Por Khider Mesloub.
A espiritualidade e a religião sempre foram indevidamente associadas. No
entanto, a religião e a espiritualidade, apesar de estarem juntas, referem-se a
campos de investimento pessoal ou colectivo distintos e até antinómicos.
Mas com o surgimento das sociedades de classes, caracterizadas pela
emergência da política como instrumento de dominação e de controlo social
instituído pelas novas formações sociais dominantes, as duas entidades humanas
foram cindidas e separadas.
Sob o efeito conjugado dos antagonismos sociais sistémicos e sistemáticos e
dos interesses reais, a ruptura entre religião e espiritualidade foi consumada,
o seu divórcio oficializado. Ou melhor, as novas formações sociais dominantes
confiscaram e apropriaram-se indevidamente da espiritualidade antiga.
A religião foi apropriada e monopolizada pela política, ou seja, pelas
classes dominantes, e utilizada como instrumento de escravização das classes
dominadas. A entidade religiosa foi institucionalizada pelas novas classes
dominantes para sacralizar e perpetuar o seu poder, para legitimar
"religiosamente" a sua dominação.
Aliás, a maioria dos diccionários, nomeadamente o Larousse, reconhece implicitamente este facto na sua definição de religião: "o reconhecimento por um ser humano de um princípio superior do qual depende o seu destino". (Estive quase a cometer um lapso ao escrever "o reconhecimento pelo ser humano de um Príncipe superior do qual depende o seu destino").
Precisamente, para acreditar num "princípio superior do qual depende o
destino", a sociedade teria primeiro de sofrer uma transformação
antropológica radical: o nascimento da sociedade de classes, uma sociedade em
que o destino existencial da maioria da população escravizada dependia agora da
nova classe superior exploradora e despótica.
Enquanto as crenças místicas e animistas (em que religião e espiritualidade se confundiam, senão eram sinónimos) são muito antigas, a crença num "princípio superior do qual depende o destino", também conhecido por Deus, uma entidade sobrenatural elevada ao céu, data da época do nascimento da sociedade de classes baseada na realeza, ou seja, no poder único e iníquo do rei.
Os muçulmanos fazem orações durante o Eid.
Porque, para acreditar num rei no céu (Deus), as pessoas tiveram primeiro
de experimentar um rei aterrador na terra. É a vida real, material e social que
determina as nossas concepções e, em particular, que nos leva a desenvolver
novas ideologias e religiões. Para recordar, a ideologia é o conjunto de
ideias, valores e normas que servem para legitimar a divisão da sociedade em
classes. A ideologia, enquanto visão do mundo, é sempre a da classe dominante.
As ideias dominantes são sempre as da classe dominante. Mesmo na religião, onde
é sempre a religião da classe dominante que é imposta às massas oprimidas.
Actualmente, a classe proletária contemporânea, totalmente condicionada
pela ideologia burguesa dominante, embora secularizada, em nome da nova
religião do capital, a democracia burguesa, elege os seus próprios senhores
para o governo. Os seus filhos investem-se servilmente nos muitos templos do
conhecimento burguês, escolas e universidades, para provar a sua lealdade
intelectual ao dogma do bezerro de ouro e para assegurar, através das suas
invenções científicas, o enriquecimento infinito dos seus senhores
capitalistas.
Para recordar, aos olhos dos nossos antepassados, que eram dominados pelas
forças da natureza, por detrás de cada espécie vegetal, mineral e animal havia
um Espírito. Os nossos antepassados primitivos eram mais materialistas.
Acreditavam nos poderes dos elementos da natureza. Segundo os nossos
antepassados terrestres, cada elemento da natureza é dotado de um Espírito
(criador). O seu politeísmo era mais racional e materialista do que os nossos
monoteísmos infantis, mágicos e esotéricos, inventados pelas classes dominantes
e reais para legitimar o seu poder de dominação. Além disso, o politeísmo é
mais "democrático" e sexualmente igualitário do que o monoteísmo,
porque admite a pluralidade das crenças e a diversidade dos deuses e das deusas
(não é de admirar que a democracia tenha nascido na península grega, famosa
pelo seu politeísmo baseado nomeadamente nas deusas).
O Deus único é essencialmente despótico: não aceita concorrentes, nem
rivais, nem diversidade de crenças (como o rei - ou ditador - que se impõe como
único governante). O Deus único adapta-se (e é adoptado) às sociedades
dominadas por uma classe tirânica. Curiosamente, este Deus único surgiu no
Médio Oriente, o continente do despotismo declarado.
