21 de Outubro
de 2023 Ysengrimus
YSENGRIMUS — Fundado em 1832, o venerável Collège de L'Assomption (em L'Assomption, Quebec, Canadá) numerava piedosamente as suas turmas de estudantes. Eu (nascido em 1958, com doze anos em 1970) e o bando de excêntricos mencionados neste livro pertencemos à centésima trigésima oitava turma do Collège de L'Assomption (1832 + 138 = 1970). E isso faz de nós, irresistivelmente, fervorosos adeptos do número da sorte 138...
O mundo da nossa escola é um mundo em grande parte ultrapassado, antigo, comido por vermes, venerável. Já em grande parte perdido nas brumas do tempo, este pequeno universo, translúcido e rachado como uma velha bugiganga, está, no entanto, tão profundamente inscrito nas profundezas do nosso ser que chegou o momento de ser contado, um pouco, assim, a todos e a cada um... antes de ser total e definitivamente rabiscado no papel musical farfalhante e fluido da História. Este livro conta a história dos nossos tempos de estudante, um pouco para os outros e muito para nós próprios. Gostaria de agradecer calorosamente a todos os meus colegas estudantes que, literal e textualmente, compõem e dão forma ao tecido apertado desta pequena colecção de crónicas. As identidades dos protagonistas, excêntricos e austeros, sibilinos e unívocos, tosquiados e hirsutos, foram subtilmente alteradas neste livro, de modo a preservar cuidadosamente o direito inalienável de cada um à mais elementar discrição. Mas, de resto, tudo o que diz respeito ao mundo fervilhante das crianças das escolas de outrora pode ser contado aqui, tudo pode ser contemplado através da pequena ponta do óculo, ou quase.
Como parte tangível do nosso património coletivo, como um pedaço de história por direito próprio, o Collège de L'Assomption tem o dever incontornável de estar à altura da sua rica herança. Uma parte desse património é transmitida através dos fragmentos anedóticos, os contundentes e os cortantes, os doces e os agridoces, que se encontram... nomeadamente... entre estas modestas páginas. As vozes que aqui se reúnem, ao acaso da sorte, exalam a enormidade de pequenas coisas antigas, rodopiando, um pouco ao acaso, como que numa velha dança contrita. É o tango de escola que prende os sonhos e do qual é um sacrilégio não sair esperto (Jacques Brel, 1929-1978)...
A distância do tempo é, de facto, um convite implícito a retomar o controlo do nosso lugar na história. Isto dá origem a uma série de observações, tanto factuais como fundamentais. Em primeiro lugar, as observações factuais. Primeiro ano do ensino secundário: 1970. Os cento e trinta e oito entraram no Collège de L'Assomption exactamente quatro anos após o fim da Revolução Silenciosa, no sentido estrito do termo (1960-1966). Último ano do CEGEP: 1977. Concluímos a nossa formação no Collège de L'Assomption menos de um ano após a eleição do primeiro Parti Québécois (Novembro de 1976) e o ano em que foi proclamada a Lei 101 (1977). Isso localiza-nos neste famoso e muito especial espaço histórico da década de 1970.
Agora, para as
observações fundamentais. Em primeiro lugar, qualquer pessoa que se lembre
desse tempo também se lembrará do seguinte. Chegamos ao colégio logo após a
tempestade dos anos 1960. O preço clássico tinha acabado de
desmoronar. E todos os tipos de esquisitices híbridas estavam a manifestar-se,
em quase todos os lugares, na vida comum da faculdade. Essas curiosidades
intrigantes mostraram muito bem que a geração anterior, a geração Baby Boomer 1.0. (nascidos
entre 1945 e 1955), tinha estado lá, carregando a sua tempestade histórica. Há
muitos exemplos que poderiam ser dados. Vou mencionar apenas um, um suavemente
incomum. Entra-se numa antiga e vasta capela interior, com imponentes
colunatas, que evidentemente outrora desempenhavam funções cerimoniais e
religiosas. Esta enorme capela é chamada de "a grande discoteca". Então, é muito
estranho, para os nossos olhos e ouvidos de doze anos, ver a arquitectura
antiquada deste espaço monumental, com as decorações piedosas, e tudo... E
chama-se "The Big Disco". O cardeal
Paul-Émile Léger (1904-1991) chegou mesmo a atormentar-nos em
1970 nesta antiga grande discoteca. E ninguém se importava. Os mais velhos ridicularizavam-no
em tons abafados, evocando a sua fantasia fracassada de ser o primeiro papa
franco-canadense. Surrealista. Atmosfera social de transicção, dou-vos a minha
caixa. Cardeal Léger para a grande
discoteca do colégio, foi o choque abrupto de duas épocas. Só ao fim de algum
tempo é que nos apercebemos que este espaço acaba de ser rebaptizado, ou assim
se ouvia dizer nos anos 60, "a grande discoteca". Tudo isto para
dizer que a nossa chegada ao colégio se concretizou sobre as ruínas de uma
tempestade social historicamente recente, cujos ramos partidos ainda se viam
pendurados.
