domingo, 19 de maio de 2024

Contra o individualismo e a mentalidade de círculo "2.0" da década de 2020

 



Uma nova geração de militantes comunistas tem vindo a surgir nos últimos anos. Este fenómeno foi acelerado pela inquietação e pela consciência de que o capitalismo não só não consegue resolver as suas contradições económicas, mas sobretudo que está a arrastar a humanidade para o abismo da guerra imperialista generalizada. Como é que os indivíduos "conscientes" podem opor-se a este desfecho dramático senão através da militância revolucionária e, portanto, comunista? Esta geração, categoria relativa que utilizamos aqui para facilitar a exposição, é chamada a constituir o partido mundial que, armado com o programa comunista e com as palavras de ordem da insurreição e da ditadura do proletariado, poderá e terá a tarefa de "dirigir" o proletariado no meio do furacão e das diversas batalhas de classes sociais que se avizinham. Porque, não tenhamos dúvidas, a burguesia é, e sempre será, obrigada a atacar o proletariado na preparação da guerra.

Os períodos em que o proletariado se mobiliza em massa, particularmente os períodos revolucionários e mesmo pré-revolucionários, mudam a atmosfera social em que o partido, ou pelo menos os grupos comunistas, e os seus membros vivem e actuam, em comparação com os períodos em que as lutas de massas são raras. Na ausência de tais lutas operárias, as forças revolucionárias e os seus membros, enquanto comunistas militantes, encontram-se mais ou menos "socialmente" isolados, por vezes mesmo em desacordo com os sentimentos e opiniões de cada proletário. O resultado, entre outras coisas, é que o empenhamento comunista individual - distinto da militância esquerdista[1]  - é "socialmente" marginal, incluindo entre os operários e os assalariados explorados, e largamente ignorado e incompreendido, por vezes mesmo por aqueles que estão próximos do militante comunista. Consequentemente, podem ter dificuldade em estabelecer uma ligação entre a dimensão militante e a dimensão privada da sua vida quotidiana.

Entre os novos e jovens camaradas, há muitas questões sobre a relação entre a vida militante e a vida pessoal: é possível empenhar-se na luta comunista organizada e manter relações afectivas com não militantes, ou mesmo com pessoas estranhas e insensíveis ao comunismo e ao compromisso revolucionário? E, em caso afirmativo, até que ponto? O que se lhes pode dizer e o que se pode partilhar com eles? Como é que articula o desempenho das tarefas de militante com a vida familiar e/ou profissional? Uma relação amorosa? A educação e o cuidado dos filhos, por exemplo?

Um estilo de vida individual "em sintonia" com a luta pelo comunismo

A compreensão da relação partido-membro é uma questão política de pleno direito que o movimento operário já abordou e sobre a qual já definiu princípios gerais. Não é por acaso que, desde a Liga dos Comunistas, as questões de funcionamento e as regras de organização que ditam as relações no seio da organização política são também consideradas questões programáticas. Como tal, os estatutos da organização comunista devem ser considerados parte integrante da plataforma política de qualquer grupo comunista - do partido de amanhã. Já em 1847, uma das primeiras condições de adesão à Liga dos Comunistas era que o membro adoptasse "um modo de vida e de atividade em conformidade com este objetivo"[2], ou seja, o do partido comunista. ou seja, o comunismo.

Desde o início, seguiu-se uma série de regras. Para dar um exemplo simples que deveria ser claro para todos, um militante comunista não pode estar ao serviço da repressão anti-proletária do Estado capitalista. Um membro de uma organização comunista que seja polícia ou agente de um serviço de informações do Estado constituiria um risco em termos de repressão e de infiltração para o partido. Mas poderia também encontrar-se em contradição aberta com qualquer forma de convicção e compromisso comunista, pelo próprio facto da sua vida quotidiana e das actividades práticas que o seu "meio de vida" implica. A situação seria insustentável para o indivíduo, no caso muito improvável de ele se considerar sinceramente comunista. O mesmo se aplica a outras actividades, como o tráfico de droga, de armas[3], de seres humanos, etc.


1. Não temos aqui espaço para explicar a oposição de classe entre militância comunista e militância de esquerda e as suas implicações concretas.

[3]. Típico aventureiro político, Parvus (1867-1924) foi um membro proeminente da ala esquerda da social-democracia, ao lado de Rosa Luxemburgo e Trotsky em particular. Desempenhou um papel de relevo no debate sobre a greve de massas e durante a Revolução Russa de 1905, juntamente com o próprio Trotsky. Os primeiros sinais de um estilo de vida inconformista surgem quando se recusa a pagar o que devia a Maxim Gorky e ao Partido Social-Democrata pela "produção" da peça Les bas fonds. Homem de negócios "dotado", "envolveu-se em especulações durante as guerras dos Balcãs e enriqueceu ao serviço dos turcos" (Paul Frölich, Rosa Luxemburgo), nomeadamente através do tráfico de armas. Tudo isto conduziu a um afastamento progressivo de Parvus dos círculos revolucionários e, nomeadamente, a uma rutura pessoal com Rosa Luxemburgo. Provavelmente um revolucionário sincero, acreditava poder utilizar as suas capacidades pessoais de homem de negócios e os seus contactos com o mundo dos negócios e com o Estado ao serviço da revolução. Não há dúvida de que este tipo de personagem, acreditando estar destinado a um papel e a um destino históricos, reaparece regularmente nas fileiras revolucionárias. Obviamente, mais ainda durante os períodos revolucionários... Quaisquer que sejam os serviços que acreditem poder prestar ao movimento comunista, nomeadamente o seu financiamento, estes indivíduos representam um perigo a combater para as organizações comunistas.

4. . K. Marx, Carta a F. Bolte, 23 de novembro de 1871, Sobre o Partido Revolucionário, Éditions sociales, 2023.

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A lista não é exaustiva. Inclui crenças religiosas que só podem exprimir uma incompreensão de princípio da teoria revolucionária do proletariado, isto é, do materialismo histórico ou do marxismo, ou a adesão à Maçonaria. Do mesmo modo, a organização comunista não pode aceitar nas suas fileiras militantes que manifestem opiniões e práticas abertamente racistas, xenófobas ou sexistas, ou que recorram à violência física em qualquer tipo de relação.