Para justificar a submissão a um Deus único, Jesus utilizou um argumento
retirado da realidade da sua própria sociedade baseada na escravatura:
"Nenhum servo pode servir dois senhores. Porque ou há-de odiar um e amar o
outro, ou há-de desprezar um e apegar-se ao outro. Não podeis servir a Deus e a
Mamom". Se é impossível servir dois senhores, mais ainda é impossível
servir dois deuses (Mamon refere-se ao deus da riqueza).
Na mesma época, o estadista romano Cícero definia a religião como "o acto de atender e adorar uma natureza superior (o imperador?) que se chama divina".
Seja como for, a religião sempre foi um sistema de crenças baseado numa
ligação "vertical". A etimologia da palavra religião, derivada do
latim, é religare, "ligar", "reunir". Por outras palavras,
ligar e reunir na mesma direcção vertical: o cume do poder e a abóbada do céu.
A maioria dos diccionários actuais está de acordo quanto à definição de
religião. Os diccionários definem a religião como "a crença e/ou a
adoração de um poder controlador sobre-humano, particularmente um ou mais
deuses pessoais".
Regressando à sociedade de classes, à questão da nova existência
problemática da classe oligárquica, elevada majestosamente acima da população
explorada e oprimida que até então evoluía numa sociedade igualitária
primitiva, desprovida de estratificação social, foi necessário encontrar uma
solução (subterfúgio) para justificar e legitimar ideologicamente esta nova
forma de poder dominante tirânico: sacralizá-lo através de um espírito
supranatural criado à imagem do novo rei temporal cruel e vingativo: o eterno
Deus Todo-Poderoso.
O rei encarna Deus na terra, e Deus é o rei desencarnado no céu. Quem adora
Deus reverencia o rei. O rei é tão poderoso e omnisciente como Deus. O seu
poder é sagrado. Quem teme a Deus teme o Rei. Quem fere o rei blasfema contra
Deus. Assim, toda a autoridade real é estabelecida por Deus, para o bem
daqueles que lhe estão sujeitos.
Paradoxalmente, as duas entidades estão instaladas no firmamento das
galáxias governamentais. Deus está
entronizado no Céu, na sua abóbada celeste, longe dos olhos dos seus seguidores
incultos, protegido do olhar indiscreto e profano dos discípulos da curiosidade
científica baseada na evidência. O Rei reina nos seus sumptuosos palácios,
inacessíveis ao comum dos mortais, ao abrigo da proximidade e promiscuidade das
massas populosas escravizadas pelo seu poder incontestado. Será isso uma prova
da sua superioridade divina ou uma garantia da sua segurança pessoal contra o
destronamento?
Não é de admirar, portanto, que reis e deuses tenham estado sempre
interligados: os reis são supostos encarnar o poder incontestado dos deuses na
terra. Actualmente, os reis foram substituídos por presidentes.
Por isso, não é surpreendente que muitas religiões tenham incorporado o
medo nas suas fundações. A ideia do dia do juízo final e do pecado que provoca
a ira de um Deus serve para aterrorizar os seguidores.
Quanto à espiritualidade, expulsa pela "religião oligárquica",
fundada na submissão à ordem iníqua existente, tornou-se uma alma maldita,
condenada a sobreviver apenas no coração de alguns sobreviventes individuais,
poupados às malfeitorias difundidas pela nova "religião politizada e
policiada" dos poderosos, esses corruptores de almas, inventores de dogmas
oficiais sacralizados.
Desde o nascimento da sociedade de classes, a religião e a espiritualidade
seguiram dois caminhos distintos. Enquanto a religião (apoiada por uma poderosa
infraestrutura de culto e um exército de teólogos pagos pelo Estado) serviu
desde então apenas os poderes estabelecidos, ou seja, as classes dominantes,
como meio de escravizar o povo, a espiritualidade (a qualidade de ser livre de
toda a materialidade) refugiou-se no coração de algumas almas entre o povo
incorruptível.
Numa sociedade de classes, a religião e a espiritualidade são antinómicas.
Enquanto a fonte última de autoridade da espiritualidade está no indivíduo,
para todas as religiões gregárias está em Deus, representado na terra pelo rei,
a classe dominante.
