2 de Dezembro de 2023 Ysengrimus
Porque, até hoje, ela consegue escrever outra coisa que não seja poesia? Algo como um romance, ou uma história. Ela gostaria muito, ela deseja... (pág. 53)
YSENGRIMUS — Inventada pela autora Diane Boudreau, Marie Cadet-Soucy é uma personagem fictícia cujo estatuto fictício é... digamos... relativamente vago e discretamente incerto. Marie está bastante satisfeita com a sua vida actual. O seu negócio está a correr bastante bem. Tudo está a funcionar como um relógio. Em suma, Marie alcançou uma espécie de paz interior, que é o resultado de uma viagem bastante árdua, da qual Cailloux et perles é uma espécie de expressão verbal contemporânea e conclusiva. A Marie de hoje está viva, feliz, em paz, serena. De facto, como ela própria diz, Marie já nasceu.
Maria nasce. Ela toca a luz. Poeta, conferencista, animadora cultural, é só dizer! Neste preciso momento, a pequena ovelha negra, aquela que tanto desesperava, já não existe. Nunca se tinha sentido tão orgulhosa (p. 63).
Mas houve um tempo em que a ovelhinha negra desesperada acima mencionada estava, de facto, a cismar. Algumas coisas tiveram de ser colocadas em ordem, em método, para chegar ao ponto actual. Assim, aqui a personagem faz uma pequena arrumação das várias particularidades dos pequenos altos e baixos da sua vida. E as observações que daí retira têm uma inconfundível nitidez de languidez, para não dizer de lancinância duradoura. De facto, as coisas nem sempre foram tão simples nas interacções sociais de Marie. Nem a organização da sua praxis. De facto, no início, nem tudo era redondo, como seixos na corrente. Pelo contrário, tudo era cheio de arestas. E foi o fluxo desta corrente temporal que acabou por transformar os objectos brutos da vida em seixos lisos e depois em pérolas. Mas estas pedras e pérolas... todas as questões sobre elas ainda têm de ser resolvidas nos recônditos do balanço da vida de Marie. E, de facto, ela espera poder limpar todos os seixos, as velhas discórdias que se interpõem no caminho. Desatar os nós, um a um, nos poucos elos da cadeia humana de que é devedora (p. 34). Um desenvolvimento textual em miniatura, para um programa muito vasto.
O principal problema de Marie é aquilo a que poderíamos chamar... a sua falta de jeito humano... a sua imperiosidade social. No fundo, ela funciona como alguém que comete pequenos erros no seu mundo, erros que ela exagera no seu coração. E Marie acaba por acreditar que é um pouco desajeitada, desorganizada, mal organizada, problemática. E este estado de coisas obriga Marie, por vezes, a fazer algumas correcções, rectificações, remendos... que nem sempre faz, de facto... na realidade. As correcções, rectificações e remendos que tem de fazer, sobretudo os de natureza social, morrem literalmente no papel de encomenda das suas acções. Os remendos são, muitas vezes, uma reflexão tardia. Isto obriga Marie a inventar todo o tipo de desculpas, e a fazê-lo um pouco no vazio.
Admitir os seus erros,
pedir desculpa, arrepender-se amargamente dos seus actos, não é confortável e,
sobretudo, não apaga nada. Não se pode voltar atrás no tempo e não se pode
mudar o curso dos acontecimentos. E, no entanto, quando Marie exprime o seu
arrependimento em pensamento ou por escrito, algo benevolente e reconfortante
vem tapar os buracos destas crateras e instala-se... sobre... sobre... por
dádiva... (p. 33)
De presente... o perdão. A tendência para pedir perdão está a instalar-se lentamente. E vamos corrigir o comportamento com as escrituras. É bom que Maria tenha coisas a fazer e coisas a dizer... no mesmo movimento. Por isso, tem um grande caderno, um bom e velho caderno pautado, onde anota depois as manifestações deste espírito das escadas da rafistole social. É no espaço escritural que ela discute e/ou interage, muito abertamente, muito sinceramente, quase serenamente, com as pessoas a quem, no decurso da sua vida, partiu, sem querer, um copo. No final, a solução interaccional de Marie foi confidenciar ex post as várias dificuldades que tinha encontrado e as várias desculpas que tinha feito sobre elas na página da escrita. A escrita fez com que Marie saísse da sua vergonha e desgraça e aproximou-a um pouco mais da luz. Nem tudo foi ganho, longe disso... (p. 40). Tudo permanece árduo, difícil e incerto. Mas a produção textual é um alívio. O resultado é um pequeno número de missivas sem destinatários, epístolas sem leitores, mensagens sem alvos. Tudo formulado no modo de um lamento aberto disfarçado de um acto de comunicação sobrevalorizado, tardio e obsoleto. Caro professora de História, pode ter agora um pouco mais de oitenta anos, mas no tempo da faculdade parecia-me tão jovem... (p. 46). Dizer é mais importante do que comunicar. O tempo e a duração são parâmetros que são cuidadosamente evitados. Encontramo-nos numa situação em que a autora faz um acerto de contas (também no sentido contabilístico do termo) com o que foi a sua vida, nomeadamente a sua vida social enquanto mulher. E fá-lo, no fim de contas, à revelia. Acolhe-se numa situação de interacção social que não existe, ou deixou de existir.