Mas há mais, muito mais. Agora que temos a distância histórica, devemos salientar que a década de 1960 não foi apenas um período de efervescência e emancipação da juventude. Foi também, no Quebeque, a Revolução Silenciosa, a época do estabelecimento de um vasto sistema secular de escolas públicas. Reforma das escolas primárias e secundárias, introdução dos CEGEPs. E o que temos que entender é que esse imenso sistema de ensino público, do ensino fundamental ao CEGEP, era novo, muito bonito, novíssimo, quando entramos no Collège de L'Assomption em 1970. Assim, nessa altura, já não era realmente possível estagnar num colégio privado, sem mais nem menos... à saída... A partir daí, era uma escolha a fazer. O colégio privado estava agora em concorrência com um sistema público eficiente, eficaz, inovador, intelectualmente progressivo e gratuito.
Por muito que denegríssemos o sistema público, não podíamos deixar de sentir o seu novo poder. "Chez nous, c'est différent, tout ce qu'y ailleurs, on l'a pas ici" (“entre nós, é diferente, tudo o que existe lá fora, não temos aqui”)... era sobretudo esta nova situação que este slogan redondo comentava... Eles tinham os recursos que nós não tínhamos, ou já não tínhamos. E tudo isto teve um grande impacto na natureza e na dinâmica do ensino que tínhamos de fazer no colégio. Os padres já não eram triunfantes. Estavam na corda bamba. Tinham de se actualizar para continuar a atrair os seus clientes pagantes, que agora aspiravam a uma educação moderna para os seus filhos (que os conduzisse a outras carreiras que não as tradicionais e antiquadas). Sem esta renovação, os filhos da nova era teriam simplesmente partido para o sistema estatal. Emulação súbita através da concorrência, se é que nos entendemos. Isto criou uma espécie de efervescência modernizadora no collège. Era o... ou faz ou desfaz. Penso que beneficiámos muito com isso.
Outro elemento, que foi absolutamente crucial para o 138º curso em particular, foi o que em linguagem moderna se chamaria a dupla coorte. Havia pessoas que tinham feito o sétimo ano do antigo sistema primário e havia pessoas que não o tinham feito. Eu estava no segundo grupo. O 138º curso foi, portanto, o primeiro curso em que, no momento da selecção, o grupo era duplo. Por outras palavras, as pessoas que tinham feito o antigo sétimo e as pessoas que não tinham feito o antigo sétimo estavam misturadas. Assim, começa-se por excluir do grupo aqueles que não têm meios (as escolas privadas continuam a ser, infelizmente, um privilégio de classe). E, mesmo quando se mantêm apenas os ricos, descobre-se que se tem um corpo discente maior do que o habitual, a partir do qual se pode aplicar a sua tirânica dinâmica selectiva. Na minha opinião, é isto que faz com que a 138ª classe se destaque pelas suas qualidades intelectuais (se for esse o caso... teremos de ver o que as outras classes têm a dizer sobre isso). Beneficiou das vantagens não intencionais de uma situação de dupla coorte, num contexto social em que se impunha a modernização forçada e implacável do ensino privado, em detrimento de uma dinâmica educativa agora progressista e competitiva.
Condições históricas como estas transformaram a nossa capacidade colectiva de fazer recuar o poder abusivo dos padres, mesmo no seio das instituições que controlavam, numa necessidade de sobrevivência para o transporte do lixo dos padres. Acrescentemos uma pitada de outros elementos circunstanciais. A Crise de outubro, as ameaças de bomba (incluindo uma na universidade), a ascensão do nacionalismo, a quebecização avançada da cultura, a solidificação da arte de massas. E isto leva-nos a dizer que o Curso 138, que é, de facto, um curso que se desenrolou durante os cruciais anos 70, emergiu de uma conjuntura histórica exemplar e extraordinária. O impacto progressista desse período fulcral tem ainda, penso eu, uma enorme influência na sensibilidade e no intelecto de todos nós, ex-universitários contemporâneos. Neste pequeno livro, falo e volto a falar de tudo isto, sem qualquer nostalgia mas com muita ternura.
Boa leitura.
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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