Mais complexos de decidir são os casos em que o membro chegou a um impasse pessoal que o leva a envolver-se em actividades duvidosas e perigosas para tentar "sobreviver". Por exemplo, um membro que tenha trabalhado como gangster, ou que tenha dívidas de jogo, ou que tenha tido de se prostituir, para sobreviver ou não. Infelizmente, estas situações já aconteceram e voltarão a acontecer no futuro. Ou, outra situação difícil de gerir para o membro e para a organização, o primeiro tem no seu círculo próximo, na família, nos amigos, no trabalho, indivíduos que pertencem à polícia, ao submundo, ou mesmo membros activos - dirigentes em particular - de partidos políticos burgueses. Até que ponto um militante comunista consegue não falar das suas "ideias políticas", mas do seu empenhamento e da sua actividade militante numa organização comunista, continua a ser um problema e uma preocupação constante.

Quando estas situações individuais surgem, a organização é obrigada a lidar com elas e a ajudar - e proteger - o membro a reagir ou a sair delas. Muitas vezes, só o pode fazer com atraso, porque o membro está relutante em confiar na organização e ainda espera sair dela de uma forma ou de outra. Surgem então dois perigos para o todo que é a organização: o primeiro é o facto de o membro se encontrar sujeito a chantagem, particularmente por parte das forças repressivas do Estado; o segundo é o facto de enfraquecer muito, se não mesmo destruir, a sua convicção política e militante. Tanto mais que é possível, por vezes, mas não sempre, ao colectivo da organização comunista prevenir e ajudar os membros a não se encontrarem em tais impasses pessoais, que só podem ser catastróficos tanto para o indivíduo "privado" - ou mesmo para os seus familiares - como para o militante comunista. É por isso que toda a adesão e integração numa organização comunista deve passar por um processo sistemático não só de esclarecimento e verificação política da concordância do aspirante com as posições programáticas e orientações gerais da organização, mas também do significado do empenhamento militante, das regras e estatutos da organização e das condições e modo de vida do camarada. E isto tanto para a segurança da organização como para o futuro do militante comunista que a integra, da sua vontade militante e das suas convicções políticas.

Mas o princípio que orienta a resolução destes casos excepcionais e particulares, por vezes dolorosos e graves, não é suficiente para esclarecer e expor a relação entre as diferentes dimensões da vida individual do militante comunista. A partir da experiência do movimento operário, o marxismo definiu toda uma série de regras sobre o partido político proletário que têm valor de princípio. Para o leitor que deseja reapropriar-se e verificar a validade dos princípios comunistas nesta área, recordemos o fio contínuo da luta entre as forças que Lenine descreveu como pró-partido e anti-partido ao longo da história do comunismo. Começou com a luta de Marx e Engels, no seio da Liga dos Comunistas, contra as seitas proletárias da época, e no seio da I Internacional, a AIT, contra o anarquismo. "A história da Internacional tem sido uma luta incessante do Conselho Geral contra as seitas e as tentativas de amadores que tentavam, contra o movimento real da classe operária, afirmar-se no seio da própria Internacional"4.  Prosseguiu depois no seio da II Internacional, pelo menos a dois níveis: o da relação entre o partido e as suas fracções parlamentares, que procuravam a autonomia, e o da relação com os círculos que Lenine dirigia no Partido Social-Democrata Russo - o seu panfleto Um passo em frente, dois passos atrás foi um momento essencial da luta histórica pelo partido político proletário. Seguiu-se a luta conjunta do Partido Bolchevique e do que era então ainda a fação abstencionista do Partido Socialista Italiano, a chamada "Esquerda Italiana", pela adopção e observância das 21 condições de admissão à Internacional Comunista. Finalmente, continua com a luta desta esquerda, antes de se tornar uma fracção do PC de Itália e, mais tarde, nos anos 20, contra a bolchevização da ordem zinovievista, que abriu caminho à estalinização dos partidos comunistas da época.

Posteriormente, as correntes "Bordigista" e "Damenista"5 beneficiaram de uma continuidade orgânica directa com o Partido Comunista Italiano e a sua facção de esquerda. Por isso, sem dúvida, só voltaram a estas questões em algumas ocasiões. Por seu lado, a Corrente Comunista Internacional, surgida directamente de 1968 e influenciada pelo individualismo característico do ambiente de contestação estudantil da época, foi obrigada a travar vários debates e lutas internas sobre a questão organizativa, sobretudo durante as sucessivas crises organizativas. O resultado foi uma série de textos que os leitores podem encontrar na sua Revue internationale 6. Antes de avançarmos no nosso tema, as diferentes dimensões da vida do militante comunista, vale a pena recordar, em termos muito gerais, os grandes princípios que definem as relações de militância e o quadro histórico ou de luta em que elas se devem desenvolver.

O proletariado como classe produz organizações comunistas, não indivíduos comunistas

"Ao atribuir ao partido revolucionário o seu lugar e o seu papel na génese de uma nova sociedade, a doutrina marxista fornece a solução mais brilhante para o problema da liberdade e da determinação na actividade humana. Enquanto for colocado em relação ao "indivíduo" abstracto, este problema será apenas objecto de elucubrações metafísicas por parte dos filósofos da classe dominante e decadente. O marxismo, pelo contrário, coloca-o à luz de uma concepção científica e objectiva da sociedade e da história. A ideia de que o indivíduo - e só um indivíduo - pode agir sobre o mundo exterior deformando-o e moldando-o à sua vontade em virtude de um poder de iniciativa que lhe viria de qualidades de natureza divina está muito longe da nossa concepção; condenamos igualmente a concepção voluntarista do partido segundo a qual, tendo forjado uma profissão de fé, um pequeno grupo de homens poderia impô-la ao mundo difundindo-a através de um esforço gigantesco de actividade, vontade e heroísmo." 7

Historicamente, a classe proletária "da qual nasce a consciência da necessidade de uma revolução radical, consciência que é a consciência comunista"8 não produz indivíduos revolucionários, mas organizações políticas às quais confia militantes que a elas aderem e as compõem. Neste sentido, a organização, o todo, permite ao militante, na condição de se integrar na actividade revolucionária do corpo colectivo, ultrapassar a sua própria singularidade. Ao fazê-lo, o membro activo, na acção colectiva, torna-se um produto e uma expressão do todo, da organização, e da luta permanente pela sua unidade, tal como qualquer outra parte da organização, secção local, secção territorial, órgãos centrais, etc. O resultado é que o todo, o partido ou o grupo comunista, tem precedência sobre o militante individual. A implicação política desta posição é que o partido ou a organização não está ao serviço do militante, mas que o militante está ao serviço do colectivo. Por exemplo, a organização política proletária não tem nenhuma concepção de escola educativa, nem nenhuma obrigação particular de formação e desenvolvimento teórico individual dos seus membros. Em contrapartida, tem a responsabilidade de dirigir e velar pela reapropriação e aprofundamento teórico e político do conjunto, pela sua luta permanente de clarificação teórico-política e pela sua unidade política.

