sábado, 28 de outubro de 2023

O CHEIRO SUAVE E ADOCICADO DA FARINHA DE CÔCO (Jean-Pierre Asselin de Beauville)

 


 28 de Outubro de 2023  Ysengrimus 

YSENGRIMUS — Esta é uma escrita evocativa no seu melhor. O exercício é simples, directo, sem adornos e perfeitamente delicioso. O objectivo é captar a atmosfera, a emoção e as particularidades sócio-históricas e sentimentais de uma infância masculina na Martinica dos anos 1950. A Martinica é muito França, mas ao mesmo tempo não é realmente França. O Novo Mundo está em todo o lado, denso e sólido. É visível, nomeadamente nas relações entre homens e mulheres. De facto, o que nos impressiona neste universo tão específico é que há rapazes, raparigas, tios, tias, pais e avós. É um colectivo humano maravilhosamente caloroso, bem armado e harmonioso que se desenrola diante dos nossos olhos, com graça e solidez. Os leitores que dependem da família nuclear, um fenómeno historicamente recente, apreciarão a família das Caraíbas como sendo ao mesmo tempo arcaica e ultramoderna. As figuras masculinas e femininas são iguais em força, estatura e importância. A história abrange um período que vai de meados da Segunda Guerra Mundial até ao final da década de 1950. A história começa em Toulouse, França, na altura do preocupante desmoronamento da "França Livre". As primeiras recordações de infância do autor emergem já neste contexto crepuscular e excêntrico. Uma dessas recordações é particularmente marcante e cheia de uma carga simbólica notável e singular. É o nosso narrador, um rapazinho de quatro anos. E diverte-se, na Toulouse parcialmente devastada e já ocupada, a colocar grandes seixos nos carris do elétrico municipal. Gosta de os ver esmagar quando o comboio passa. É isso... e talvez um pouco mais. Os soldados alemães não tardam a agarrá-lo pelo colarinho. Parecem interrogar-se sobre a razão pela qual este jovem local está a colocar pedras nos carris do eléctrico. Será porque pensa que isso vai fazer descarrilar este elo da infraestrutura de transportes? Preso, o rapaz não dá uma resposta muito precisa. Mantém-se em silêncio. Inevitavelmente, ficou muito impressionado com os soldados alemães que o rodeavam e o levavam sabe-se lá para onde...

Os soldados começaram a falar comigo (em francês) e perguntaram-me porque é que eu estava a fazer aquilo, arriscando-me a fazer descarrilar o eléctrico. Sem saber o que dizer, fico calado. Depois pediram-me a morada. Depois regressei a casa, acompanhado por dois criados do Reich. A minha mãe, ao ver-me entrar acompanhado por eles, ficou pálida. Os alemães, depois de verificarem que era mesmo a minha mãe, aconselharam-na a vigiar-me mais de perto, para que estas maldades, que corriam o risco de provocar um acidente, cessassem. Depois, após nos terem cumprimentado, foram-se embora. Até hoje, pergunto-me porque é que fiz o que fiz? Terei sido guiado por um desejo de experimentar, ou terá sido um acto de resistência antes do tempo?

Esta anedota inicial, tão insólita quanto terrível, explica em parte o fio condutor da aventura, tão vulgar quanto incrível, a que Jean-Pierre Asselin de Beauville nos conduz. Sem nos apercebermos, vamos descobrir que houve uma mistura discreta, delicada e subtil de perigos na vida deste jovem martinicano e do seu grupo de pares. Perigos no mar, perigos em terra, perigos em telhados, em pilhas de caixotes de madeira e em locais abandonados onde estes jovens dispersos se divertiam da forma mais extravagante e despreocupada. Animais venenosos. Peixes com dentes ou com espinhos. Embarcações que balançam. Naufrágios improváveis. Redes de pesca emaranhadas. Ciclones tropicais. Remansos suspeitos. Locais de mineração ou militares inseguros. Estas crianças, que se divertem inocentemente na Martinica dos anos 50, têm de lidar com um conjunto de questões de gestão de riscos completamente diferente do que nós ou os nossos ciber-recrutas têm. É aventura com "A" maiúsculo, o que era a infância naqueles tempos. Em várias ocasiões, estas crianças animadas e cativantes estão muito perto de se aleijarem ou de se matarem. E depois... e depois... à medida que os vemos seguir os seus caminhos, vamos lentamente compreendendo que tudo isto são desventuras que já nos aconteceram a todos, mais ou menos, numa altura ou noutra. E no final, quando se ultrapassa, a memória canta, dança, e pode ser escrita ou contada. Há coisas para retransmitir, para reflectir, para criticar e para proscrever também, um pouco, meio a contragosto. E, sim, há situações que nos fazem sentir arrepios retrospectivos nas costas e na carne flácida. Mas porquê insistir nisso? Na realidade, só encontramos nela algumas das peculiaridades acidentadas da própria vida.

