-lo e, sobretudo, aproximá-lo do Todo, seu oposto dialético. A visão crítica, que é uma exigência do pensamento, uma fidelidade principista ao espírito, será a que terá precedência. E isso solicitará o texto. O verbo. Inclusive na sua dimensão problemática aberta.

O que importa, quando chegamos ao fim do dia, é assumir responsabilidades e de forma aberta. Hoje trago à luz tudo o que escondi. Sigo em frente com a minha ganância, a minha curiosidade, o meu gosto pelo prazer. Eu mesmo denuncio o meu medo, demonstro a minha vergonha, explodo de raiva. E encontra a menininha que se achava má. Eu conforto-a e garanto que a amo exactamente como ela é. E que, até ao fim, caminharemos de mãos dadas (p. 95). É essa menininha encontrada quem, em última análise, é o trabalho final. E a obra concluída, a Ópera Magna , é em última análise o que consiste em assumir a responsabilidade por si mesmo desta forma, de forma bastante recente, de forma bastante simples. Porque ao procurarmos assumir responsabilidades, exploramo-nos, agitamo-nos, libertamo-nos, fazemos emergir. Nem sempre conseguimos, mas, numa dialéctica saudável, é também abrindo mão de assumir responsabilidades que as coisas realmente se encaixam e que um problema, que inicialmente era tão tenso e tão propenso a fracturar, tende a introduzir definições definitivas, radicais e alterações dolorosas. E só então tudo vai gradualmente se atenuando, se pacificando. Pesquise menos. Mais se encontrando. Ao fazer desaparecer/aparecer tudo o que estava escondido, enterrado, negado, escondido. Homenagem à verdade de si mesmo, que é conhecida e vista.

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Homenagem
ouso prestar homenagem a mim mesmo
pelo mistério infinito
que me habita e me fascina
por todos esses pensamentos
libertos da lógica,
esses olhares ainda inocentes,
essas esperanças
que me mantêm de pé,
esse amor sem fundo
que me transporta de um coração ao outro
curioso
e doce sem fim.
(p. 91, fragmento, layout modificado)

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Anna Louise Fontaine vive perto da natureza. Isto obviamente conecta-nos a uma abundância animal, tanto empírica quanto fundamental. Este bestiário com símbolos é o de todos os monstrinhos comuns que vieram cheirar a sua porta e janela, durante a escrita deste ensaio. Em primeiro lugar, o lobo, crucialmente. Depois a perdiz. A raposa. O cervo. Então, aos animais reais são acrescentados os animais que se manifestaram mentalmente. Em termos de referência intertextual, o urso. Em termos do sonho noturno, o cavalo... e novamente o lobo, novamente. Desdobra-se então diante de nós, no dissimulado e no grandioso, um porta-chaves de pequenos símbolos, um leque cintilante e eloquente com o qual encerro discretamente a presente resenha.

Diz-se de ti, o Lobo, que és o descobridor de caminhos e que ensinas o verdadeiro conhecimento. Contigo, quero partir à descoberta do vasto mundo e partilhar o que descubro, seguindo os trilhos da minha intuição e os impulsos da minha curiosidade. (p. 9)

As perdizes têm poucas cores mas infinitas nuances. Cada uma das suas penas é uma obra de arte. Cada momento da minha vida é adornado com a interioridade da perdiz ou a extravagância do pavão. A paz repousa em mim e o desejo de criar é impaciente. (p. 15)

Uma raposa passou em frente à minha janela e foi-se embora pela estrada. Já não tenta camuflar-se. Demorei tanto tempo a abandonar a minha fortaleza e a despir-me da armadura. Esperava que as pessoas me amassem sem que eu tivesse de me revelar. Escondi o que não me parecia amável. (p. 23)

Esta manhã, um veado parou em frente à minha porta. Pareceu-me que queria dar-me uma mensagem. Uma mensagem de amor incondicional. Foi isso que vi nos seus olhos grandes e suaves (p. 29).

Lembro-me do filme em que os homens são confrontados com um urso enorme e com os seus medos mais antigos. O animal persegue-os e acaba por matá-los a todos, excepto aquele que continua convencido de que o que um homem pode fazer, todos os homens podem fazer. Se alguns conseguiram, nós também podemos (p. 38).

Esta noite, no meu sonho, é o cavalo que me recorda que estou ligado. Ao espírito da terra. Ao espírito do céu. E a deusa cavalo guia-me através dos ciclos da vida. Para acolher a velhice e a morte. A velhice como uma aventura e a morte como uma experiência. (p. 53)

Esta manhã, o lobo, voltaste aos meus sonhos. Por uma vez, deixaste-te ver. Paraste como um urso gigantesco na porta do biombo. Não falaste nem te mexeste. Olhaste para mim e para a Danielle. À espera que eu percebesse alguma coisa. Depois, saiu sem fazer barulho. O que é que me queria mostrar? Como é que eu devo olhar para o meu passado? Danielle, uma amiga há mais de 40 anos, representa o amor que resta no fim da minha história, o que resta depois de todas as tempestades. No fim do dia, só posso ser habitada por esses belos momentos em que o meu coração se realizou. Deixar ir tudo o resto (p. 96).

Anna Louise Fontaine (2023), A velha e o lobo — Histórias para ficar acordado. Reflexões e poesia , Éditions Complicités, Paris, 100 p.

 


Fonte: https://les7duquebec.net/archives/293004?jetpack_skip_subscription_popup

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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