Como expressão e materialização da consciência comunista, as posições programáticas da organização comunista, do partido, não são a soma das posições individuais de cada um dos seus membros, nem o produto deste ou daquele pensamento de um comunista individual ou de um grupo de comunistas individuais, nem mesmo de uma sucessão de pensadores comunistas particularmente brilhantes. São, acima de tudo, o produto histórico da luta proletária que as minorias comunistas - as mais altas expressões da consciência de classe - têm vindo a reunir e a sintetizar desde o Manifesto Comunista. A sua tarefa consiste em propagar esta consciência de classe nas fileiras operárias e em assegurar a direcção política da luta proletária. Esta visão não significa que o papel do militante individual possa ser resumido apenas a reapropriação - indispensável - das posições programáticas.


 

5. Principalmente, o Parti communiste internationaliste publicou Programme communiste e Le Prolétaire para o bordiguismo e, para o segundo, Il Partito comunista internazionalista que publicou Battaglia comunista e Prometeo, na origem da Tendance communiste internationaliste.

6 . Algumas referências: do PCI-Programme communiste, Programme communiste #86, Les bases du militantisme communiste; do CCI, Revue internationale #5, 29 e 33 (para nos limitarmos): Les statuts des organisations internationales du prolétariat, Rapport sur la fonction de l'organisation, Rapport sur la structure et le fonctionnement de l'organisation. Os boletins internos do TPI contêm numerosas contribuições sobre o assunto. Seria certamente útil reuni-los e publicá-los um dia. Várias contribuições escritas pelo membro do CCPE Marc Chirik sobre a relação partido-militante podem ser encontradas em Marc Laverne et le CCI, textes choisis et rassemblés par Pierre Hempel (apenas em francês).

7. Teses de "Lyon", apresentadas pela Esquerda, a futura facção da Esquerda, no 3º Congresso do PC italiano, 1926.

8 . K. Marx, A Ideologia Alemã, Éditions sociales.

 

 

Os membros têm o dever de participar na sua verificação e desenvolvimento colectivos. Neste sentido, embora possam e devam dar um contributo individual que não pode ser negado ou rejeitado, este só pode ser dado no quadro do património histórico e no quadro organizado e colectivo da organização militante comunista. 

Salvo raras excepções históricas correspondentes a uma época passada do capitalismo, as energias individuais só podem encontrar o seu campo de acção e o seu papel no quadro formal do partido ou da organização comunista, expressão material desse todo. Os indivíduos com posições revolucionárias podem existir à margem das organizações políticas comunistas. Aqueles que ainda hoje podem aparecer como tal foram quase todos membros de grupos da esquerda comunista ou outros, que acabaram por abandonar por uma razão ou outra. As posições políticas que podem defender são, elas próprias, o produto da experiência histórica do proletariado que podem ter adquirido através do seu tempo em organizações comunistas ou através da sua referência directa ou indirecta a elas. Mas a existência de indivíduos revolucionários não organizados só pode ser temporária e circunstancial. Mais cedo ou mais tarde, num grau ou noutro, esses indivíduos são obrigados a ligar-se e a referir-se a um quadro programático e a uma corrente histórica comunista, se quiserem manter a sua convicção comunista e um mínimo de vontade militante. Caso contrário, estão condenados a justificar, de forma individualista, a sua recusa em participar num colectivo organizado e militante, e a afastar-se das posições revolucionárias, ou a desmoralizar-se e, a prazo, a desaparecer como militantes proletários efectivos. "Podemos também ver, a partir destas discussões, o quanto Feuerbach está enganado quando (...) se proclama comunista e transforma este nome num predicado do Homem, acreditando assim poder retransformar numa simples categoria o termo comunista que, no mundo atual, designa o adepto de um determinado partido revolucionário".10

As posições actuais da esquerda comunista são o resultado do trabalho de sucessivas gerações de revolucionários, ou mais precisamente de organizações, grupos e partidos comunistas. Em si, não faz sentido "refazer um trabalho que já foi feito". "Seria uma conceção completamente errónea do Partido exigir de cada um dos seus membros, considerados isoladamente, uma perfeita consciência crítica e um total espírito de sacrifício"11.  Daí o trabalho de reapropriação, que difere do método daqueles que querem descobrir tudo por si próprios. É impossível hoje em dia que os militantes individuais possam "redescobrir" e refazer por si próprios todo o percurso teórico e político feito desde O Manifesto. A tarefa é imensa e uma vida inteira não seria suficiente. É por isso que, para dar um exemplo, é inútil que um membro do partido queira ler e reler todo o Capital antes de poder formular uma posição política sobre esta ou aquela questão ligada à crítica marxista da economia política. Tal método só pode conduzir a uma reapropriação incompleta com consequências políticas erróneas. Isto não significa que não convidemos e encorajemos fortemente todos os camaradas, e que não encorajemos também fortemente os membros do partido amanhã, a lerem e relerem os textos teóricos e programáticos clássicos do movimento operário, a começar pelo Capital. Mas a abordagem académica de dizer que não se pode tomar uma posição política, ou mesmo que não se pode empenhar como militante, até se ter lido todos os textos de K. Marx só pode levar a uma abordagem académica individualista e à impotência e renúncia militantes. É através da participação activa na acção revolucionária da organização comunista no seu conjunto que o militante pode "formar-se" teórica e politicamente e adquirir experiência militante.

Participação dos membros na atividade colectiva do partido

Estas considerações e regras gerais sobre a organização partidária-comunista e a relação membro-militante, em particular a dimensão colectiva e, em princípio, "impessoal" do compromisso comunista, têm múltiplas implicações políticas na questão do partido e do seu funcionamento, por um lado, e na relação dos membros com ambos, por outro. Baseia-se e desenvolve-se numa crítica à ideologia e à mistificação burguesa do indivíduo-rei, do indivíduo-unidade, e rejeita todas as formas de individualismo - e, já agora, de ideologia e mistificação democráticas.