Esta soberba crónica de infância mergulha-nos intimamente no mundo particularmente saboroso e intenso da Martinica dos primeiros tempos das Trente Glorieuses (dos gloriosos anos trinta – NdT). Um mundo que desapareceu, que passou, que se foi com o vento... Aqui vemo-lo reviver, seminal e desonesto. E depois, todo o aparato cultural está lá, solidamente instalado e utilizado com toda a naturalidade. As espécies de peixes, as aventuras farmacêuticas, as inovações culinárias, a vida social e os grandes parâmetros sociológicos, a navegação do trabalho e do prazer, a música e as festas, os pequenos e grandes comércios, a resistência silenciosa e tensa ao colonialismo metropolitano, Aimé Césaire... Preciso, eloquente, mas também metódico e límpido, Asselin de Beauville consegue proporcionar-nos, graças à sua escrita extremamente sóbria e magnificamente temperada, uma experiência de leitura que prende e encanta ao mesmo tempo. Embora o livro tenha uma dimensão etnológica muito sólida, nunca se transforma numa dissertação especializada. Todos os pormenores de uma aventura que parece soberbamente original e crucialmente alienante para um leitor ocidental (e um leitor ocidental a viver num país nórdico, ainda por cima) são harmoniosamente equilibrados. Depois, muito lentamente, a nitidez do exotismo desvanece-se, dilui-se, quase se banaliza. Uma espécie de intimidade instala-se. Apodera-se de nós. Tornamo-nos naquele grupo de jovens de outrora. Gradualmente, algures ao longo do tempo, juntamo-nos a estas crianças, a estes rapazes e raparigas, e descobrimos, ou redescobrimos, com eles que, afinal, a infância também tem um conjunto de características eminentemente estáveis, comuns, talvez universais. Aprendi coisas ao mesmo tempo simples e extraordinárias, correndo o risco de escrever este livro. Não vou certamente abrir aqui, na íntegra, este baú das conquistas do meu coração. Terão de continuar a ler. Vou dar apenas um pequeno exemplo, que não trai absolutamente nada. A certa altura, os rapazes estão a brincar com um cesto. É um jogo que eu próprio não jogava, mas que observava muitas vezes com atenção na literatura infantil do meu tempo, nomeadamente nos livros ilustrados. Nunca percebi bem o que é que significa brincar com um cesto e que parte da imaginação pode estimular. Os rapazes correm alegremente e empurram um arco à sua frente, usando um pequeno pau. Mas aqui na Martinica, poucos anos antes do meu nascimento (1958), tudo se torna subitamente claro e jubiloso. O aro é um aro de bicicleta ou o pneu órfão de outro veículo. E o homem que empurra o aro imagina que está a conduzir uma máquina, da qual o aro ou o seu substituto é o único vestígio empírico que resta no mundo. De repente, e muito simplesmente, tudo faz sentido. E, de um só golpe, compreendi o jogo do arco que nunca tinha jogado, graças a este desenvolvimento, digno do ovo de Cristóvão Colombo.

Transformámos uma jante de bicicleta, ou mesmo um pneu usado, num aro que guiávamos com uma vara à qual fixávamos um fio dobrado que servia de guia para o aro. Munidos dos nossos aros, podíamos percorrer as ruas, os passeios e até os campos circundantes com a sensação de conduzir uma máquina muito mais potente...

E o carro de corrida de todos os nossos sonhos de infância rola. De repente, o minimalismo do aro encontra a densidade imaginativa do piloto de corridas que... vem a trote atrás. E esse é outro encontro... De facto, este livro é um livro de encontros. O encontro do mundo continental com o mundo das Caraíbas e das ilhas. Um encontro com uma época que agora deve ser chamada pelo seu terrível nome: meados do século passado. Oh, a distância faz-se sentir amplamente. E a passagem do tempo mostra a sua grande corcunda. O jogo memorial é tanto mais saliente quanto, nesta pintura de época, nada acontece de espectacular, de dramático ou de patético. Nada se desenrola ou se implementa para além da infância. Não há nós, tensões, golpes de teatro, crimes para resolver ou aterragens de discos voadores. É uma fatia de vida e tudo está dito. Começa com a chegada de uma jovem família à Martinica e termina quando o narrador, um jovem que lentamente se torna adulto, deixa a sua amada ilha num paquete para estudar na França continental. O que temos diante de nós é, portanto, um segmento da existência. Uma crónica, evocando esse período da infância, em toda a sua intensidade, especificidade e candura... mas também na sua generalidade fraterna, sororal e humana. E idiossincrática. E sem igual. É uma delícia de momento a momento, que se impõe com força e martela com precisão de miniatura. Quem irá reviver esta beleza única da ilha e o aroma suave da farinha de coco, no dia em que estas águas, ventos e areias só se agitarem nas páginas de um livro?

Jean-Pierre Asselin de Beauville, The Sweet and Sweet Smell of Coconut Flour, publicado pela ÉLP éditeur, 2023, formatos ePub, Mobi, papel.



Fonte: L’ODEUR DOUCE ET SUCRÉE DE LA FARINE DE COCO (Jean-Pierre Asselin de Beauville) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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