Marie nunca conseguiu desculpar-se ou explicar-se. Distanciou-se, temendo novos erros da sua parte, e tudo foi feito, de ambos os lados, para que ela não pudesse magoar mais o pintor, para que não se aproximasse mais dele. Marie procura uma página em branco no seu caderno, sua fiel confidente, para escrever estas palavras (p. 32).
Note-se que as pessoas visadas por esta subtil escrita correctiva são exclusivamente mulheres. O que emerge gradualmente, no conjunto de determinações que conduzem Marie através deste tipo de trocas fantasmagóricas, sem interlocutor efectivo, é o facto... crucial... de ela própria ter faltado ao seu encontro com a posição de interlocutora efectiva de uma figura cardeal. Esta personagem com quem as trocas-chave não tiveram lugar, esta Arlesienne dialógica, vai assumir uma enorme importância no desenvolvimento do presente tema. É o pai de Marie. Um dia, Marie conseguirá esclarecer, não tanto para si como para um dos seus interlocutores, a situação incómoda do seu problema pai-filha.
A mais jovem ousa confiar nesta mulher subtil da indústria editorial, contando-lhe a difícil relação pai-filha que viveu, a sua falta de amor e o sentimento amargo de ter desiludido amargamente o primeiro homem da sua vida (p. 51).
Entramos então na retirada secreta das crenças de Marie para dentro de si própria. Ela sabe... ou pensa que sabe... que o pai estava desiludido com ela. Que não estava satisfeito com a filha, que achava que Marie não estava à altura do cargo. Descobrimos... ou imaginamos... um pai intelectualmente articulado, com um porte um pouco austero e para quem o desempenho académico é de grande importância. Mas quando Marie era criança, ela não correspondia às suas expectativas. Tanto que... na memória ou na imaginação... a figura paterna distante franze a testa. Uma das razões para isso são os resultados de Marie na escola.
As suas notas bastante desastrosas em
ciências e matemática levaram os pais, sobretudo o pai, a pensar que ela
deveria ser inscrita num colégio privado de grande reputação, desejando o
melhor para ela. Será que ele pretende elevar o nível da família, oferecendo a
melhor opção a esta filha mais nova, que parece tão desinteressada e
desorganizada? (p. 42)
Tudo se passa em relação a um esclarecimento (ou esclarecimentos...) que deveria ter sido feito com o pai, mas que nunca se concretizou. À medida que avançamos com Marie, a filha mais nova, deparamo-nos progressivamente com a figura paterna, confinada à abstracção, com figuras paternas sublimadas, transpostas, alternativas, intermediárias. O destino das armas da vida filial leva Marie a procurar a confirmação e a corroboração da sua auto-imagem em pais putativos. Estes não serão mais nem menos do que ecos atenuados do pai original. Um tio, por exemplo.
E [...] este tio que, antes de morrer, lhe tinha dado um único conselho, como uma convocação afectuosa, Marie apressa-se a tranquilizá-lo: "Está a ver, querido tio, ocupei finalmente o meu lugar, como me pediu antes de nos deixar! (p. 63)
Uma figura masculina de grande importância neste esforço de sublimação do pai é o ilustre cantor Félix Leclerc, seu mentor durante tanto tempo (p. 66). Marie elogia muito o seu mentor e guia, Félix Leclerc (p. 61). Agradece-lhe explicitamente. Obrigada, querido grande Félix, por me teres ressuscitado (p. 63). Tudo isto é dito muito abertamente, sem que Marie nos dê realmente qualquer indicação sobre a concretude empírica ou a abstracção miraculosa das suas relações e trocas, reais ou potenciais, com o autor do romance semi-autobiográfico Pieds nus dans l'aube...
