sábado, 30 de dezembro de 2023

O grupo iemenita Ansarullah mudou o equilíbrio de poder no Médio Oriente (Pepe Escobar)

 


 30 de Dezembro de 2023  Robert Bibeau 

por Pepe Escobar

De um só golpe, o Ansarullah do Iémen envergonhou o Ocidente e a sua ordem baseada em regras.

Quer tenha sido inventado no norte da Índia, no leste da China ou na Ásia Central - da Pérsia ao Turquestão - o xadrez é um jogo asiático. No xadrez, há sempre um momento em que um único peão é capaz de virar todo o tabuleiro, normalmente com uma jogada na última fila cujo efeito é simplesmente impossível de calcular.

Sim, um peão pode impor um mate sísmico. É o que está a acontecer actualmente na frente geopolítica.

Os efeitos em cascata de uma única jogada no tabuleiro de xadrez - o bloqueio impressionante e cuidadosamente direccionado do Mar Vermelho pelo Ansarullah do Iémen - estendem-se muito para além do transporte marítimo mundial, das cadeias de abastecimento  e da guerra de corredores económicos. Sem falar na redução da tão elogiada projecção de força da Marinha dos EUA, que não é mais relevante.

O movimento de resistência iemenita, Ansarullah, deixou claro que qualquer navio afiliado a Israel ou destinado a Israel será interceptado. Enquanto o resto do mundo compreende perfeitamente que todos os outros navios podem passar livremente, o Ocidente está a ficar perturbado e a imaginar-se como um alvo. Os petroleiros russos - assim como os chineses, os iranianos e os navios do Sul Global - continuam a passar sem entraves pelo Bab al-Mandeb (ponto mais estreito: 33 km) e pelo Mar Vermelho.

Só o Hegemon se sente perturbado por este desafio à sua "ordem baseada em regras". Está indignado com o facto de os navios ocidentais que fornecem energia ou mercadorias a Israel, que está a violar a lei, serem impedidos e de a cadeia de abastecimento ter sido interrompida e mergulhado numa crise profunda. O alvo visado é a economia israelita, que já se encontra gravemente depauperada. Uma única acção do Iémen é mais eficaz do que uma torrente de sanções imperiais.

É a possibilidade tentadora de esta acção única se transformar numa mudança de paradigma - sem retorno - que aumenta a apoplexia do Hegemon. Especialmente porque a humilhação imperial está profundamente enraizada na mudança de paradigma.

O Presidente russo Vladimir Putin, num tom de confiança, está agora a enviar uma mensagem inequívoca: esqueçam o Canal do Suez. O caminho a seguir é a Rota do Mar do Norte - a que os chineses, no âmbito da parceria estratégica Rússia-China, chamam a Rota da Seda do Ártico.

 

Mapa das rotas marítimas do Nordeste e do Noroeste

Para os atordoados europeus, os russos apresentaram três opções: Primeiro, navegar 15.000 milhas à volta do Cabo da Boa Esperança. Em segundo lugar, utilizar a Rota do Mar do Norte, mais barata e mais rápida. Em terceiro lugar, enviar a carga por caminho de ferro russo.

A Rosatom, que supervisiona a Rota do Mar do Norte, salientou que os navios sem certificação de gelo podem agora navegar durante o Verão e o Outono, e que em breve será possível navegar durante todo o ano com a ajuda de uma frota de quebra-gelos nucleares.

Tudo isto é o resultado directo da acção exclusiva do Iémen. E agora? Irá o Iémen juntar-se aos BRICS+ na cimeira de Kazan, no final de 2024, sob a presidência russa?

A nova arquitectura será enquadrada no Médio Oriente  

A armada liderada pelos Estados Unidos para a Operação de Protecção contra o Genocídio, que se desmoronou antes mesmo de arrancar, foi talvez criada para "avisar o Irão", bem como para assustar o Ansarullah. Tal como os Houthis, Teerão não se sente intimidado porque, como diz sucintamente o analista do Médio Oriente Alastair Crooke: "Sykes-Picot está morto".

Trata-se de uma mudança radical no tabuleiro de xadrez. Significa que são as potências do Médio Oriente, e não a marinha americana, que definirão a partir de agora a nova arquitectura regional.

O corolário inefável deste facto é que as onze forças de intervenção dos porta-aviões americanos são, para todos os efeitos, inúteis.

No Médio Oriente, toda a gente sabe que os mísseis do Ansarullah são capazes de atingir os campos petrolíferos sauditas e dos Emirados e de os pôr fora de serviço. Por isso, não é de admirar que Riade e Abu Dhabi nunca aceitem fazer parte de uma força marítima liderada pelos Estados Unidos para desafiar a resistência iemenita.

A isto junta-se o papel dos drones submarinos, agora na posse da Rússia e do Irão. Imaginemos cinquenta deles a atingir um porta-aviões americano: não tem defesa. Embora os americanos continuem a dispor de submarinos muito avançados, não podem manter o Bab el-Mandeb e o Mar Vermelho abertos aos operadores ocidentais.

