sábado, 11 de maio de 2024

DÉVORE (Loana Hoarau)


Maio 11, 2024  Ysengrimus 

YSENGRIMUS — À medida que o corpo ficcional de Loana Hoarau se torna cada vez mais denso e intenso, começamos a ter uma ideia mais clara das suas fixações, das suas obsessões, das suas assombrações, dos seus caprichos. De uma coisa para a outra, na série de obras de ficção que Loana Hoarau produziu ao longo das últimas duas décadas, somos forçados a notar um ponto fixo imparável que se ergue do magma sangrento e delirante da sua matéria. Surge um impulso, firme, saliente e palpável. Apodera-se dele com força. Esta linha diretriz obsessiva, recorrente, cíclica e polimorfa é o problema da brutalidade homossexual masculina. No mundo sinistro e esquecido por Deus de Loana Hoarau, vamos encontrar muitos homens a bater noutros homens. Na maioria destes casos, a voz emprestada do autor é, ela própria, a voz de um homem. E esse homem, muitas vezes mobilizado e determinado por um micro-coletivo de desajustados, vai executar, longamente, sem qualquer hesitação particular, uma série de actividades torturantes sobre outro homem. No fundo, Loana Hoarau cultiva, de forma tão assombrosa quanto iterativa, a evocação do auto-sadismo masculino. De todos os ângulos possíveis, ela descreve o espancamento físico e psicológico do homem pelo homem. Consequentemente, presta muita atenção à questão da emergência dialética da violência masculina interior. Aqui estudamos, de forma muito explícita e difícil, como o homem se vira contra a sua própria existência e chega à auto-mutilação, enquanto continua a amar-se apaixonadamente. Este facto é jogado e formulado com grande precisão e crueldade, mas também com a exaltação e expurgação de uma dor e vulnerabilidade que não escapará ao olhar incisivo da autora e dos seus leitores.

O pequeno romance Dévore não é excepção, no que diz respeito à configuração desta linha temática. Mais uma vez, e sem surpresa, encontramo-nos numa situação em que o homem tortura o homem... no sentido muito específico e estritamente masculino do termo. Este facto não diminui em nada a singularidade deste livro, pois Loana Hoarau produz romances radicalmente originais a cada edição. A especificidade do texto reside na dimensão monológica e oralizante da narrativa. E mesmo no coração desta mimese da fala, estamos ainda perante uma escrita solidamente dominada. Este exercício de texto narrado dar-nos-á, portanto, a voz de um homem que fala sozinho. Dirige um longo comentário, sob a forma de uma explicação, à sua vítima, que está presente mas muda, ou mais exactamente amuada. De facto, trata-se de uma manifestação de (mimese de) discurso cursivo, para usar a noção de linguística enunciativa. O enunciador, neste caso o torturador, dirige-se à sua vítima descrevendo o que lhe fez, o que lhe vai fazer a curto prazo, ou o que está em vias de lhe fazer. O discurso segue a acção à medida que esta se desenrola. Acompanha-a, apimenta-a, pontua-a e, ao fazê-lo, chama a nossa atenção para ela. À medida que a acção toma forma, o texto fala sobre ela. A vítima, por seu lado, produz apenas monossílabos, e de forma muito esporádica. Os sons orais emitidos pela vítima, que se compreende estar amarrada e amordaçada, são aleatórios, relativamente disformes, representando sons respirados ou balbuciados. A tirania das tiranias, e toda a tortura é tirania. Desta forma, a possibilidade de um diálogo dinâmico entre estes dois homens é reduzida à sua expressão mais simples. É amordaçado, no sentido mais forte.

Poderíamos estar perante um simples sadismo, uma crueldade unilateral, um espancamento sangrento, e nada mais. Mas, na realidade, a dinâmica da escrita faz-nos sentir, pouco a pouco, que o torturador é também uma vítima, uma vítima de si próprio, um sobrevivente da sua relação com a mãe (e com o pai ausente, de quem não se fala no romance). Orgulhoso de si próprio, matamouro, rufia, fanfarrão, egocêntrico, este protagonista torturador está também, sub-repticiamente, rodeado de uma outra instância, que ganha importância e é tematizada de forma muito firme nesta obra. A darkweb (rede negra). De facto, acabamos por descobrir que o torturador da nossa situação actual, que se chama Albert (e que não se gaba muito disso aos seus ciber-parceiros), é na realidade uma espécie de marioneta da Internet, uma sinistra marioneta de cliques. Percebemos finalmente que estamos perante uma dessas personagens demasiado contemporâneas, um epsilon do mainstream que come a sua própria merda em benefício da sua webcam e que, aliás, produz e reproduz todo o tipo de disparates em frente ao ecrã do seu computador para aumentar o seu número de visualizações. É evidente que, a certa altura, entramos numa dinâmica muito dialéctica de inversão da vítima. Este movimento comportamental é bastante complexo, problemático e sobrecarregado. Quem é a vítima? Quem está a manipular? Quem torturou quem, no fim de contas, em todos os casos? O Albert ou os seus ciberparceiros obscuros? Em todo o caso, uma coisa é certa: neste romance em particular, as mulheres estão ausentes. Vítima, torturador, carrasco, executor, indivíduos, grupos, quem quer que seja... só há homens. A única mulher que aparece é a mãe do protagonista. E veremos que, do princípio ao fim, ela está condenada a um destino despretensioso... tão despretensioso e, no entanto, tão insuportavelmente central.