Assim, as duas pertencem a mundos distintos devido às suas concepções muito
diferentes de autoridade. Para a espiritualidade, a fonte última da autoridade
reside no indivíduo, enquanto nas religiões ela se concentra exclusivamente em
Deus (e, evidentemente, na instituição religiosa, o poder do Estado).
Numa sociedade de classes, a "verdade ontológica", tal como a
verdade científica, é sempre a da classe dominante. Ela exprime a alienação da
dominação e a dominação da alienação. Por conseguinte, é, na sua essência, o
triunfo da propagação do falso como verdade.
Assim, a religião resume-se à subordinação dos seres humanos a fontes
externas e transcendentes de autoridade, e encarna a opressão e a exploração.
Além disso, a religião defende e legitima a riqueza ilimitada e, por
conseguinte, o apego aos bens materiais, enquanto a espiritualidade exalta o
desapego ao material, o desprezo pelos bens, a condenação da riqueza e da
opulência.
Em suma, enquanto a espiritualidade é autónoma e imanente, a religião
baseia-se na heteronomia, o que significa que recebe as suas regras do
exterior, em vez de as extrair de si própria.
Em todo o caso, toda a religião é uma actividade ritualizada e sacralizada
que se impõe a todos os crentes como um dever imperativo a cumprir
escrupulosamente, sem discussão nem contestação. Ao contrário da
espiritualidade, que é entendida como uma entidade sui generis.
Como disse um comentador: "A religião e a espiritualidade são tão
diferentes como o óleo e a água. Podem ser líquidos, mas têm um impacto muito
diferente nas sociedades e na própria vida humana". Quando sabemos que a
água é a fonte da vida, não podemos deixar de a associar à espiritualidade. O
petróleo, pelo contrário, tem a reputação de agravar as tensões, tal como a
religião, de acordo com a expressão antiga: "deitar óleo para a fogueira!
Assim, a religião resume-se a instituições e rituais. A religião é uma instituição de culto que é normativa, restritiva e coerciva.
É verdade que a religião se caracteriza pela sua força coerciva, mas
caracteriza-se também pela sua força de inércia. É uma entidade estática e
inerte, ilustrada pela sua involução e invariância.
No fundo, ao longo dos séculos, a religião nas sociedades de classe
tornou-se um programa político teocraticamente espiritualizado, uma relação
social de dominação transcendentalmente sublimada, uma obra de submissão
divinamente magnificada, uma estética deificada de subjugação popular.
Nas sociedades de classe, a religião reina em todo o lado, excepto no
coração das pessoas. Por outras palavras, ela penetra em todos os estratos das
instituições administrativas e confessionais e da sociedade, mas nunca no
coração humano. Pela simples razão de que a dimensão espiritual se evaporou da
sociedade de classes regida por relações de exploração sancionadas pela
religião, instituída pelas classes dominantes como instrumento de escravização
da população alienada. Apenas o carácter político totalitário da religião
predomina na sociedade.
Uma sociedade dividida em classes jamais poderá abrigar qualquer
espiritualidade, mesmo que fosse fundamentalmente teocrática, regida por
princípios teológicos. Basta olhar para a sociedade americana, que é
profundamente religiosa, para a sociedade iraniana e para a sociedade saudita,
onde a religião é a religião do Estado. A sociedade israelita está impregnada
de ensinamentos da Torah.
A religião não é sinónimo de espiritualidade, longe disso. A religião é
para a espiritualidade o que um placebo é para a medicina. A religião é um
tratamento ritual confessional sem qualquer princípio activo sobre o
comportamento. A absorção da religião, mesmo em grandes doses, não alivia de
forma alguma o comportamento fundamentalmente desviante e violento dos seus
seguidores atormentados pelo vazio existencial, assolados pelos seus demónios
interiores, habitados pelo demónio da destruição, produzido por uma sociedade
de classes regida por relações de exploração e opressão, uma sociedade fundada
pela e na violência, perpetuada pela violência.
O que me leva a afirmar que, desde há milhares de anos, nenhuma religião
contém qualquer espiritualidade. A espiritualidade é ontologicamente inerente à
personalidade. Não tem absolutamente nada a ver com a entidade religiosa. Muito
menos com uma religião estatal.
