5 de Agosto de
2022 Ysengrimus
YSENGRIMUS — A
quantos ateus foi feita a seguinte pergunta por teólogos: Sim, mas você é capaz
de provar – provar incontestavelmente – que Deus não existe? Ora, vamos
admitir, há uma certa estranheza na atitude que consiste em exigir a
demonstração de uma inexistência. Para dizer a verdade, como deve ser dito:
simplesmente não queremos isso, de facto, nos recessos heurísticos de uma
filosofia comum consistente. O que estou a propor aqui, com todo o respeito, é
uma reordenação do ónus da prova. O facto é que, seja qual for o quadro de
representações físico-culturais comuns que se adopte, é o argumentador que
aspira a introduzir uma categoria não sustentada no sistema que herda o dever
de demonstrar a sua existência. Aqueles que acreditam plenamente num deus
intangível devem provar o seu deus intangível, ponto final. Não cabe a mim, um
ateu vazio, desprovar ou refutar a coisa. Uma demonstração de inexistência é
sempre uma refutação que não diz o seu nome. E uma refutação é inevitavelmente
dada por postulados amplamente injustificados. De facto, há, em qualquer
demonstração de inexistência, um ponto de apoio insidiosamente depositado e
escorado num argumento de autoridade preexistente. No género: o deus é
tradicionalmente recebido por um grande número de corpos institucionalizados
(religiões oficiais, vários eruditos, escolásticos, magistrados, curandeiros de
todos os barris, pai-mamãe, filósofos seguidores, crentes desnorteados e todos
os enxames usuais). Assim, caberia ao opositor demonstrar o contrário
(nomeadamente a sua inexistência) em insidiosa referência a este argumento de
autoridade preexistente e pesando todo o seu peso cultural conformista. Só que
uma aporia deferente e dócil continua a ser uma aporia... Então, não. Apenas
não.
Deixe que me explique sobre um caso menos apoiado etno-culturalmente. Vamos
aplicar a ideia, sem corar, aos discos voadores. O argumento da autoridade
obriga, começamos por argumentar que Jimmy Carter viu
um disco voador quando era governador da Geórgia (1969). O ex-presidente
americano de prestígio, Jimmy Carter certamente não precisa de ovnis para se
destacar. Isso garante amplamente a sinceridade autoritária das suas
observações e, consequentemente, no entusiasmo, a autenticidade das suas
memórias. Com base nesta fonte (ou qualquer outra de peso semelhante),
argumenta-se então que recai agora nas mãos do opositor o ónus de demonstrar a
inexistência de discos voadores. O argumentador não convencido pelo Sr. Carter
e sua laia deve, portanto, de repente assumir todo o corpus, as fotos, os
vídeos, os depoimentos e passá-los pelo decapante, demonstrando a sua
invalidade, caso a caso. Experimentaremos a dimensão ubíqua que tal estratégia
argumentativa alcançaria rapidamente se encontrasse personagens de ambos os
campos para endossá-la. O facto é que, tanto cultural quanto empiricamente, o
debate sobre discos voadores nunca começa assim. Com ou sem o apoio implícito
de Jimmy Carter e dos demais da sua pirueta, é o ufólogo que deve trabalhar
para demonstrar a existência da categoria que busca introduzir no nosso sistema
de representações ordinárias (aqui , a categoria em questão é a de disco
voador). É por isso mesmo que seria particularmente difícil (e deliciosamente
surreal como corolário) desenterrar um argumento que visasse demonstrar de
forma ôca, a todos os que se aproximavam, sem prévia dimensão polémica (sem
visar, portanto, à refutação), a inexistência formal e o facto de discos
voadores e a extracção metódica destes últimos do conjunto maior de OVNIs (que
eles próprios, como noção gnoseológica, existem sem dificuldade particular,
pois eles apenas corroboram a nossa incapacidade colectiva de reconhecer
infalivelmente tudo o que flutua acima das nossas cabeças, no céu).
Simplificando: você acredita em discos voadores, Baquet, pois bem, procura
discos voadores. E, sobretudo, não me peça para fazê-los desaparecer antes que
você mesmo os faça aparecer. Se encontrarmos tratados mais
facilmente de ateologia do que tratados de não-ufologia,
é, de facto, por uma questão de princípio, que os que procuram deuses (ainda)
têm uma credibilidade intelectual, institucional e social implícita que os
investigadores dos discos voadores não dispõem ou ainda não dispõem. Há, no
entanto, um defeito comum de método aqui. Este último é formulado da seguinte
forma. É
simplesmente filosoficamente inadequado procurar proceder directamente, isolada
e abstractamente (e consequentemente sem sistematismo dialéctico) à
demonstração da inexistência.