Partir da unidade-indivíduo para daí tirar deduções sociais e elaborar projectos de sociedade, ou mesmo para negar a sociedade, é partir de um pressuposto irreal que, mesmo nas suas formulações mais modernas, não passa, no fundo, de uma reprodução modificada dos conceitos de revelação religiosa, de "indivíduo" e de "pessoa", criação, e de vida espiritual independente dos factos da vida 

 

 

9. A reapropriação só pode realmente ter lugar num quadro organizado e colectivo.

10 . K. Marx, A Ideologia Alemã, Op.cit.

 11. Teses sobre a táctica do Partido Comunista de Itália (Teses de Roma), 1922.

 

 

natural e orgânica. A cada indivíduo, a divindade criadora - ou uma força única que rege os destinos do universo - deu essa investidura elementar que faz dele uma molécula autónoma, bem definida, dotada de consciência, vontade e responsabilidade, no seio do agregado social, independentemente dos factores acidentais decorrentes das influências físicas do meio. Esta concepção religiosa e idealista só se modifica em aparência na doutrina do liberalismo democrático ou do individualismo libertário: a alma como centelha do Ser Supremo, a soberania subjectiva de cada eleitor, ou a autonomia ilimitada do cidadão da sociedade sem lei são todos sofismas que, aos olhos da crítica marxista, pecam pela mesma puerilidade, por mais resolutamente "materialistas" que tenham sido os primeiros liberais burgueses e os anarquistas." 12

Qualquer acção ou luta do proletariado é essencialmente colectiva. "Na presença da força do capital, a força humana individual desapareceu; numa fábrica, o trabalhador não é mais do que uma engrenagem na máquina. Para que o operário recuperasse a sua individualidade, era preciso que se unisse, que formasse associações para defender o seu salário e a sua vida"1[3].  E este colectivo, na acção, na luta, vai muito além da simples adição de indivíduos proletários, da simples adição do seu pensamento ou vontade individual, para formar uma unidade "superior", de classe. Cada greve ou luta operária significa que os proletários individuais devem ir além da acção colectiva, sem a qual a greve ou a luta se extinguem. "O proletário não é nada enquanto for um indivíduo isolado. Toda a sua força, toda a sua capacidade de progredir, todas as suas esperanças e aspirações, ele as extrai da organização, da actividade comum e metódica ao lado dos seus camaradas. Sente-se grande e forte quando faz parte de uma grande organização. Este organismo é tudo para ele; comparado com ele, o indivíduo isolado é apenas uma coisa muito pequena"14.

O mesmo se aplica ao partido e às organizações comunistas, que representam e vão muito para além das consciências e vontades políticas e militantes de cada um dos seus membros, quanto mais não seja devido à dimensão universal, histórica e internacional do programa comunista e das posições e orientações que dele decorrem. "A integração de todos os impulsos elementares numa acção unitária manifesta-se através de dois factores principais: um é a consciência crítica da qual o Partido retira o seu programa; o outro é a vontade expressa na organização disciplinada e centralizada do Partido, instrumento da sua acção. Seria errado acreditar que esta consciência e esta vontade podem ser obtidas e devem ser exigidas a meros indivíduos, pois só a integração das actividades de muitos indivíduos num organismo colectivo unitário pode tornar possível alcançá-las." 15  O militante individual é, portanto, apenas o porta-voz, ou a caneta quando escreve, de posições políticas produzidas, não pelo seu próprio pensamento, mas por toda a história do proletariado. Ele deve rejeitar qualquer concepção da sua individualidade militante como um todo individual. Em vez disso, ele deve ver-se como um membro de um todo colectivo.

O facto de estas posições serem mais ou menos claramente expressas e defendidas, de serem mais ou menos correctas, pelo militante mandatado - directamente ou não - para intervir pela organização, não muda nada. Quando intervém numa assembleia operária ou numa reunião política, o militante - de preferência a delegação de militantes - é apenas o instrumento de que a organização comunista dispõe para efectuar uma intervenção de partido. Isto não significa que ele seja apenas um robot que repete as fórmulas do partido. Mas é apenas na medida em que a organização política tenha sido capaz de definir, com base no seu quadro programático, as orientações correctas e na medida em que o militante individual tenha sido capaz de as tornar suas, inclusive participando e contribuindo para a sua definição e elaboração no quadro colectivo, que ele pode assumir melhor o papel de intervenção de partido.

O partido não espera que todos os seus membros tenham a mesma capacidade de empenhamento, "trabalho" ou tempo para dedicar à organização, nem que todos tenham as mesmas qualidades "políticas" e educativas. Um terá capacidades de escrita que o outro não terá. O outro será capaz de falar numa reunião ou num encontro público. Outros terão mais capacidades de organização, etc. Não há nem pode haver igualdade absoluta entre as capacidades e a participação efectiva dos membros do partido, tal como não pode haver igualdade de empenho numa greve entre os diferentes proletários que nela participam. A conceção da organização comunista no que respeita à participação individual dos seus membros nas tarefas baseia-se no

 

 

12. Partido Comunista de Itália, O Princípio Democrático, 1922.

13 . Discurso do Conselho Geral da AIT (1ª Internacional) aos membros e sociedades filiadas e a todos os trabalhadores, 1867, in Sur le Parti révolutionnaire, Éditions sociales, 2023.

14 . Kautsky citado por Lenine em Um passo em frente, dois passos atrás. O facto de Kautsky ter traído o internacionalismo proletário a partir de 1914, de ter sido o mais eminente protagonista do centrismo no seio da II Internacional, pelo menos a partir da década de 1910, antes da guerra, não retira em nada o valor político de classe de muitas das posições que tomou e dos textos que escreveu.

15 . Teses de Roma, op.cit.

 

princípio de "cada um de acordo com as suas capacidades". A capacidade da organização em partido - isto é, baseada em primeiro lugar e acima de tudo no programa comunista e nas posições políticas dele derivadas - de utilizar as capacidades individuais permite-lhe ir além da simples adição das capacidades individuais dos seus membros e transformá-las numa força histórica. Longe de partir da unidade do indivíduo, o partido ou organização comunista parte da unidade do partido, passando pelas suas diferentes partes, isto é, pelas secções locais como células de base, pelos órgãos centrais a todos os níveis e pelos membros individuais, para chegar não à unidade do indivíduo, mas à unidade do partido.

