4 de Outubro
de 2023 Robert Bibeau
Por Alastair Crooke.
Embora tenha ficado claro para um número
crescente de pessoas no Ocidente que algo aconteceu de terrivelmente errado no
projecto da elite ucraniana, e as previsões e expectativas exageradas de que as
forças russas serão colocadas em "KO" por um "punho" blindado,
demonstraram estar espectacularmente erradas, essas mesmas elites estão erradas
novamente – noutra questão estrategicamente decisiva: Mais uma vez, ignoram
largamente a "realidade" – em nome do controlo da "narrativa". Neste
caso, o Ocidente prefere gozar das implicações de novos membros do BRICS (para
não mencionar os outros 40 Estados prontos para se juntar a eles): "não
há nada para ver".
Os BRICS são apenas uma amálgama de
Estados desprovidos de qualquer coesão, de qualquer fio condutor, proclamam os
meios de comunicação oficiais ocidentais. Nunca serão capazes de desafiar o
poder mundial dos Estados Unidos, nem o peso financeiro da esfera do dólar. No
entanto, o Global Times da China explica, em tom moderado, um cenário diferente:
A razão pela qual o mecanismo BRICS exerce tal apelo ... reflecte a decepção geral de muitos países em desenvolvimento com o sistema de governação mundial dominado pelos Estados Unidos e pelo Ocidente em que interferem. Como a China tem repetidamente enfatizado, o sistema tradicional de governança mundial tornou-se disfuncional, deficiente e inoperante, e a comunidade internacional espera urgentemente que o mecanismo BRICS fortaleça a unidade e a cooperação.
Outros países do Sul expressam-no mais directamente: o mecanismo BRICS é visto como uma forma de se livrar dos últimos vestígios do colonialismo ocidental e ganhar autonomia. Sim, é claro que os BRICS 11 serão inicialmente mais cacofónicos do que fluidos, mas ainda assim representam uma profunda mudança na consciência mundial.
O BRICS 11 estabelece um polo de influência e poder mundial que tem o
potencial de eclipsar o alcance do G7.
A "desordem" na Ucrânia é
geralmente atribuída a um simples "erro de cálculo" por parte das
elites ocidentais: elas não esperavam que a sociedade russa fosse tão robusta,
nem tão resistente à pressão.
De facto, o reconhecimento das contradições doutrinárias da OTAN, do seu armamento de segunda categoria e da sua incapacidade de pensar com rigor - para além da pequena frase do dia seguinte - pôs em evidência (involuntariamente) a disfunção mais profunda do Ocidente - uma disfunção que vai muito para além da situação ligada apenas ao projecto ucraniano. Muitos no Ocidente vêem as principais instituições da sociedade presas a uma ortodoxia sufocante, a um nível intenso de polarização política e cultural e a uma reforma política efectivamente estagnada.
No entanto, a guerra por procuração contra a Rússia foi lançada através da Ucrânia precisamente para reafirmar o vigor mundial do Ocidente. Mas está a acontecer o contrário.
A guerra financeira (em oposição à
guerra terrestre na Ucrânia) era o contraponto à mudança de regime em Moscovo:
a guerra financeira visava sublinhar a futilidade de se opor à hegemonia do dólar –
agindo de forma concertada. Era a hegemonia ciumenta que exigia obediência.
Mas terminou num revés dramático. E isso contribuiu directamente
não só para a expansão dos BRICS, mas também para que os recursos energéticos
do Médio Oriente e as matérias-primas de África escapassem ao controlo ocidental.
Em vez de as ameaças ocidentais de sanções e de ostracismo financeiro criarem
medo e reforçarem a obsequiosidade, essas ameaças mobilizaram sentimentos
anti-coloniais em todo o mundo; tornaram claro que a construção financeira
ocidental equivale a tutela e que qualquer aquisição de soberania exige a
desdolarização.
E também aqui foram cometidos erros graves: erros de magnitude geoestratégica foram cometidos quase por acaso e sem a devida diligência.
O erro primordial foi o da equipa de Biden (e da UE), que apreendeu ilegalmente os activos de reserva da Rússia, expulsou a Rússia do sistema de compensação financeira SWIFT e impôs um bloqueio comercial tão abrangente que (esperava-se na Casa Branca) os seus efeitos iriam demolir o Presidente Putin. O resto do mundo apercebeu-se de que poderiam ser facilmente o próximo na linha de sucessão. Precisavam de uma esfera que resistisse à predação financeira ocidental.
