Por Khider Mesloub.
A propensão atávica dos adultos para se submeterem a ordens da autoridade
já não precisa de ser demonstrada. A experiência de Stanley Milgram, no início
dos anos 60, demonstrou que os indivíduos comuns podem comportar-se como
carrascos quando sujeitos à autoridade.
Este estudo provou que os indivíduos estão dispostos a obedecer cegamente às injunções de uma autoridade científica, a submeter-se à vontade de qualquer autoridade governamental ou patronal. Em suma, a tolerar o intolerável. Para cometer o indizível. Para cometer crimes de guerra e genocídio.
Embora não tenham ódio nem espírito vingativo, estão, no entanto, preparados, por obediência às regras dominantes e tolerância à injustiça interiorizadas por condicionamento desde a mais tenra infância, para se transformarem em carrascos logo que aceitem tornar-se peças de uma estrutura hierárquica da sociedade ou de uma instituição militar ou de segurança do Estado.
A experiência de Milgram, crucial para a nossa compreensão da psicologia social, mostra que a explicação para um comportamento fortemente submisso reside na relação com a autoridade e não na prevalência de instintos agressivos. Isto porque, na ausência de qualquer autoridade, os indivíduos evitam transformar-se em criminosos juramentados, ou seja, auxiliares do patrão ou mercenários do Estado.
O objectivo da experiência de Milgram era avaliar a empatia humana, o grau de respeito pelo outro, numa palavra, avaliar a humanidade humana.
A "normalidade" humana mede-se pelo reconhecimento dos outros como seres semelhantes a nós, que devemos respeitar, amar e, sobretudo, evitar agredir e, muito menos, violar, explorar, oprimir, massacrar, matar até ao genocídio.
O comportamento contrário é a ilustração de um carácter patológico, a manifestação de uma personalidade psicopática, à imagem dos poderosos e dos governantes desprovidos de empatia. Para os poderosos e os governantes, para quem a sociedade é um campo de batalha permanente onde travam a sua guerra social contra os oprimidos para preservar os seus privilégios e o seu poder, todas as pessoas têm uma natureza má. E com razão, porque projectam nos outros os seus próprios sentimentos, desprovidos de afecto e de humanidade. Para estes poderosos desprovidos de humanidade, o mal é intrínseco ao homem. Vêem o Mal em todo o lado porque está enraizado neles (nas suas instituições governamentais opressivas e predadoras). E para combater o mal, propõem curá-lo pela coerção, pela violência, pela submissão e pela obediência.
Dado que este tipo de atitude patológica não é hereditária (não existe uma "raça" má, mas toda a classe dominante é intrinsecamente má, porque não pode afirmar o seu domínio sem repressão, opressão e exploração), há que dizer que se trata de um fenómeno de degeneração social adquirida (confirmado pela gestão criminosa da epidemia de Covid pelos psicopatas governamentais e pelo seu actual silêncio cúmplice perante o genocídio dos palestinianos).
Toda obediência é o corolário da autoridade. Sem autoridade instituída e vinculante, não há obediência.
Uma vez que este fenómeno de obediência instituída é tão generalizado,
temos de concluir que estamos perante um preocupante flagelo social patológico.
Sem uma aprendizagem e
interiorização precoce da submissão à autoridade, não há obediência. Ao
obedecer, o homem assina a sua submissão e reconhece o direito do outro, do
poderoso, a exercer autoridade sobre ele e sobre a sociedade. E sobre a sua
personalidade e a comunidade.
A obediência é recompensada de acordo com o grau de submissão à autoridade.
Quanto mais obsequiosa for a obediência, mais a servidão é recompensada.
Excepto nos contextos extremos da guerra, do colonialismo, da escravatura
ou da tomada de reféns, a obediência é exercida livremente, é oferecida com
toda a tranquilidade à autoridade. De facto, por condicionamento, por educação.
A obediência é sobretudo ensinada no sistema educativo francês. A
disciplina é inculcada nas escolas das casernas. O condicionamento é praticado
durante pelo menos quinze anos para produzir adultos com diplomas de
obediência. Adultos prontos para se alistarem sob a autoridade de um chefe, de
um oficial superior, para servirem no exército, para reprimirem qualquer
autoridade ou instituição despótica.