Contra a manutenção do espírito e dos métodos do círculo

A luta contra o individualismo é, por conseguinte, uma luta histórica e permanente dos comunistas, nomeadamente no seio das organizações políticas proletárias. Ao longo da história do movimento operário, o individualismo exprimiu-se de uma forma ou de outra, nomeadamente durante o período das seitas e dos círculos. "O desenvolvimento das seitas socialistas e o do verdadeiro movimento operário estão sempre em relação inversa. Enquanto as seitas se justificarem (historicamente), a classe operária ainda não está suficientemente madura para um movimento histórico autónomo. Assim que atinge esta maturidade, todas as seitas são reaccionárias na sua essência." 16   A luta de Lenine no II Congresso do POSDR, a que é dedicado o seu panfleto Um passo em frente, dois passos atrás, visava a constituição de um verdadeiro partido que, até então, era constituído por círculos, ou seja, agrupamentos mais ou menos formais baseados essencialmente, ou principalmente, em laços pessoais, ou mesmo de amizade. "A polémica resume-se, portanto, a um dilema: espírito de círculo ou espírito de partido?”17

É possível e útil, parece-nos, estabelecer um paralelo entre a realidade do campo proletário actual e a realidade das forças revolucionárias que tentavam então criar "verdadeiras organizações oficiais do Partido". Materialmente, numericamente, o conjunto do campo proletário actual, a começar pelas suas principais organizações, agrupa uma ínfima minoria de membros, os mais antigos dos quais se conhecem pessoalmente há décadas e que permaneceram, e continuam a permanecer, muito isolados da sua classe. Permanece em grande medida marcada pelas condições do seu aparecimento no pós-1968 e nos anos 70, nomeadamente pelos vestígios do espírito de círculo que ainda hoje persiste. Esta geração - ou o que resta dela actualmente - tem a tarefa, antes de desaparecer, de passar o testemunho à nova geração que está a surgir e que tende a reagrupar-se. Esta nova geração sofre ainda mais com as práticas individualistas inerentes à emergência dos novos meios de comunicação, da Internet e das redes sociais, que a ideologia burguesa retoma e propaga para reforçar a fragmentação social e o individualismo em geral. Como não reconhecer a realidade dos agrupamentos, debates e círculos de discussão característicos das redes sociais actuais nas seguintes práticas criticadas por Lenine em 1903?

"... o Partido era constituído por círculos isolados, sem qualquer ligação orgânica entre si. A passagem de um círculo para outro dependia unicamente da "boa vontade" de um indivíduo em particular, que não tinha atrás de si qualquer expressão material da vontade do conjunto. As questões polémicas, no interior dos círculos [podemos especificar, hoje em dia, nas redes sociais], não eram decididas com base em estatutos, "mas pela luta e pela ameaça de saída". 18

Quem frequenta ou frequentou as redes sociais não pode deixar de reconhecer a predominância esmagadora do método e do espírito do círculo nas redes. Não há verdadeiro debate. Nenhuma verdadeira polémica. Não há confronto aberto e argumentado de posições divergentes. Qualquer pessoa que exprima uma posição divergente é eliminada da lista de subscritores sem mais apelo. As fórmulas são igualmente radicais, até grandiloquentes, mas desprovidas de qualquer sentido prático, isto é, político e de classe. Pior ainda, o formalismo da organização é destruído, se o tentarmos impor. Não há estatuto. Não há programa. Nenhum relatório ou balanço dos debates. Não há conclusão dos debates sob a forma de uma posição colectiva através de uma resolução organizacional ou outra. Não há uma centralização política efectiva das discussões e dos debates. Os indivíduos são livres de pensar e dizer o que lhes vier à cabeça. São responsáveis apenas perante si próprios ou perante o seu smartphone, ou, na melhor das hipóteses, perante o seu círculo, perdão, a sua rede. No fim de contas, os critérios de selecção não são políticos, mas sim pessoais. A oposição entre espírito de círculo e espírito de partido pode resumir-se à lealdade para com os amigos e os companheiros ou à lealdade para com as posições e os princípios comunistas e, por conseguinte, para com as convicções políticas de cada um.

 

 

16. K. Marx, Carta a F. Bolte, op.cit.

17 . Lenine, Um passo em frente, dois passos atrás, Início do Congresso, o incidente do comité organizador.

18 . idem, O Novo Iskra, o oportunismo em matéria de organização.

19 . É claro que a actividade comunista e as divergências políticas e organizativas, mesmo as separações, não impedem que se mantenham relações de amizade com antigos camaradas. As relações políticas e pessoais devem ser distinguidas o mais claramente possível, mesmo que a realidade das lutas políticas possa também afectar as relações pessoais. Mas isso é um assunto que diz respeito aos activistas enquanto indivíduos e não à organização...

20 . Sabemos, por exemplo, que a CCI já não realiza reuniões locais, mesmo quando tem vários membros na mesma cidade. Realiza reuniões "transversais", "reunindo" membros de diferentes locais, que ficam assim isolados dos seus camaradas com quem deveriam intervir nas lutas laborais ou outras, mas permanecem confortavelmente em casa. Os critérios de afectação dos membros a determinadas redes de vídeo só podem ser arbitrários e personalizados. Um remake moderno da bolchevização zinovievista dos partidos comunistas no início dos anos 20, que substituiu as reuniões das secções territoriais ou locais pela criação de células de empresa, e que a esquerda em Itália denunciou energicamente.

21 . As condições dos anos 60 e 70, a ruptura orgânica com as organizações do passado devido à contra-revolução, a influência do conselhismo favorecido pela oposição ao estalinismo e o ambiente estudantil da época marcaram as organizações da esquerda comunista então renascida.

 22. Não estamos isentos desta dificuldade. Esta pressão "social" e sobretudo ideológica exerce-se naturalmente também sobre nós.

23 . ver Revolução ou Guerra#3, A democracia burguesa, a Internet... e a pretensa igualdade dos indivíduos, http://igcl.org/Democratie-bourgeoise-Internet-et

 

 

Como corolário, a prática das videoconferências tende infelizmente a substituir as reuniões presenciais. Pelo contrário, não temos nada contra a organização de videoconferências entre camaradas isolados, nomeadamente a nível internacional, que não podem reunir-se no mesmo local. Em contrapartida, o facto de os militantes tenderem a deixar de fazer o esforço, ou mesmo a considerá-lo supérfluo, de se deslocarem e participarem em reuniões presenciais, ou "cara a cara" como lhes chamam os gestores das empresas, é um retrocesso em relação a uma conquista e a um princípio organizativo do movimento operário.  Mas de que serve sair de casa para uma reunião da secção local, levar papel e caneta, ou mesmo um computador para tomar notas, e fazer o esforço de se deslocar ao local onde se realiza? Quando se pode realizar uma reunião em casa, através de vídeo, utilizando o smartphone. Quando se pode ficar quente - ou fresco, consoante a estação do ano - em casa depois de um dia de trabalho. Ou não ter de "sacrificar" parte de um fim de semana com a família ou amigos para uma reunião. Sobretudo se a videoconferência permitir cuidar da família ao mesmo tempo, cuidar das crianças ou cuidar da máquina de lavar.

