segunda-feira, 27 de setembro de 2021

O que é o jass?

 


 27 de Setembro de 2021  Olivier Cabanel  

Hoje, escreve-se Jazz... mas no seu nascimento, há cerca de um século, esta música escrevia-se "Jass", ou seja, bordel...

Podemos verificar o quanto avançámos, ao constatar que o desprezo de que foi objecto nos seus primórdios, só poderia tornar-se num sonho, como se sempre fosse da lama que o melhor nascesse.

É, de facto, do sofrimento, da miséria, do racismo e de todos os males sofridos pelas "pessoas de baixo" que esta música nasceu hoje respeitada e respeitável.

Antes de adquirir as suas cartas de nobreza, o Jazz teve de se refugiar em lugares escuros e duvidosos, onde o submundo, o mundo da prostituição, drogas e o resto ombreavam...

Mas também tinha como origem a igreja, lugares onde a fé era o refúgio dos negros perseguidos, e os Evangelhos eram a projecção musical.

Não esqueçamos, nas suas origens, os campos de algodão, nem outros locais de escravatura, onde o canto era uma forma de descarregar o sofrimento deste trabalho exaustivo... nem as prisões, os cárceres, em que os negros presos usavam música para criarem um paraíso ilusório e salvífico.

A recolha de algodão, esta planta suave, não foi uma tarefa fácil, e hoje colocamos luvas, porque a planta está equipada com espinhos que não facilitam a colheita. link

Assim nasceram os blues... que inspiraram abundantemente os fãs do rock...

Reza a lenda que os blues nasceram em 1914, com o famoso St Louis Blues, do WC Handy, mas ele afirma que não inventou nada, que teria sido inspirado por um guitarrista negro, que se encontrava nas margens do Mississipi, e que arranhava a sua guitarra com uma velha faca enferrujada como um bottleneck, um gargalo de garrafa que era esfregado nas cordas. link

Neste campo de instrumentos ancestrais, podemos mencionar a famosa tábua de lavar que era nos seus primeiros dias uma verdadeira tábua de lavar, na qual os dedos equipados com dedais de costura marcavam o ritmo.

Não nos esqueçamos do antepassado  do contrabaixo, o contrabassino (instrumento artesanal de uma corda só – NdT), de uma vassoura colocada numa tigela invertida, da corda que modula o som de acordo com a tensão do mesmo.

Entre os grandes blues estão Lightnin' Hopkins, John Lee Hooker, Leroy Carr, Sonny Terry... Big Bill Broonzy... a lista continua! link

Aqui, Lightnin' Hopkins,nas suas obras.

Um outro tornou-se famoso... um certo Leadbelly, um gigante negro, cuja lenda diz que libertou outros prisioneiros da sua prisão, e que foi abundantemente pilhado mais tarde, pela sua canção à "glória" dos campos de algodão.

É também ele que vai cantar "a casa do sol nascente" (The House of the rising sun – NdT) num bordel de Nova Orleães,  posteriormente sequestrado por um certo Hallyday que o fará "as portas da penitenciária"... a comparação não é para glória do roqueiro...

Aqui o original.

No rescaldo, porque não citar Screaming Jay Hawkins, ex-pugilista, que obviamente não tinha digerido todos os golpes recebidos, e vai propor um "I put a spell on you", que se tornará muito mais tarde um sucesso... Tenho sorte de ter comprado na época o original, um 33 t 25 cm, que pode ser ouvido aqui.

Seu "alligator wine" vale uma visita. aqui

Deixamos então os blues a moverem-se em direcção ao rythm and blues, o que dará origem ao rock, versão "adaptada"... mas isso é outra história.

Foi em Nova Orleães que os funerais foram e ainda estão a ser realizados com alegria, uma vez que, como bons leitores da Bíblia, os crentes não se esqueceram de que era necessário regozijar-se com o desaparecimento de um ente querido, juntando-se este ao Paraíso... em seguida, os músicos que acompanham o falecido, começam com uma longa e triste melodia, e terminam num entusiasmo quase delirante como podemos ver neste curto vídeo.

Seria injusto esquecer o feminino, com Billy Holiday, Ella Fitzgerald, e mais recentemente Nina Simone, que estava destinada ao piano clássico, e que finalmente se virou para o Jazz, para a felicidade de todos.

Aqui podemos felizmente descobrir Ella num famoso dueto com Louis Armstrong.

