terça-feira, 7 de maio de 2024

As origens das relações entre a Arábia Saudita e a Irmandade Muçulmana

 


 Maio 7, 2024  René Naba  

RENÉ NABA — Este texto é publicado em parceria com a www.madaniya.info.

https://www.madaniya.info/ dedica um dossier em duas partes às relações entre a Arábia Saudita e o Egipto desde o tempo de Gamal Abdel Nasser, líder da luta nacionalista árabe, até à fusão sírio-egípcia (1958-1961).

Parte 1: As origens das relações entre a Arábia Saudita e a Irmandade Muçulmana

Parte 2: A corte real saudita sobre Gamal Abdel Nasser: "Matemos o homem".


As origens das relações entre a Arábia Saudita e a Irmandade Muçulmana

1- O diálogo do Rei Abdel Aziz da Arábia com o Sr. Hassan Al Banna

Em 1938, por ocasião da peregrinação anual a Meca, conhecida como a "Grande Peregrinação", Hassan Al Banna, fundador da Irmandade Muçulmana, solicitou ao rei Abdel Aziz da Arábia a possibilidade de abrir uma base para a sua organização política em território saudita. O diálogo que se seguiu foi o seguinte:

Hassan Al Banna: "Nós somos a Irmandade Muçulmana".

Rei Abdel Aziz: Irmandade Muçulmana? ... Somos todos irmãos. Somos todos muçulmanos.

Com esta observação de rara perfídia, o monarca saudita quis deixar bem claro ao seu interlocutor egípcio que o fundador da dinastia wahhabita, guardiã do dogma fundamentalista, não toleraria a menor contestação ao Islão.  Não pode haver comparação nem concorrência com qualquer movimento fundamentalista, mesmo que seja fundado por um leigo. E enquanto a Irmandade se afirma como o principal grupo político trans-árabe, o Reino vê-se como o líder do mundo muçulmano no seu conjunto, na sua qualidade de guardião dos lugares santos do Islão.

Este diálogo corrosivo é relatado por Mohammad Sayyed Rassas, politólogo sírio e colunista do jornal libanês Al Akhbar, num artigo publicado a 21 de Janeiro de 2023. Natural de Latakia, Rassas é autor de vários livros, entre os quais "A queda do marxismo soviético", "Para além de Moscovo" e "O Irão e a Irmandade Muçulmana".

§  https://www.madaniya.info/2019/12/09/le-pakistan-face-au-defi-du-monde-post-occidental-1-2/

Dez anos mais tarde, em 1948, Hassan Al Banna apoiou fortemente a "Revolução do Palácio" no Iémen, que levou à destituição do Imã Yahya Al Hamid Eddine.

O golpe de Estado no Iémen foi o primeiro golpe anti-monárquico no mundo árabe e o primeiro a resultar no assassinato de um rei árabe.  O segundo foi o golpe de Estado dos "oficiais livres" no Egipto, que levou à queda do rei Farouk.

Este golpe de Estado anti-monárquico no Iémen provocou um reflexo de auto-defesa entre as monarquias árabes. O assalto para reconquistar a capital iemenita foi lançado com a ajuda das tribos Zaydi a norte de Sanaa e na província de Sa'ada. O novo imã, da família Al Wazir, entronizado pelos golpistas, foi morto. A Irmandade Muçulmana sofreu este revés no momento em que o rei Farouk do Egipto se preparava para proibir a Irmandade.

O governo egípcio decretou a proibição em Dezembro de 1948. Dois meses mais tarde, Hassan Al Banna foi assassinado. A sua eliminação parece ter sido uma resposta à sua conspiração no Iémen. As monarquias uniram-se assim para neutralizar a ameaça que a Irmandade representava para elas.

2- A ascensão do nacionalismo árabe e a inversão de alianças na década de 1950.

A aliança inverteu-se na década de 1950, quando a dinastia wahhabita entrou em pânico com a ascensão do nacionalismo árabe nos países republicanos sob a liderança de Gamal Abdel Nasser - o "fluxo nasseriano" marcado, nomeadamente, pela nacionalização do Canal do Suez em 1956, a primeira nacionalização bem sucedida no Terceiro Mundo, e pela primeira nacionalização bem sucedida no Terceiro Mundo, e a fusão sírio-egípcia em 1958, levaram a Arábia Saudita a romper a sua aliança com o Egipto, forjada nos anos 40 para contrariar as dinastias hachemitas do Iraque e da Jordânia. Trocou a aliança com o Egipto por uma aliança com a Irmandade Muçulmana, que foi atingida por uma terrível repressão ordenada por Nasser a partir de 1954.