Desta forma, a célula básica de qualquer organização comunista, que dá ritmo à vida da militância comunista e à vida política do corpo coletivo, ou seja, a secção local semanal, desaparece. Dissolve-se. O momento privilegiado que é a reunião local, indispensável à vida política e à circulação do sangue no organismo, desaparece. Desaparece o momento especial de cada militante, o encontro com os seus camaradas, que o torna parte integrante da organização. Acabou o momento em que, ao contrário de outros momentos da vida pessoal - trabalho, família, etc. -, o militante pode dedicar-se inteiramente, sem reservas, sem entraves e sem dispersão, durante apenas algumas horas, à atividade colectiva e dar tudo de si à organização e à luta comum. É o momento privilegiado em que o militante comunista pode realizar na prática o que significa colocar o compromisso comunista no centro da sua vida - não estamos a dizer toda a sua vida e todo o seu tempo - e assim, para além de dar vida à sua organização, reforçar, consolidar e dar vida às suas convicções políticas e militantes.

O perigo da penetração da ideologia individualista e democrática da Internet não ameaça apenas as forças comunistas. As recentes greves nos Estados Unidos, na UPS, na indústria automóvel, e a greve do sector público no Quebeque, terminaram com votações, a favor ou contra os acordos assinados pelos sindicatos, através da Internet. Uma "assembleia" por videoconferência reuniu 4.000 trabalhadores da educação no Quebeque! Cada um por si! Para além do controlo total exercido pelos sindicatos que organizam a videoconferência, que lhes permite fazer tudo o que quiserem caso a votação não lhes agrade, ficar em casa não só impossibilita um verdadeiro "debate" contraditório sobre a própria luta, neste caso sobre o valor do acordo salarial e sobre a orientação e os métodos da própria greve, como também torna ainda mais difícil para os trabalhadores "sentirem" a força e a vitalidade do seu colectivo, perceberem que, unidos na luta, são muito mais do que uma soma de votos a favor ou contra.

O informalismo e o individualismo inerentes às redes sociais e aos smartphones reforçam o perigo dos círculos e o espírito dos círculos. As concessões organizativas e militantes que as principais organizações comunistas estão a fazer por "hábito"21, por facilidade e imediatismo 22, ao informalismo e ao individualismo inerentes aos meios de comunicação da Internet 23 representam um obstáculo ao indispensável esforço de reapropriação teórica, política, organizativa e militante que as novas gerações devem fazer. O mesmo acontece, pelo menos em grande medida, com a geração anterior, aquela que tem de passar o testemunho e que, na sua maioria, os negligenciou ou deixou de lado. Em particular, os grupos da esquerda comunista devem reapropriar-se e pôr em prática as lições aprendidas pelo movimento operário para lutar contra a manutenção do espírito de círculo nas fileiras do campo proletário e de suas organizações. Em Um passo em frente, dois passos atrás, Lenine e a Facção Bolchevique contrastam o método do partido com o do espírito de círculo.

A ligação, dentro dos círculos ou entre eles, não devia e não podia tomar uma forma precisa, porque se baseava na camaradagem ou na "confiança" descontrolada e desmotivada. A ligação partidária não pode nem deve basear-se em nenhum destes elementos, mas sim em estatutos formais, redigidos "burocraticamente" (do ponto de vista do intelectual indisciplinado), cuja estrita observância é a única salvaguarda contra o capricho dos círculos, contra as suas querelas chamadas "processo" livre da luta ideológica. (...) Quando eu era apenas membro de um círculo (...) tinha o direito, para justificar, por exemplo, a minha recusa de trabalhar com X, de invocar apenas a minha desconfiança incontrolada e desmotivada. Agora que sou membro do partido, já não tenho o direito de invocar apenas uma vaga desconfiança, porque isso seria abrir a porta a todos os caprichos e extravagâncias dos velhos círculos; sou obrigado a motivar a minha 'confiança' ou a minha 'desconfiança' por um argumento formal, isto é, a referir-me a tal ou tal disposição formalmente estabelecida do nosso programa, da nossa táctica, dos nossos estatutos".

Para nós, este método de partido, que é o oposto do utilizado nos "velhos" círculos e nos "círculos 2.0" actuais, é uma questão de princípio. O membro da organização, tal como qualquer outra parte da organização, incluindo os seus órgãos centrais, não é livre de "pensar o que quiser". O estalinismo, em grande parte tomado por todas as formas de esquerdismo, distorceu completamente a relação entre o militante e o partido. Não se pode proibir os indivíduos, nem que seja por serem vaidosos, de terem pensamentos e posições políticas e de acreditarem que são o produto do seu cérebro. Por outro lado, o militante comunista é responsável e tem de prestar contas à sua organização, tal como esta é responsável perante o proletariado internacional. Não se trata de impor ao militante uma disciplina formal, um decreto ou um estatuto de organização para que pense "como deve". Muito menos se trata de impor a um membro que discorda da posição do partido a obrigação de a defender "por disciplina", como a bolchevização zinovievista estabeleceu nos partidos da Internacional no início dos anos 20 e como o estalinismo desenvolveu mais tarde até ao ponto da caricatura - dramática e sangrenta -. Para além do facto de que a defesa de uma posição será menos eficaz do ponto de vista da organização política no seu todo, ou mesmo totalmente contraproducente, se o militante mandatado para intervir não a partilhar, defender uma posição política da qual discorda por uma questão de disciplina só pode levar ao enfraquecimento e à destruição final da sua convicção política e militante. 25

O militante individual, portanto membro da organização, tal como qualquer outra parte dela, incluindo os órgãos centrais, como já dissemos, deve sempre referir-se ao programa, à plataforma política da organização a que aderiu, às suas posições e orientações adoptadas nos seus congressos ou outras assembleias gerais quando exprime posições particulares ou divergentes. Pode acontecer que um activista, ou um grupo de activistas, acabe por adoptar uma determinada posição que pode, em maior ou menor grau, pôr em causa um determinado ponto ou passagem da plataforma política do grupo, ou uma orientação ou posição adoptada pela organização. Se a organização não pode "proibir" a existência desta posição em nome de um respeito - que seria absoluto e dogmático - pela plataforma, deve sublinhar que é contrária a ela e apelar ao membro, ou grupo de militantes, que a defende para que remeta para o documento histórico que é a plataforma ou qualquer outro texto programático - mesmo que isso signifique questioná-la, ou mesmo sair da organização se não conseguir ser convencido a mudar a plataforma.