E então, como qualquer arte, o jazz para amadurecer, evoluiu, transformou-se, apesar dos ataques de alguns críticos retrógrados que queriam que permanecesse como nos seus primórdios...

Entre eles, havia Hugues Panassié, e alguns outros, descritos por Boris Vian como "críticos bolorentos"...

Para Panassié, Miles Davis foi o modelo do "anti-jazz"... e o brilhante Monge Telonious não era digno de ser chamado de pianista...

Ouçam o seu famoso Blue Monk.

Não hesitou em descrever como traidores à causa da "verdadeira música negra" Pharoah Sanders, Archie Shepp, Ornette Coleman... de quem dizia "improvisavam ao acaso"...

Mas a vida é mais forte, e finalmente o bebop impôs-se, sem negar as suas raízes... com Charlie Parker, Dizzy Gillespie, com o seu famoso trompete de cotovelo (em C – NdT)... e tantos outros... em seguida, veio o jazz livre.

Talvez um dos rostos mais notáveis desta transformação do Jazz seja o grande Duque Ellington, que continuou a evoluir, como teremos visto no notável LP que gravou com Charlie Mingus e Max Roach em 1962: "Money Jungle". Ouçam esta caravana!

Em 1970, tive uma experiência inesquecível, caminhando à noite em Greenwich Village e descobrindo, num estranho bistrô, o grande Charlie Mingus, a tocar com alguns amigos, na indiferença geral dos poucos regulares encostados ao balcão.

Em rigor, não foi um concerto, mas simplesmente sessões de trabalho público, os músicos a parar para tocar quando Mingus decidiu uma mudança na organização da peça... um workshop em público, por assim dizer.

Hoje o Jazz continua a progredir, como toda a música viva, e muitos esqueceram que o nosso rap de hoje é apenas uma das suas projecções, uma vez que nasceu em Nova Iorque no movimento do hip hop durante os anos 60, mesmo que alguns afirmem que o Quarteto Golden Gate, cujo repertório é principalmente Evangelho, estaria na origem, em 1937. ouvir

Fazer uma lista daqueles que continuam a fazer evoluir esta música mágica significaria inevitavelmente esquecer alguns actores, mas como não mencionar Ibrahim Maalouf e o seu trompete que permite 1/4 tons, que foi inventado pelo seu pai. link

Refira-se também Keith Jarrett, antigo pianista de Charles Lloyd, cujo concerto inesquecível em Köln marca um ponto de viragem na história do Jazz. ouvir

A história diz que este concerto foi uma espécie de milagre, porque Jarrett, muito desapontado por não ter o piano que ele tinha pedido, um Steinway, estava prestes a boicotar o concerto... e finalmente decidiu improvisar completamente. link

Sabemos o resto.

Tive o privilégio de o descobrir durante o festival antibes, do qual ele é um dos regulares, tal como o grande Faroah Sanders, digno emulador de John Coltrane, do qual foi um dos parceiros musicais, e que, em 1968, nos propôs uma magnífica criação. ouvir

No final da noite, ele encontrou-se numa discoteca de striptease em Antibes,Pássaro Primitivo, e felizmente pude assistir, graças a um amigo que por acaso tinha as mesmas sandálias que o percussionista de Sanders...

Estas sandálias vieram de um canto remoto da África, e o percussionista ficou surpreso que o meu amigo as pudesse usar!

Noite inesquecível da qual guardo uma cassette,  já que tive a boa ideia de trazer um pequeno gravador...

Num improviso de tirar o fôlego, Cat Anderson, esse trompetista ellingtoniano especializado em notas muito aguda, misturou os seus improvisos com os de Sanders... exclamando: "É isso, eu fiz o free!!!".

Jacques Chesnel, um crítico especializado no género, e pintor, conta esta noite nas suas divagações de Jazz. link

Entre os notáveis pianistas, não podemos ignorar o grande Ahmad Jamal, um magnífico minimalista do Jazz, apelidado pelos seus colegas de "o monstro com duas mãos direitas", que purifica improvisações de tirar o fôlego. ouvir

Para finalmente vencer, ele teria que se tronar um varredor, ou mesmo um entregador, e esperar quase 30 anos para ser finalmente reconhecido.

Assim vai a vida, porque como diz o meu velho amigo africano: "só aquele que se curva sob o fardo sabe o peso".

 

Fonte: Le Jass, c’est quoi ce bordel? – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




 

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