A dinâmica global de Cailloux et Perles obriga-nos a percorrer a nossa biblioteca Diane Boudreau. Isso levar-nos-á a fazer a ligação com outro livro desta prolífica autora. E eu nomeei a colecção de miniaturas em prosa de Charly, mon père, publicada em 2018. Este opus também canta em todas as notas da lira, a leitura do pai desapontado, do pai tocando a distância, do pai que nos olha com um olho condescendente. Mas será que este olho é realmente, factualmente, eficazmente, condescendente? Ou é uma grande ilusão, uma difracção amplamente subjetivada, moldada pela própria menina trémula, tão impressionada pela figura patriarcal do passado? Sobre este ponto, vamos reler, e meditar, uma passagem maiúscula de Charly, meu pai. Sente-se toda a ambivalência perceptiva... e toda a flutuação interpretativa... da situação do pai a observar.
Pastel sobre juta
Sentado
à mesa da cozinha, pinto com giz pastel de graxa em pedaços de juta que já
fixei anteriormente em cartão.
Inspirado por cartões
artesanais cuidadosamente preservados, retiro, com toda a tranquilidade, os
rostos de crianças com olhos grandes e sonhadores, certamente desses países
imaginários de onde eu também viria...
Emergindo do porão com
um passo descontraído, meu pai fica atrás de mim por um momento para olhar para
os meus desenhos.
Sem dizer uma palavra,
ele calmamente coloca a mão no meu ombro, um discreto sinal de aprovação e
respeito.
Que bálsamo no meu
décimo quinto aniversário!
Sua filha, meu pai,
que tem tão pouco talento para a matemática, tem, graças a Deus, mais aptidão
para as artes. (Charly, Meu Pai, pág. 47)
Charly, mon père provou ser um notável
testemunho factual (alguns diriam "auto-ficcional"), escrito pelo
autor de... Vamos insistir neste ponto... em prosa. Aqui, com Cailloux et Perles, Diane Boudreau
afirma, aberta e explicitamente, escrever um romance. Esta é também a aspiração
da própria Marie Cadet-Soucy, a sua personagem (se ousar duvidar, releia e
medite sobre o exercício desta resenha). Mas será que o romance foi escrito? A
pergunta deve ser feita e formulada com o mesmo tipo de simplicidade que se
desdobra no próprio discurso de Maria. Em primeiro lugar, este texto, cheio de
citações em encartes e algumas fotografias de arte (da pintora Suzanne
Poirier), seixos
e pérolas, bem... É demasiado curto para ser um romance. É uma novela à beira do
precipício, mas nada mais. Um romance teria sido mais abundante, mais
detalhado, mais diversificado nas suas aventuras. Mas ei, essa questão em
grande parte quantitativa, essa distinção de volumes e configurações, é
bastante secundária no nosso caso. Há uma dimensão muito mais crucial que vai
aparecer sob a pena de Diane Boudreau, no dia em que o escreve, o seu
verdadeiro primeiro romance (e esse dia aproxima-se, penso). Esta dimensão será
a da ficção, no sentido forte e
exigente deste terrível termo. Marie Cadet-Soucy continua a ser apenas uma
máscara em que Madame Diane Boudreau se embute, sem qualquer resíduo fictício
particular (a não ser o da discricção das máscaras). Do trabalho à prosa,
passando do auto-biográfico sem disfarce (o de Charly, meu pai) para o auto-biográfico
com disfarce (o de Seixos
e Pérolas). A
amplitude ficcional exigida pelo exercício novelístico (a do falso
efeito, a factícia bem temperada, a imaginação exaltada, até mesmo o delírio
desenfreado) ainda não foi alcançada. Mas estamos mais perto do que nunca, na
casa de Diane Boudreau. E será certamente para a próxima vez.
Se sou imparcialmente optimista neste ponto, é porque Marie Cadet-Soucy já
compreende e capta todas as alavancas do ficcional, quando compõe fragmentos de
cartas imaginárias, escritas forjadas
para a versão antiga de pessoas que envelheceram ou que já não existem. Tudo é
esboçado. Ouçamo-las agora, as histórias falsas, punitivas ou rectificadoras,
de toda essa gente bonita desejada, se não obtida. E então... só então... o
romance que está prestes a ser escrito estará lá connosco. Em breve mostrareis
os vossos rostos misteriosos de tinta e papel, crianças de olhos grandes e sonhadores, certamente dessas terras
imaginárias de onde eu [Diane Boudreau] também
viria...
Diane Boudreau, Cailloux et perles, Diane
Boudreau, 2023, 84 p.
Fonte : CAILLOUX ET PERLES (Diane Boudreau) – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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