Em matéria de energia, Moscovo e Teerão nem sequer precisam de pensar - pelo menos por enquanto - em recorrer à opção "nuclear" ou em cortar potencialmente pelo menos 25%, se não mais, do abastecimento mundial de petróleo. Como diz sucintamente um analista do Golfo Pérsico, "isso implodiria irremediavelmente o sistema financeiro internacional".

Os que continuam determinados a apoiar o genocídio em Gaza foram avisados. O primeiro-ministro iraquiano, Mohammed Shia al-Sudani, mencionou-o explicitamente. Teerão já apelou a um embargo total de petróleo e gás contra os países que apoiam Israel.

Um bloqueio naval total de Israel, cuidadosamente planeado, continua a ser uma possibilidade clara. O comandante do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica (IRGC), Hossein Salami, afirmou que Israel poderia "em breve enfrentar o encerramento do Mar Mediterrâneo, do Estreito de Gibraltar e de outras vias navegáveis".

Não se esqueçam que nem sequer estamos a falar de um  possível bloqueio do Estreito de Ormuz; ainda estamos no Mar Vermelho/Bab al-Mandeb.

Porque se os neo-conservadores straussianos do Beltway forem verdadeiramente desestabilizados pela mudança de paradigma e agirem em desespero para "dar uma lição ao Irão", um bloqueio combinado de Ormuz-Bab al-Mandeb poderia fazer disparar o preço do petróleo para, pelo menos, 500 dólares por barril, desencadeando a implosão do mercado de derivados de 618 mil milhões de dólares e fazendo cair todo o sistema bancário internacional.

O tigre de papel está em apuros

Mao Tsé-tung tinha razão: os Estados Unidos podem ser um tigre de papel. Mas Putin é muito mais cauteloso, frio e calculista. Com o Presidente russo, tudo se resume a uma resposta assimétrica, exactamente no momento em que ninguém a espera.

Isto leva-nos à principal hipótese de trabalho susceptível de explicar o jogo de sombras que encobre o único movimento do Ansarullah no tabuleiro de xadrez.

Quando o jornalista de investigação Sy (Seymour) Hersh, galardoado com o Prémio Pulitzer, mostrou como a equipa de Biden tinha feito explodir os gasodutos Nord Stream, a Rússia não reagiu ao que era, na realidade, um acto de terrorismo contra a Gazprom, contra a Alemanha, contra a UE e contra várias empresas europeias. No entanto, o Iémen, com um simples bloqueio, está a virar de pernas para o ar o transporte marítimo mundial.

O que é mais vulnerável? As redes físicas do aprovisionamento energético mundial (Pipelineistan) ou a talassocracia, ou seja, os Estados que derivam o seu poder da sua supremacia naval?

A Rússia privilegia o Pipelineistan: veja-se, por exemplo, o Nord Streams e o Siberian Force 1 e 2. Mas os Estados Unidos, o Hegemon, sempre se apoiaram no seu poder talassocrático, herdeiro do "Britannia rules the seas".

Pois bem, já não é esse o caso. E, surpreendentemente, para o conseguir, nem sequer foi preciso recorrer à opção "nuclear", o bloqueio do Estreito de Ormuz.

É claro que não teremos provas irrefutáveis. Mas é fascinante pensar que uma única acção do Iémen poderia ter sido coordenada ao mais alto nível entre três membros do BRICS – Rússia, China e Irão, o novo "eixo do mal" dos neo-conservadores – e dois outros membros do BRICS+, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, duas potências energéticas. Por outras palavras, "se vocês o fizerem, nós apoiar-vos-emos".

Nada disso, é claro, diminui a pureza iemenita: a sua defesa da Palestina é um dever sagrado.

O imperialismo ocidental, e depois o turbo-capitalismo, sempre estiveram obcecados com a ideia de conquistar o Iémen, um processo que Isa Blumi, no seu esplêndido livro Destruir o Iémen, descreve como "privando necessariamente os iemenitas do seu papel histórico como motor económico, cultural, espiritual e político de grande parte do mundo do Oceano Índico".

Mas o Iémen é invencível e, como diz um provérbio local, "mortal" (Yemen Fataakah). Como parte do eixo de resistência, o Ansarullah do Iémen é agora um actor-chave num complexo drama euro-asiático que está a redefinir a conetividade do Heartland; e, a par da Iniciativa "Uma Faixa, Uma Rota" (BRI) da China, o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC) liderado pela Índia, pelo Irão e pela Rússia, e a nova Rota do Mar do Norte da Rússia, também inclui o controlo de pontos de estrangulamento estratégicos em torno dos mares Mediterrâneo e da Península Arábica.

Trata-se de um paradigma totalmente novo de conectividade comercial, que esmaga o controlo colonial e neo-colonial ocidental da Afro-Eurásia em pedacinhos. Sim, os BRICS+ estão a apoiar o Iémen, que, com um único gesto, colocou a Pax Americana perante a mãe de todas as armadilhas geopolíticas.

 

Pepe Escobar

fonte: The Cradle

Tradução Réseau International

 

Fonte: Le groupe yéménite Ansarullah a modifié le rapport de force au Proche-Orient (Pepe Escobar) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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