Dividida em duas partes de comprimento desigual, a obra apresenta claramente duas vozes ou, mais precisamente, os dois tons da mesma voz. A primeira parte (na fala cursiva) é muito oral, muito verbal. Assume a forma deste longo monólogo, desta cruel e arrogante apresentação explicativa, extremamente sentida, subtilmente precisa e de uma precisão linguística perfeitamente satisfatória. A segunda parte (em discurso desprendido) é mais escrita. Evoluímos mais numa situação em que o torturador, se ainda é torturador, escreve uma espécie de relatório ou diário, onde relata os perigos da sua ciberviagem. Além disso, ele percorre documentos, configura raciocínios, explicando-nos, um pouco, os detalhes das coisas, tão obscuras quanto emocionantes, que lhe aconteceram, em conexão directa e secreta, com suas actividades na antiga darkweb. Surgem então fórmulas singulares, que também têm uma natureza muito escrita e piedosa. Por exemplo, o protagonista dá-nos para ler questionários, sobre os procedimentos sádicos reivindicados, por uma taxa, por algo como cripto-clientes da dark web. Isto dá-nos pequenos pacotes de perguntas "sim" e "não", que abordam os tipos de tortura previstos, as suas variações, os seus constrangimentos, as suas restricções. A coisa toda é articulada em interacção com um pequeno grupo misterioso de cripto-torturadores. Há duas fases muito distintas neste romance, portanto. Uma primeira faceta com um tom oral. Uma segunda faceta, escrita em grande estilo. Segure firme, de qualquer maneira.... mas sem sair do resplandecente parquet da República das Letras. Porque é claro que o autor não lida apenas com temas duros e ostensivos. Trabalha também a sua dinâmica de escrita. Este último está a firmar-se, a vergar-se, a matizar-se, a problematizar-se. Loana Hoarau leva-nos para dentro de uma experiência textual. Esta última é largamente autónoma, em relação aos temas tratados e até, ousamos dizê-lo, às teses defendidas. A aventura ficcional, para a qual este autor nos convida, não é exclusivamente uma espécie de transposição do que poderia ser um roteiro cinematográfico sólido, áspero e sangrento quanto possível. Somos também convidados para um exercício literário, cujo desdobramento ganha em riqueza e complexidade à medida que a obra avança. Na obra de Loana Hoarau, um encontro crucial entre a imagem visualizada e o texto ganha cada vez mais forma. Ao mesmo tempo, nos últimos romances, e especialmente em Dévore, a escrita é mais curta, mais apertada, mais seca, mais nervosa, mais concisa. A linha é encurtada. Os romances estão cada vez mais curtos. Aos poucos, tornam-se quase novelas, esse género à parte e muito mais específico e subtil do que se possa pensar. É que Loana Hoarau está a mover-se cada vez mais para a essência das suas assombrações, para o que está para vir, o que vai acabar sendo gritado. E o essencial aqui é a directriz da dor. Especialmente, a dor masculina, como um segmento inexorável da dor humana... Como em vocês, homens...

O que Loana Hoarau produz assemelha-se cada vez mais ao que se poderia chamar uma obra com escotoma (ponto cego), ou seja, uma série calibrada de variações ficcionais que reproduzem, num alqueire, em abundância, um corpo de fixações. Variamos sobre um tema porque este tema assombra o tempo e, como resultado, também assombra o autor. Também ela, de certa forma, se revela moldada pelos seus leitores, pelos seus observadores, pelo seu tempo. Dor, dor, dor. O romance Dévore é difícil de ler, desagradável, picante, obsessivo, estranho, assombroso. De facto, amplifica a característica mais saliente da escrita gore. Trata-se de tentar, como método, fazer girar a lâmina na ferida. Isto é feito de forma a retirar prazer sensorial e júbilo novelístico da expressão e exaltação da dor e, sobretudo, da virulência contemporânea do ser ciber-social. Quem é homem e lê este livro sabendo que é escrito por uma mulher, tem uma terrível e verdadeira noção da vasta mudança epocal em curso. A partir de agora, a grande guerra dos sexos é cada vez mais uma guerra civil mesquinha, uma gangrena do ventre, uma implosão. O sadismo masculino encontra, com uma profundidade amplificada, o seu próprio masoquismo, e, como resultado, fecha-se o círculo. De tal forma que toda a masculinidade está agora ocupada a devorar-se (reparem nesta palavra) a si própria..

Loana Hoarau (2023), Dévore, ÉLP Éditeur, Montreal, formato ePub, Mobi, papel.

 


Fonte: DÉVORE (Loana Hoarau) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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