Hoje, numa altura em que uma nova geração de militantes tende a emergir e a reagrupar-se em torno da esquerda comunista, e mesmo a aderir às organizações que a compõem, a luta contra a manutenção do espírito e do método do círculo e contra a resistência à passagem ao espírito e ao método do partido torna-se prioritária. Ou os grupos comunistas actuais conseguem ultrapassar as suas fraquezas históricas neste domínio e resistir às sirenes do imediatismo e, em particular, às sirenes do espírito de círculo 2.0, ou se deixam arrastar pela ladeira fatal e dissolvente do individualismo e do informalismo. Os tambores da guerra generalizada estão a bater mais alto e mais depressa. O tempo começa a pressionar.

 

24. Lenine, op.cit.

25 . Desde que estejam dispostos a fazê-lo, ou pelo menos concordem em fazê-lo, os militantes podem "expor" publicamente uma posição da qual discordam, ou mesmo ler um texto que a defenda, se não houver ninguém de acordo disponível para a defender. O objectivo é estabelecer os termos, ou mesmo as condições, para um debate e esclarecimento político. Mas o partido ou organização estava a cometer um erro ao obrigar um membro a defender uma posição que não partilhava.

 

 

A relação entre a vida militante e a vida pessoal do membro da organização comunista

Mas voltemos à nossa questão inicial. As dificuldades que o militante comunista pode encontrar na sua vida quotidiana para gerir ou dirigir o seu empenhamento político e os diferentes aspectos da sua vida pessoal devem ser abordadas tanto :

- com base nas regras ou princípios gerais que orientam a relação do militante com a organização;

- e no contexto da luta permanente contra o individualismo e o espírito de círculo, nomeadamente na era da Internet e das redes sociais e do domínio cada vez mais totalitário do capitalismo de Estado em todos os domínios da vida social.

Como já dissemos, a organização política não está ao serviço do membro. A sua função e objectivo não é resolver os problemas pessoais e quotidianos dos seus membros. No entanto, é obrigada a ter em conta a realidade actual das suas forças, aquelas em que pode confiar para realizar uma determinada tarefa num determinado momento e numa determinada ocasião. Por conseguinte, não pode negar, nem negligenciar, que os membros podem atravessar períodos e momentos em que o seu empenhamento e mobilização militante têm de ser combinados com, ou mesmo limitados ou por vezes "suspensos" por, várias dificuldades na vida pessoal do membro.

Assim, acontece frequentemente que as duas dimensões são vividas e sentidas como contraditórias pelo membro individual. Se nos mantivermos ao nível da unidade-indivíduo, a tentação é grande de eliminar um dos dois termos daquilo que é vivido como uma contradição pessoal. Sacrificar, ou pelo menos "negligenciar", a dimensão da vida pessoal para levar a cabo a tarefa militante e assim "resolver" a contradição. Ou sacrificar, ou pelo menos "negligenciar", a tarefa militante para preservar a vida pessoal, familiar, afectiva ou outra. O que ambas as opções têm em comum é o facto de parecerem resolver a dificuldade eliminando um dos dois termos da contradição em vez de a ultrapassar. A consequência, se não a causa, é uma incompreensão da natureza do compromisso individual comunista, expressa quer numa espécie de militância sacrificial ou integral que conduz a uma visão e a uma prática militantes voluntaristas e activistas, quer numa visão e numa prática militantes diletantes que conduzem a uma visão e a uma prática militantes fatalistas.

"A concepção marxista do partido e da sua acção está, portanto, tão afastada de um fatalismo passivo, que se contenta em esperar o advento de fenómenos sobre os quais se sente incapaz de influir directamente, como de qualquer concepção voluntarista no sentido individual, para a qual são essenciais as qualidades de formação teórica, de força de vontade, de espírito de sacrifício, em suma, um tipo especial de figura moral, Isto reduziria o partido a uma elite superior ao resto dos elementos sociais que compõem a classe operária, ao passo que o erro do fatalismo passivo levaria, se não a negar ao partido qualquer função ou utilidade, pelo menos a alinhá-lo muito simplesmente com a classe operária entendida no sentido económico e estatístico. Insistimos, portanto, nas conclusões já esboçadas na tese anterior, condenando em igual medida a concepção operária do partido e a do partido concebido como uma "elite" intelectual e moral: igualmente distantes do marxismo, estas duas concepções estão destinadas a encontrar-se no caminho oportunista." 26

O diletantismo, a militância do dândi, faz do compromisso militante uma actividade, um passatempo, uma ocupação entre outras para o indivíduo. O seu empenhamento comunista não estava "no centro da sua vida". A sua convicção política e militante é, no fundo, muito mais uma postura revolucionária do que um verdadeiro compromisso como militante comunista na luta colectiva do partido. 27   Assim, a realização desta ou daquela tarefa tem pouca importância: para quê distribuir um folheto que ninguém lerá, para quê organizar uma reunião pública a que poucos assistirão, para quê? são os seus argumentos quando não está disposto a participar na intervenção do partido. Quantas vezes ouvimos os fatalistas dizerem para que serve esta ou aquela intervenção, não somos nada, ou somos tão poucos...

O activismo a que chamamos integral é sacrificial. A prioridade do militante é sempre e permanentemente a actividade revolucionária, mesmo que a sua vida pessoal sofra com isso. O seu empenhamento comunista não é "o centro da sua vida", mas "toda a sua vida". Ele tem o mérito, apenas superficialmente, de mostrar um empenhamento muito mais determinado. É semelhante a muitas formas de militância de esquerda, maoísta ou trotskista em particular. Muitas vezes, ele não consegue aceitar que os seus amigos próximos, companheiros ou o parceiro, por exemplo, não sejam também


26. Thèses de Lyon, op.cit.

27 . Muitas vezes, embora nem sempre, o diletantismo militante é levado por activistas que descreveríamos como aventureiros e que se vêem, ou se veriam, como tendo um destino como figura histórica - particularmente quando a história parece "flutuante" e o comunismo se torna "moda" em certos círculos.