A fusão sírio-egípcia suscitou tal receio na Arábia Saudita que o rei Saud chegou ao ponto de ordenar um atentado contra o presidente Nasser, ordenando a destruição do avião do dirigente saudita no seu regresso ao Cairo.

O responsável por esta operação recebeu a soma de 2 milhões de libras, segundo as revelações de Jaafar Al Bakli, académico tunisino, investigador de questões islâmicas, especialista em história política dos países árabes, nomeadamente dos Estados do Golfo, e colunista do diário libanês Al Akhbar.

3- O afluxo de quadros egípcios à Arábia Saudita

Fugindo à repressão de Nasser, muitos dos líderes egípcios da Irmandade refugiaram-se na Arábia Saudita, pois a família real saudita acreditava que a Irmandade poderia servir de contrapeso útil aos objectivos de Nasser, contra o qual travou uma batalha por procuração no Iémen na década de 1960, a "Guerra dos Monárquicos contra os Republicanos" (1960-1967).

O Egipto apoiou os republicanos que tinham abolido a monarquia, em particular o Imamat da dinastia Al Hamid Eddine, e a Arábia Saudita trabalhou para restabelecer a monarquia.

Simultaneamente, um grande número de académicos, engenheiros médicos, professores e jornalistas da confederação foram recrutados para a administração saudita, que na altura sofria de uma cruel carência de quadros competentes, que acabariam por ocupar cargos importantes nos sectores da educação e da universidade.

((Nota da redacção: em 2015, 65 anos depois, um escritor saudita tentou justificar a islamização da sociedade saudita pelo afluxo de gestores árabes ao reino, como que a culpar os outros pela promoção do terrorismo islâmico em todo o mundo, quando o wahhabismo é consubstancialmente fundamentalista.

§  Veja este link para a tentativa saudita de culpar quadros árabes do Egipto, Iraque e Síria pelo fundamentalismo islâmico.
https://www.madaniya.info/2015/11/26/l-extremisme-en-arabie-saoudite/

4- A guerra anti-soviética no Afeganistão: o apogeu da aliança Arábia Saudita-Irmandade

Esta aliança saudo-irmandade prosseguiu após a morte de Nasser, atingindo o seu apogeu na década de 1980, no auge da Guerra Fria soviético-americana, nomeadamente durante a guerra anti-soviética no Afeganistão (1979-1989). Esta aliança manteve-se apesar do assassinato, por islamistas egípcios, em 1981, do Presidente Anwar Sadat, um importante aliado dos Estados Unidos e signatário do primeiro tratado de paz entre Israel e um Estado árabe.

Em perfeita coordenação com o Paquistão e os Estados Unidos, hostis à invasão soviética do Afeganistão, em 27 de Dezembro de 1979, o Reino da Arábia Saudita recrutou dezenas de milhares de "árabes afegãos", na realidade islamistas de países árabes, para fazer a guerra contra a União Soviética no Afeganistão.

A grande maioria dos "árabes afegãos" eram membros de grupos islamistas pertencentes à Irmandade Muçulmana. O seu papel foi mais importante do que o dos mujahedin afegãos na derrota dos soviéticos até à sua retirada em 1989.

Na altura, a URSS foi apresentada como uma "potência ateia", apesar de ser o principal fornecedor de armas a sete países árabes (Egipto, Síria, Iraque, OLP, bem como Argélia, Líbia e Sudão, ou seja, quatro países no campo de batalha contra Israel e três países na Frente.

A derrota soviética no Afeganistão foi decisiva para o triunfo dos Estados Unidos na Guerra Fria (1948-1990), que opunha os Estados Unidos à União Soviética desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A derrota soviética conduziu, dois anos mais tarde, ao colapso da URSS e ao desmantelamento do bloco comunista, os países do antigo Pacto de Varsóvia.

5- 1990: A invasão iraquiana do Kuwait e a ruptura de facto da aliança entre a Arábia Saudita e a Irmandade Muçulmana.

A aliança saudo-irmandade durou quarenta anos. Formada em 1958, aquando da fusão sírio-egípcia, a aliança foi rompida de facto em 1990, aquando da invasão iraquiana do Kuwait, apoiada por quase todas as formações da Irmandade, com a excepção notável do ramo kuwaitiano da Irmandade Muçulmana.