A espiritualidade está consubstancialmente ligada ao ego, ancorada na alma
pessoal. Ou se tem espiritualidade ou não se tem. Tal como a empatia, a capacidade
de sentir as emoções, sentimentos e experiências de outra pessoa ou de nos
colocarmos no seu lugar. A espiritualidade é inerente ao ser humano, é a sua
transcendência pessoal. Exprime-se na meditação, na arte, na filosofia, na
contemplação (intelectual ou outra) e na simbiose com a natureza.
A espiritualidade não se aprende nas escolas, nos locais de culto, nos
livros seculares ou no Livro Sagrado, que são instituições dominadas,
formatadas e controladas pelas classes dominantes. A ideologia dominante é
sempre a da classe dominante.
A espiritualidade instala-se naturalmente no coração de um ser
instintivamente cheio de humanidade, um ser poupado à corrupção moral incutida
pelas classes dominantes, que são essencialmente más e mefíticas. Não pode nunca
instalar-se em seres desprovidos de coração, mesmo que sejam seguidores de uma
religião, dogma oficial dos poderosos. Curiosamente, as classes dominantes só
adoptam e aceitam religiões de resignação e submissão, de acordo com a sua
filosofia predadora e dominadora.
Mais uma razão para que, hoje em dia, a espiritualidade não encontre
guarida no Islão salafita, que se baseia na brutalidade, na ferocidade, na
bestialidade e na desumanidade.
A religião não transmite espiritualidade. Não é sinónimo de virtude. Nem
uma garantia de moralidade.
A prova está na Argélia, que é vítima de um clima de violência permanente,
apesar da fé islâmica dos seus habitantes. Os argelinos, apesar de serem
muçulmanos, são terrivelmente agressivos nas suas relações sociais. O espírito
belicoso rege a sua existência e domina o seu temperamento tempestuoso.
A islamização escandalosa da sociedade conduziu a comportamentos histéricos
e a uma propagação viral da violência, que culminou na terrível década negra
dos anos 90, durante a qual o Islão, simbolizado pela cor verde, assumiu as
cores do vermelho sangue.
O espírito religioso fanático, tal como o das classes dominantes, está
sempre inquieto, excitado, inflamado, ansioso e desencadeado. Só aspira ao
repouso, à paz e à serenidade quando já passou, quando está no Além. Tal como
toda a classe dominante só se sente política e socialmente apaziguada depois de
neutralizar toda a dissidência, de esmagar toda a dissidência, de transformar o
país num cemitério existencial para o povo dominado e oprimido. O seu paraíso é
construído sobre o inferno do povo.
A vida terrena do fanático religioso não passa de uma guerra permanente
travada contra si próprio e, sobretudo, contra os outros espíritos rebeldes,
insubordinados, sediciosos e amantes da liberdade. O fanático religioso
persegue todas as suas inclinações naturais terrenas para cumprir as
fantasiosas recomendações celestes (na realidade, recomendações governamentais
revestidas de sacralidade). Nunca está em sintonia com a sua consciência, que é
sempre desconfiada, suspeita e eternamente despótica (traços característicos
das classes dominantes, que são essencialmente ilegítimas e, por isso, estão
sempre em guarda). Tal como domou a sua consciência atormentada para se manter
fiel às exigências do seu criador, gostaria de submeter todas as consciências
ao mesmo destino autocrático (tal como a classe dominante, para perpetuar a
fidelidade da sua riqueza, submete o povo ao seu poder despótico).
Durante séculos, a Europa cristã travou guerras de extermínio em nome da
religião. O mesmo se passa com o mundo muçulmano. Hoje, Israel, esse Estado
judaico teocrático, trava uma guerra genocida contra os palestinianos em nome
da sua religião hebraica.
Um homem espiritual nunca aceitaria matar em nome de uma religião.
Preferiria suicidar-se a tirar a vida ao seu semelhante em nome de um dogma
religioso.
Prova de que a religião há muito se livrou de toda a espiritualidade. E é
uma derrota para toda a humanidade. A religião, pelas classes dominantes,
falhou na sua missão histórica.
Cabe à humanidade contemporânea trabalhar para ressuscitar a
espiritualidade adormecida em cada homem e mulher do povo. Mas uma
espiritualidade secularizada e universal. No entanto, para isso, deve primeiro
aniquilar a sociedade de classes que fundou as religiões oligárquicas
beligerantes, abolir o sistema capitalista.
Khider MESLOUB
Fonte: Aucune religion ne recèle quelque spiritualité – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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