Enquanto a autoridade e a obediência forem virtudes sociais cardeais,
toleradas com abnegação, a sociedade funcionará como uma selva composta por
animais bípedes governados unicamente pelo instinto de dominar e matar. Poucos
homens são lobos para o homem, demasiados são ovelhas.
Uma coisa é certa: nas sociedades baseadas na exploração e na opressão, a
obediência é mais difícil de vencer do que a autoridade.
A obediência é um cancro que corrói a
sociedade, que fez da tolerância (às desigualdades e violências instituídas e
infligidas pelos poderosos e governantes) uma virtude cardinal.
A sociedade contemporânea, dita democrática, sofre de uma "tolerância" aguda. Tolera todas as injustiças e "patologias" sociais em nome do respeito pela diferença e pela alteridade. Tolera a fome, as guerras, os genocídios, a violência social e estatal.
Por obediência à ordem estabelecida, por tolerância às desigualdades
sociais e à violência governamental, os poderosos e os detentores do poder
tornaram-nos auxiliares do seu sistema de exploração e opressão, cúmplices dos
seus crimes sociais e genocidas.
Mas só a intolerância pode salvar-nos e trazer-nos humanidade.
Contrariamente ao que dizem os poderosos e os detentores do poder, a nossa
sociedade não sofre de intolerância, mas de demasiada tolerância. Por cobardia
política e pusilanimidade militante, a tolerância transformou-se em dogma, para
grande benefício das classes proprietárias que gozam da nossa tolerância face à
injustiça social, à exploração e à opressão.
A tolerância e a obediência prosperam com
a ignorância, a idiotice e o democratismo burguês emoliente.
Voltaire, o intelectual da burguesia ascendente, escreveu: "A tolerância nunca suscitou a guerra civil, a intolerância cobriu a terra de carnificina".
Infelizmente, a história e a actualidade provam o contrário. A tolerância democrática burguesa incitou centenas de guerras nos últimos dois séculos, a última das quais está a ter lugar em Gaza, onde um país "democrático" teocrático e fascista está a cometer genocídio contra civis desarmados.
Por outro lado, a intolerância revolucionária raramente impediu a
carnificina capitalista. Excepto em 1917, quando o povo russo, seguindo o
caminho da intolerância revolucionária, conseguiu impedir a tolerável guerra
imperialista desencadeada pela intolerante burguesia europeia. E em 1954, na
Argélia, quando simples camponeses e operários analfabetos, liderados por
valentes combatentes, resolveram tomar o nobre e intolerante caminho da
Revolução para derrubar a tolerável condição colonial, a camisa de força da
obediência social e política imposta pelos colonizadores franceses a todo o
povo argelino.
A abolição da sociedade capitalista que tolera todos os crimes sociais e
militares, em nome da farsa da tolerância democrática burguesa, depende da
intolerância política salvadora de todos.
Precisamos de redescobrir a salutar intolerância que nos cura da nossa submissão social e da nossa resignação política. Devemos ser intolerantes com todas as injustiças, com os crimes sociais, com os governos despóticos, com os espalhadores da miséria e da fome, com os autores de guerras genocidas.
A tolerância sempre foi uma força de inércia. Uma farsa para legitimar a autocracia. Não é a tolerância que move o mundo em direcção à emancipação humana. Pelo contrário, a tolerância subjuga e agrilhoa as classes oprimidas ao conformismo e ao legalismo da classe opressora.
A intolerância revolucionária tem de ser reposta no seu devido lugar, se se quiser abolir a tolerância da iniquidade, a tolerância de governos vilões e tirânicos, a tolerância de sistemas económicos exploradores e opressores, a tolerância de guerras permanentes destruidoras e genocidas.
Os povos oprimidos e o proletariado devem livrar-se desta intolerável tolerância, irmã gémea da obediência, inculcada pela classe dominante. Devem livrar-se da impostura da tolerância, para seguir o caminho nobre e intolerável da Revolução, berço da História.
Khider MESLOUB
Fonte: Pourquoi seule l’intolérance est salvatrice et porteuse d’humanité – les 7 du quebec
Este artigo
foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice
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