Oitenta organizações, partidos e outros grupos pertencentes à Irmandade não só saudaram a invasão iraquiana do Kuwait, como também denunciaram a formação de uma coligação internacional de 30 países, criada conjuntamente pelos Estados Unidos e pela Arábia Saudita para expulsar o Presidente iraquiano Saddam Hussein do Kuwait.

É certo que a Arábia Saudita não ordenou a repressão dos Irmãos Muçulmanos que residiam no seu território nessa altura. Mas a oposição de Riade ao novo regime que tomou o poder no Sudão, através de um golpe de Estado, em 30 de Julho de 1989, e o apoio continuado do reino ao presidente egípcio Hosni Mubarak e ao presidente tunisino Zine el Abidine Ben Ali, que estavam na vanguarda da luta contra o islamismo na altura, foram sinais de que a dinastia wahhabita se estava a distanciar da Irmandade.

6- O ataque de 11 de Setembro de 2001 contra os Estados Unidos selou a ruptura definitiva entre o Reino Saudita e a Irmandade Muçulmana.

Este distanciamento conduziu a uma ruptura clara após o atentado terrorista de 11 de Setembro de 2001 contra os símbolos da hiperpotência americana, cometido por piratas do ar, 15 dos quais de nacionalidade saudita.

O príncipe Nayef Ben Abdel Aziz, ministro do Interior, responsabilizou a Irmandade Muçulmana pelos "problemas da Arábia". "Todos os nossos problemas e as suas repercussões têm origem na Irmandade Muçulmana", declarou numa entrevista ao diário saudita Asharq Al Awsat.

Desde então, Riade conduziu uma guerra paralela contra o movimento Al-Qaeda, cuja criação tinha encorajado sob a égide de um dos seus cidadãos, Osama bin Laden, durante a guerra anti-soviética no Afeganistão, e expurgou o sistema educativo e universitário saudita, bem como a imprensa, de todos os elementos filiados na Irmandade Muçulmana, fossem ou não cidadãos sauditas.

7- A invasão do Iraque pelos EUA e as divergências saudita-americanas sobre a Irmandade Muçulmana.

Washington não partilhava a opinião de Riade sobre a Irmandade Muçulmana. Os Estados Unidos queriam alistar a Irmandade Muçulmana na sua luta contra a Al Qaeda. Os americanos trabalharam arduamente para estabelecer contactos no Iraque com o ramo iraquiano da Irmandade - o Partido Islâmico do Iraque - a fim de quebrar o boicote da comunidade sunita iraquiana contra a Irmandade e levá-la a colaborar com as forças de invasão americanas.

Os americanos conseguiram finalmente convencer a Irmandade Muçulmana iraquiana a juntar-se ao governo de Nouri Al Maliki em 2006.

8- O entusiasmo pró-islamista dos americanos durante a chamada Primavera Árabe.

A caça furtiva ao ramo iraquiano da Irmandade levou os americanos a repetirem a sua experiência na Turquia, com a franja islamita representada pelo Partido da Justiça e do Desenvolvimento do futuro Presidente Reccep Tayip Erdogan. Uma aprovação da "experiência islamista" de Erdogan, para usar a expressão actual.

A paixão islamista dos Estados Unidos foi evidente quando os islamistas chegaram ao poder na Tunísia e no Egipto, bem como quando tomaram o poder no Iémen e na Líbia durante a "Primavera Árabe" de 2011-2012.

9-Turki Ben Faysal: "Derrubámos Mohammad Morsi contra a vontade de Obama"

Turki Ben Faysal, antigo chefe dos serviços secretos sauditas durante a guerra anti-soviética no Afeganistão e tutor de Osama Bin Laden, vai exibir publicamente o seu orgulho por ter provocado "a queda de Mohamad Morsi, o primeiro presidente islamita do Egipto, contra a vontade de Barack Obama", o Presidente dos Estados Unidos.

Para não deixar margem para ambiguidades, o príncipe Turki, que é um dos filhos do falecido rei Faisal da Arábia, redigiu pessoalmente o seu artigo de opinião, que enviou ao diário Asharq Al Awsat em 2015.

