22 de Dezembro de 2023 Robert Bibeau
Por Djamel LABIDI
A actualidade obriga-nos a comparar os conflitos na Ucrânia e na Palestina,
em Kiev e em Gaza.
Em Kiev, as ruas estão repletas de dirigentes ocidentais, chefes de Estado, ministros, diplomatas, generais e homens de negócios. Diz-se que os clubes nocturnos estão cheios e, este Verão, descobrimos mesmo imagens de jovens a festejar nas piscinas. As pessoas já nem sequer se refugiam no metro. Compreendemos que os locais oficiais, os bairros residenciais e as zonas populares não estão a ser atacados. Apanhamos o comboio, ou o avião, para viajar. As igrejas, os monumentos e os edifícios históricos estão lá, testemunhando o passado ortodoxo eslavo partilhado pela Ucrânia e pela Rússia. É certo que houve destruição, mas nada como em Gaza. Aqui, os russos parecem ter tido a preocupação de não insultar o futuro, de não provocar o ódio eterno. Provavelmente, no início do conflito, poderiam ter causado grandes danos a Kiev. Não o fizeram.
Em Gaza não
resta nada, a não ser um povo de resistência
“Em Gaza, não há mais
mesquitas, não há mais escolas, não há mais universidades. Em Gaza, já não há
ruas por onde andar, já não há edifícios, já não há casas. Foram bombardeadas,
sistematicamente, sem piedade, friamente. Não há metro onde se refugiar. Os
habitantes tentaram inocentemente refugiar-se em hospitais ou em edifícios de
agências internacionais, acreditando que algumas regras diplomáticas ou
humanitárias seriam pelo menos respeitadas, mas também aí foram bombardeados.
Tentaram depois refugiar-se nas ruínas dos edifícios já bombardeados, na
esperança de que o raio não caísse duas vezes no mesmo sítio. Mas nada
resultou. Então foram para sul, como Israel exigiu, mas Israel também
bombardeou o sul.
Em Gaza, há muito tempo que não há um sítio festivo como Kiev. Será que
alguma vez houve, depois de 30 anos de bloqueio e bombardeamento? Não há água,
não há electricidade, não há comida. Há o cheiro pútrido dos cadáveres e da
morte que sobe de todo o lado, sem que ninguém saiba de onde vem. Em Gaza não
resta mais nada senão um povo de resistência.
“Em Gaza, já não há
medicamentos. Médicos, paramédicos e socorristas estão a ser mortos, assim como
jornalistas, professores, crianças, mulheres, idosos e todos os outros. Israel
não discrimina, Israel mata toda a gente, tudo o que se move. Até os seus
próprios, quando acha que tem de o fazer. O exército israelita matou três
reféns que tinham ficado sem camisa e agitavam uma bandeira branca.
Confundiu-os com palestinianos, admite, uma terrível admissão de que um
palestiniano é abatido mesmo com as mãos levantadas, mesmo com uma bandeira
branca. Mas o que Israel e os meios de comunicação social que lhe estão
associados também não querem dizer, porque na sua narrativa o israelita é, por
definição, ocidental, é que os israelitas se parecem com os palestinianos, com
os árabes, quando não estão a usar... um yarmulke. Isto só torna o colonialismo
e o racismo israelitas ainda mais absurdos e odiosos.
Os filhos de Gaza
Em Kiev, as crianças do Donbass terão sido deportadas e raptadas pela
Rússia. O Procurador-Geral do Tribunal Penal Internacional sentiu-se como um
vigilante e acusou o Presidente da Federação Russa de "crimes de
guerra". Milhares de crianças estão a ser mortas em Gaza, mas o Procurador
do TPI manteve-se em silêncio. O Ocidente político também se calou, ou acabou
por protestar, falando de "danos colaterais" ou de que "as
guerras são necessariamente sujas". Israel mata crianças sem qualquer
sombra de compaixão. Não as considera como filhos de "animais
humanos", "futuras sementes de terroristas"?
Dezenas de milhares de crianças são feridas. São operadas no hospital sem
anestesia. Sentem esta dor indizível no início das suas vidas, com os olhos bem
abertos, inocentes e incrédulos. O Procurador-Geral do TPI mantém-se em
silêncio. Centenas de outras crianças desapareceram, enterradas algures sob as
ruínas, os seus pequenos corpos fazem agora parte da argamassa dos escombros. O
Procurador do TPI calou-se.