No entanto, o segundo erro estratégico de Biden (& Co.) amplificou o erro do seu primeiro ataque financeiro "sem precedentes". Este erro marcou o segundo episódio da defenestração do império financeiro americano por Biden: tratou Mohammad ben Salmane (e os sauditas em geral) com desprezo. Ordenou-lhes que aumentassem a produção de petróleo (para fazer baixar o preço da gasolina antes das eleições intercalares no Congresso) e ameaçou desdenhosamente o reino com "consequências" se não cumprisse.
Talvez Biden, tão preocupado com suas
perspectivas eleitorais, não tenha pensado no assunto. Ainda hoje, não é certo
que a Casa Branca compreenda as consequências de tratar MbS como um subalterno.
Há uma tentativa de última
hora para dissuadir a Arábia Saudita de aderir aos
BRICS, mas é demasiado tarde. O seu pedido de adesão foi aprovado e entrará em
vigor a 1 de janeiro de 2024. O Ocidente interpretou mal o estado de espírito.
Os Estados do Golfo partilham o mesmo ethos, o de líderes seguros de si e assertivos que já não estão dispostos a aceitar as exigências binárias dos Estados Unidos, "connosco ou contra nós".
Para evitar qualquer mal-entendido, Biden, através da combinação destes dois erros estratégicos, colocou a hegemonia financeira do Ocidente em rota de colisão, levando ao desaparecimento gradual de grande parte dos 32 mil milhões de dólares de investimento estrangeiro em dólares fiduciários que se acumularam no sistema dos EUA nos últimos 52 anos - com uma aceleração implícita para o "comércio de moeda limpa" entre a maioria dos Estados não ocidentais.
Em última análise, isto é suscetível de conduzir a um meio de liquidação do comércio dos BRICS, possivelmente indexado ao ouro. Se uma moeda comercial fosse de alguma forma indexada a um grama de ouro, adquiriria, naturalmente, o estatuto de reserva de valor, com base no valor da mercadoria subjacente (neste caso, o ouro).
A ideia é que, quando a inflação era zero, os títulos do Tesouro dos EUA eram considerados uma reserva de valor (duradoura). No entanto, a desdolarização generalizada mina a procura sintética (ou seja, forçada) de dólares que se deveu inteiramente aos quadros de Bretton Woods e ao petrodólar (que exigia que as mercadorias fossem transaccionadas apenas em dólares americanos) e à ideia implícita de que os títulos do Tesouro dos EUA ofereciam alguma reserva de valor.
Mas o que fez a equipa de Biden? Empurrou a Arábia Saudita - o elemento central do petrodólar e um dos pilares (juntamente com outros Estados do Golfo e a China) das enormes reservas de títulos do Tesouro dos EUA - para os braços dos BRICS. Por outras palavras, os BRICS 11 incluem seis dos nove maiores produtores de energia do mundo, bem como os maiores consumidores de energia do mundo. De facto, a OPEP+ foi integrada para formar um círculo fechado e auto-suficiente de comércio de energia (e de mercadorias) que não precisa de tocar no dólar. E, a longo prazo, isto constituirá um choque monetário importante.
As "consequências" mencionadas pela Casa Branca em relação à Arábia Saudita tornaram-se irrelevantes. A Arábia Saudita e o Irão podem vender o seu petróleo a outros consumidores dos BRICS (noutras moedas que não o dólar). Os membros já não precisam de se preocupar com as ameaças ocidentais - uma das principais disposições dos BRICS é a recusa comum de todos os membros em permitir ou facilitar quaisquer movimentos de "mudança de regime" contra os membros dos BRICS.
Para ser claro, tudo isto significa uma inflação contínua dos preços no Ocidente, reflectindo o declínio do poder de compra das moedas fiduciárias à medida que a procura de dólares diminui. Inevitavelmente, um dólar mais fraco conduzirá a taxas de juro mais elevadas nos EUA, o que será simplesmente uma das principais consequências da desdolarização. O aumento das taxas de juro exercerá uma grande pressão sobre os bancos americanos e europeus.
A primeira cimeira dos BRICS 11 está prevista para Outubro de 2023, em Kazan. "Coincidentemente, a adesão plena dos novos Estados coincidirá com a assunção pela Rússia da presidência rotativa anual dos BRICS em 1 de Janeiro de 2024. Putin já manifestou a sua determinação em resolver as dificuldades de criação de uma moeda separada para os BRICS,"de uma forma ou de outra".
Alastair Crooke
Traduzido por Zineb, revisto por Wayan, para o Saker Francophone
Fonte: Une deuxième étape géostratégique (autre que l’Ukraine) est en train d’advenir – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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