Nessa altura, o embaixador dos Estados Unidos no Cairo visitava frequentemente a sede da Irmandade na capital egípcia, no sector al Muqattam, para se encontrar com o guia supremo da Irmandade Muçulmana, Mohammad Badie, e posar para os fotógrafos com ele.

10 – O pesadelo dos sauditas: O islamista Erdogan nas margens do Bósforo e o islamita Morsi nas margens do Nilo.

Os sauditas estavam em total oposição à visão americana.

O espectáculo do islamista Erdogan nas margens do Bósforo e do islamista Morsi nas margens do Nilo era para a dinastia wahhabita um doloroso remake de um mau filme. Era um pesadelo que os remetia para o terrível cenário que tinham vivido em 1818, quando o paxá do Egipto, Mohammad Ali Bacha, se apoderou do emir saudita durante a conquista de Ad Darrhiya, a capital saudita na altura, e o conduziu algemado ao sultão otomano, onde foi enforcado numa forca erguida nas margens do Bósforo.

Os sauditas ficaram ainda mais apreensivos com a "paixão islamista dos americanos" quando o Presidente Erdogan se pavoneou de Tunes a Tripoli (Líbia), no Outono de 2011, para o Cairo como o novo sultão do Império Otomano, o sultão Salim I, que foi de vitória em vitória, derrotando os mamelucos em Damasco, em 1516, antes de tomar o Egipto e, finalmente, conquistar o Hedjaz.

11- O decreto de 7 de Março de 2014 e a criminalização da Irmandade Muçulmana pela Arábia Saudita.

Um decreto real de 7 de Março de 2014 criminalizou a Irmandade Muçulmana, classificando-a como "organização terrorista". Uma medida que se aplica a todas as componentes da Irmandade. A dinastia wahhabita criminalizou também o Hezbollah libanês.

Mas enquanto a Irmandade Muçulmana sunita foi ostracizada na sua totalidade, dentro e fora da Arábia Saudita, o grupo paramilitar xiita libanês foi criminalizado exclusivamente no seu ramo saudita.

12- Uma Guerra Secreta Permanente

De facto, a guerra contra a Irmandade Muçulmana começou em 2011 no Egipto, na Líbia, na Tunísia e até na Síria, apesar de Riade se ter distanciado do regime baathista de Damasco.

Uma guerra secreta contra os fundamentalistas islâmicos, que se instala no seio da coligação da oposição síria off-shore, na sua primeira forma, o "Conselho Nacional Sírio".

Em Maio de 2013, a Arábia Saudita conseguiu alargar a representação do Conselho Nacional, patrocinando a candidatura de Ahmad Jerba, um chefe tribal próximo do Reino, e de Michel Kilo, um comunista cristão e antigo preso político, para contrabalançar a influência preponderante da Turquia e do Qatar, os dois patrocinadores da Irmandade Muçulmana.

Esta guerra continua até hoje e reflecte-se no apoio da Arábia Saudita ao egípcio Abdel Fattah Ismail, ao líbio Khalifa Haftar, ao tunisino Quais Said e a Mahmoud Abbas, chefe da Autoridade Palestiniana em Ramallah, contra o Hamas, o ramo palestiniano da Irmandade Muçulmana, que controla o enclave de Gaza.

Por último, o último exemplo de apoio saudita a um país árabe é o seu apoio ao golpe de Estado de 11 de Abril de 2018 no Sudão, que depôs o General Omar Al Bachir do poder.

Uma posição que torna problemática qualquer aproximação real entre a Arábia Saudita e a Turquia, pelo menos enquanto o islamista Erdogan permanecer no poder.

Sobre a Irmandade Muçulmana, ver este link

§  https://www.madaniya.info/2014/12/17/la-confrerie-des-freres-musulmans-un-vestige-de-la-guerre-froide-1-3/

§  https://www.madaniya.info/2014/12/19/la-confrerie-des-freres-musulmans-un-vestige-de-la-guerre-froide-2-3/

§  https://www.madaniya.info/2014/12/23/la-confrerie-des-freres-musulmans-un-vestige-de-la-guerre-froide-3-3/

A tentativa saudita de culpar quadros árabes do Egipto, Iraque e Síria pelo fundamentalismo islâmico quando o wahhabismo é inerentemente fundamentalista, cf.

§  https://www.madaniya.info/2015/11/26/l-extremisme-en-arabie-saoudite/

 

Fonte: Aux origines des relations entre l’Arabie saoudite et la confrérie des Frères Musulmans – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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