“Por vezes, vemos crianças, milagrosamente ilesas, a arranhar as ruínas com as suas mãozinhas, na esperança de aí encontrarem os seus pais, ou a estender os braços suplicantes, a soluçar, à procura de refúgio, pelo menos de uma explicação para toda esta crueldade. A mãe deles foi-se embora. O pai desapareceu. As crianças vagueiam pelos escombros de Gaza, à procura de alguém que as acolha. Têm sede e bebem água do mar. Têm fome. Muitos dos que escaparam aos bombardeamentos vão morrer de doença.
Na Cisjordânia, como em
Gaza, os habitantes esperam com medo no estômago os colonos armados e os
soldados israelitas que virão decidir sobre quem disparar, quem matar, quem
poupar, pelo menos por enquanto, quem humilhar, quem alinhar, agachados em
filas, nus na rua.
Uma guerra dos pobres, uma guerra dos ricos
Em Kiev, o Ocidente não pára de pedir dinheiro, e entram milhares de
milhões de dólares: 113 mil milhões de dólares em Novembro de 2022, 110 mil
milhões de dólares à espera de aprovação pelos Estados Unidos e pela União
Europeia e 270 mil milhões de dólares de ajuda militar prometida por todos os
países ocidentais em Setembro de 2023 (*). Mas Israel e os media ocidentais
choram de escândalo quando se revela que o Hamas recebeu alguns milhões de
dólares. E até agora, Kiev tem-se queixado de que não tem armas suficientes,
tanques, obuses, canhões, bazucas, mísseis, aviões e mais dinheiro. Eu disse
para mim próprio que se o Hamas tivesse um centésimo, não um milésimo, das
armas de Kiev, Israel não seria capaz de lhe resistir. Isso é evidente. Disse a
mim próprio que, se os palestinianos tivessem um milésimo do dinheiro dado a
Kiev, ganhariam de imediato. Digo a mim próprio que, se tivessem o apoio de
todo o Ocidente, como Kiev tem, Israel não resistiria como os palestinianos
resistem. Estou a dizer o óbvio? Sim, mas sabe bem dizê-lo no mar de mentiras
em que a luta de Gaza está a ser afogada.
Em Gaza, estão a brincar com rockets e RPGs, a lutar com armas improvisadas e, no entanto, estão a resistir. Nós não choramingamos, morremos de pé, atacamos os tanques a pé, correndo em direcção a eles, e o inimigo tem medo, e o inimigo recua. De que é que ele tem medo? Essa é a diferença. O inimigo tem medo perante a vontade infinita, o desespero, a esperança e a coragem. Em Gaza, não pedimos nada. Estamos a lutar. Estamos apenas a pedir às pessoas de todo o mundo que se manifestem por Gaza, pela Palestina. Pedimos-lhes que rezem por Gaza. É uma determinação incrível.
Determinação e convicção são obviamente o que falta aos líderes saciados dos Estados árabes vizinhos. São como os animais da selva que assistem, imóveis, assustados, fascinados e a tremer, à devoração de um dos seus por feras ferozes, na esperança de serem poupados.
Os dois conflitos, o de Kiev e o de Gaza, são militarmente e humanamente diferentes. Mas a sua simultaneidade no tempo faz-nos reflectir sobre as suas semelhanças e as suas diferenças. É certo que há heroísmo de ambos os lados. A Ucrânia não tem falta dele, tal como a Rússia, e têm-no demonstrado ao longo da sua história. A perda de vidas, tanto do lado ucraniano como do lado russo, é considerável. Mas trata-se de dois exércitos que se enfrentam, que se defendem mutuamente. Gaza é um gueto, uma prisão a céu aberto. A população não tem para onde ir. Querem que sejam assassinados à porta fechada. Para os palestinianos, conseguir existir, impor um cessar-fogo e acabar com o massacre já é uma vitória. É aí que reside a diferença.
De que se trata realmente o conflito na Ucrânia? E porque é que estamos a lutar assim em Gaza, porque é que há uma guerra dos pobres aqui e uma guerra dos ricos em Kiev, com dezenas de milhares de milhões de dólares em jogo? Em ambos os casos, tanto em Kiev como em Gaza, trata-se de uma guerra de libertação? Nas guerras de libertação, no início lutava-se com caçadeiras, sabres e catanas. Tirámos as armas ao inimigo. Porque é que a Ucrânia não trava uma guerra de guerrilha, por exemplo, no Donbass? A guerra de guerrilha requer o apoio total da população, para estar lá como um peixe na água. Isto levanta a questão do apoio popular em Kiev. Estranhamente, não se registam manifestações em Kiev ou em qualquer uma das principais cidades da Ucrânia em apoio aos líderes. Será que isto reflecte os sentimentos da opinião pública em relação à Rússia? Quais são os sentimentos da opinião pública russa em relação ao povo ucraniano? Os russos e os ucranianos são assim tão inimigos? Ou foram colocados uns contra os outros?