 

comunistas militantes. O casal torna-se então "militante". A educação dos filhos torna-se também uma tarefa militante. O círculo de amigos é reduzido a militantes. Em suma, têm tendência a transformar a sua vida quotidiana num catecismo comunista e, muitas vezes, querem que a organização seja uma ilha de comunismo, o que só pode conduzir, a longo prazo, a uma visão e a uma prática sectárias.  Mas, tal como o diletante, a sua visão baseia-se no indivíduo e não no interesse colectivo da organização proletária. "Ele prova imediatamente o seu 'coração' religioso indo para a batalha como padre, em nome de outras pessoas, os 'pobres' neste caso, tornando claro que ele não precisa do comunismo para si próprio, mas que vai para a batalha por puro sacrifício magnânimo, devotado e gotejante em benefício dos 'pobres, os infelizes, os réprobos', que precisam dele." 28 O resultado é uma visão e uma prática militantes que, para além de conduzirem ao sectarismo, caem rapidamente no voluntarismo ou no activismo.

Ambos os tipos de militância, diletante e integral - ou "total" -, reflectem uma incompreensão individualista do que é e deve ser o empenho individual de um militante comunista. Para além das consequências políticas em termos da prática errada do empenhamento militante e da concepção de partido que lhe está associada, expressam o peso da ideologia individualista sobre as forças revolucionárias. Só partindo da unidade-partido, do colectivo organizado e centralizado, podemos ultrapassar a contradição que o militante individual pode sentir. Avaliando imediatamente com o membro, e portanto também ganhando a sua convicção política, o que é prioritário e o que não é. O partido ou grupo político comunista não pode intervir em todo o lado e a todo o momento; tem de escolher prioridades entre os objectivos políticos. Entre estes, e dependendo do momento, preservar e proteger o membro, ou membros, de uma situação pessoal que se pode tornar impossível - uma crise na relação, por exemplo - pode tornar-se uma questão para a organização. O militante comunista que a classe confiou ao partido é precioso para ambos. Além disso, o compromisso individual comunista é um compromisso para toda a vida e não um compromisso para um momento particular e limitado. A organização comunista deve também preocupar-se em não "queimar" os militantes ou esgotá-los - a situação é diferente para a organização e para o próprio membro durante as mobilizações de massas, e ainda mais durante os períodos revolucionários.

"Se a organização prestar a maior atenção possível ao bom estado de cada um dos seus membros, isso é sobretudo do interesse da organização, para que cada uma das suas células possa desempenhar melhor o seu papel na organização. Isto não significa que ignoremos a individualidade do militante e os seus problemas, mas que o ponto de partida e o ponto de chegada é a organização, para que ele possa cumprir a sua tarefa na luta de classes, que é a razão pela qual a classe o criou. “29

Assim, a organização pode ser levada a dispensar um camarada de uma tarefa que lhe compete para que ele possa dar prioridade, num determinado momento, à resolução ou prevenção de dificuldades pessoais - por exemplo, para assegurar a harmonia do seu casal, para retomar o caso acima referido. Neste caso, não se trata de a organização interferir na situação pessoal do membro, e muito menos de a resolver, mas sim de assegurar o melhor funcionamento possível da organização e de proteger o militante cuja situação se torna difícil, sob pena de enfraquecer a sua capacidade de militância e as suas convicções políticas.

A organização deve também convencer os seus membros de que é aconselhável avisar as pessoas que lhes são muito próximas - parceiros, filhos em idade de compreender, por vezes pais e amigos próximos - do seu empenhamento militante. Não se trata de os envolver na vida interna da organização, ou mesmo de os informar, sob pena de misturar relações afectivas e familiares com relações políticas. A distinção entre militantes e não militantes é importante e deve ser respeitada e exibida. Mas é mais uma questão de preparar e proteger a família e os amigos para os imprevistos da vida de um militante revolucionário. Por exemplo, em caso de repressão, a família e os entes queridos são directamente afectados, com diferentes graus de intensidade e consequências práticas. Mas, de uma forma mais geral, é importante que aqueles com quem o membro do partido partilha a sua vida quotidiana sejam informados do compromisso militante, a fim de gerir da melhor forma possível as implicações práticas na vida quotidiana da família. [30]

Estes poucos exemplos e situações cobrem apenas uma pequena parte das várias dificuldades e situações com que os activistas se podem ver confrontados e que a organização deve ter em conta, em primeiro lugar, para realizar as suas tarefas imediatas e a longo prazo; em segundo lugar, para defender e proteger os interesses do militante que não é um super-homem. No dia a dia, é um ser social fragmentado como qualquer outro, que enfrenta as mesmas dificuldades pessoais que todos os outros. Se a organização não pode ajudá-los a resolver os seus problemas, pode ajudá-los a enfrentar e a ultrapassar algumas das dificuldades da vida quotidiana - emocionais, familiares, depressões, cansaço, etc.

Concluímos assim as nossas reflexões. Estamos conscientes de que estamos longe de ter abordado todas as questões que os militantes mais jovens e menos experientes possam ter sobre o compromisso comunista. Tanto mais que as situações pessoais e os casos concretos são inumeráveis e, muitas vezes, únicos e particulares em si mesmos. Da mesma forma que o partido ou a organização comunista não pode resolver as dificuldades pessoais dos seus membros, estas considerações gerais e em grande parte incompletas não podem servir de receita para a organização e o membro enfrentarem as dificuldades quotidianas de natureza pessoal com que se podem deparar. Por outro lado, acreditamos que estamos a contribuir para fornecer uma abordagem e um método para as enfrentar e ultrapassar.

Acima de tudo, trata-se de combater a ideologia individualista e política e o espírito dos círculos em geral, bem como o do "2.0" que prevalece actualmente. Tanto a abordagem como o objectivo só podem ser o todo coletivo, ou seja, a unidade-partido. E não a unidade-indivíduo. A questão é simples: a homogeneidade política e a unidade do partido de amanhã, o mesmo partido que será chamado a liderar a luta revolucionária do proletariado face à marcha para a guerra generalizada para a qual o capital nos arrastou.

 

RL, Fevereiro 2024


Fonte:  www.igcl.org 

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice  

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