O mundo inteiro está a manifestar-se por Gaza, a Leste e a Oeste, a Norte e a Sul. Não por Kiev, excepto um pouco no início do conflito. Porquê? As manifestações por Gaza são grandiosas, com grandes multidões de pessoas, sobretudo jovens, dezenas de milhares, que criam músicas e poemas profundamente perturbadores e comoventes, cantando Gaza, são momentos culturais, criativos, civilizacionais, de compaixão humana e de fraternidade. Gaza tornou-se um símbolo, o foco de todo o sofrimento do mundo.
Dois pesos e duas medidas
Em Kiev, tal como em
Israel, existe o mesmo discurso nos círculos dirigentes. Ambos os lados dizem
que estão a lutar para "defender a civilização e os valores
ocidentais"; Israel diz que é um "baluarte" contra o mundo
árabe, e Kiev diz que é um baluarte contra a Rússia. Kiev e Gaza são duas faces
do mesmo conflito em que o Ocidente está envolvido.
A Rússia foi sancionada pelo "Ocidente político" por ter invadido a Ucrânia, por ter violado o direito internacional. Israel violou-o centenas de vezes. Os Estados Unidos explicam que "Israel está a exercer o seu direito de se defender" e vetam no Conselho de Segurança sempre que este quer parar com o massacre dos palestinianos ou procurar uma solução política. Tal como em Kiev, os principais dirigentes ocidentais vêm a Telavive e a Jerusalém, um após outro, para apoiar Israel "incondicionalmente".
Cada dia que Israel faz guerra é um crime de guerra, um crime contra a humanidade, mas nem sequer pensam em proibir o Estado hebreu de participar nos Jogos Olímpicos. Será que alguma vez o Estado hebreu foi banido nos 75 anos em que isto tem acontecido? Israel vai participar nos Jogos Olímpicos, com as bandeiras hasteadas, mas pede-se aos atletas russos que escondam a sua bandeira, que tenham vergonha dela, que não a mostrem, e ai de qualquer atleta que se recuse a competir com um israelita. Um lutador argelino foi suspenso por dez anos. A Polónia recusou-se a defrontar a Rússia nas eliminatórias do Campeonato do Mundo, mas foi a Rússia que foi suspensa da competição.
Faça o que fizer, mesmo que se oponha a todo o mundo, Israel nunca é sancionado. As sanções são impostas à Rússia, ao Irão, ao Iémen, à Venezuela, a Cuba e a todos os que apoiam os palestinianos. Israel possui armas nucleares, mas é o Irão que é ameaçado por ser suspeito de as tentar obter. Onde está a lógica neste mundo? Já se fala em sancionar o Iémen do Sul e os Houthis por terem declarado que atacariam navios israelitas até que Israel permitisse a passagem dos abastecimentos de Gaza. Os ocidentais que armam Israel, que desrespeita constantemente o direito internacional, estão a gritar que esse direito e a liberdade de comércio estão a ser ameaçados no Mar Vermelho pelos Houthis. Mas vão tentar esconder da opinião ocidental o verdadeiro motivo das operações dos Houthis.
Esta é a esplêndida lógica de um Ocidente em pleno delírio e a andar de cabeça para baixo. Surgiu uma frase que resume a situação num mundo sob a tutela decadente do Ocidente: dois pesos e duas medidas. Sem necessidade de discursos, sem necessidade de análises ideológicas ou políticas, a frase resume tudo. Basta dizê-la e está tudo dito. Desempodera o Ocidente político. Torna-o mudo. Desarma todas as suas bombas mediáticas, todas as suas mentiras. Tudo no mundo se tornou claro. Mas quanto tempo foi necessário para chegar a esta conclusão.
Djamel Labidi
(*) https://www.bfmtv.com/economie/international/a-combien-s-eleve-le-mont...
https://www.bfmtv.com/economie/economie-social/la-banque-mondiale-veut...
URL do artigo 39219
https://www.legrandsoir.info/kiev-et-gaza.html
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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