Concentremo-nos numa categoria cuja inexistência é hoje tão massivamente acolhida
que é até muito difícil conceber aquilo a que poderia corresponder, no momento
da reivindicação da sua validade descritiva. Isto não é nada mais nada menos que
o famoso flogiston. Ninguém acredita na
existência empírica desta categoria, que correspondia, nesta parte da física
moderna antiga chamada phlogiston, a uma substância
imanente que garantisse intrinsecamente a inflamabilidade. Quando um objecto
inflamável passou pelo fogo, acreditou-se que estava, sob o efeito das chamas,
em perda de flogista e que finalmente já não continha esta estranha substância
no momento da sua adesão ao estatuto de cinzas impalpáveis. Libertado pela
combustão, o flogiston lixou o campo com as chamas. Como corolário, um objecto
não inflamável era simplesmente um objecto inicialmente desprovido de flogisto.
Enquanto queimava, o objecto inflamável desviava-se do seu flogiston, pêlo nas
ventas. Muito bem, muito bem. Ninguém procurou de forma demasiado clara
demonstrar a inexistência do flogisto, simplesmente porque a demonstração
frontal (não-refutativa) de uma inexistência, não o fazemos, num método sonoro.
Não acontece. Isto é intelectualmente invulgar. O flogisto, como uma substância
inerente que garante a inflamabilidade, assim permaneceu no lugar no lote de
postulados heurísticos da física empírica dos bons velhos tempos, muito tempo.
Então algo mais aconteceu noutro canto da ciência.
O nome do químico francês Antoine Lavoisier (1743-1794) está, de facto,
associado ao desaparecimento intelectual desta categoria falsa de flogista e ao
colapso irreversível da hipótese flogista. É que Lavoisier
estava a trabalhar no oxigénio (foi ele que descobriu o oxigénio em 1778 - e
especialmente não me perguntem como é que ele foi feito para respirar antes, eu
já o fiz) e acaba por desenhar o papel deste último na combustão. Lavoisier não
trabalhou particularmente na inexistência de flogiston. Simplesmente trabalhou,
de outro ângulo, noutra coisa, mobilizando outras informações. Isto veio, por
efeito lógico, para tornar a inexistência do flogiston confirmável e
eventualmente confirmada. Não estamos a trabalhar para demonstrar que algo não
existe. Trabalhamos – por outro lado e em primeiro lugar – em algo que existe
e, por efeito colateral feliz, pretendido ou não, o nosso trabalho sobre o que
existe faz desaparecer a crença no que de qualquer forma não existia (e, portanto,
foi, corolário, não vale a pena que persistamos em opor-nos a ele e ao lutador,
digamos, no ar).
Vamos para o famoso Não somos nós, isso ou não é o que somos ou não somos assim, nós americanos. (Isto não é quem
nós somos). Ouvimos cada vez mais, esta formulação, uma vez
posta em voga, pelo Presidente Obama. Um retórico subtil, este último muitas
vezes tentou, durante a sua presidência atormentada, demonstrar a inexistência de certos
comportamentos insaciáveis dos seus compatriotas. Isto foi deitado fora, com
uma recorrência muito dolorosa, nas múltiplas situações de asneiras sociais que
pontuaram os seus dois mandatos (crimes de ódio, capuzes racistas, tiroteios
niilo-absurdistas, terrorismo em uniforme, etc.). Este problema americano é,
aliás, muito mais irritante do que pensamos. É verdade que os últimos vinte
anos nos obrigaram colectivamente (e involuntariamente) a questionar
pensativamente o
que os americanos não são. Tivemos o partido do fim da Guerra
Fria Clintoniana, depois o Onze de Setembro da refachização de Bush, depois a
era da redenção
obamaesca e aqui estamos de volta ao estilo trumpista do orgulho em armas.
Cenoura, pau, cenoura, pau. Sem pau, sem cenoura, sem pau, sem cenoura. Admitamo-lo,
a pergunta é cada vez mais feita: o que não são os americanos? Não são
imperialistas? Não são etnocentristas? Não são plutocratas? A sério?
Só que aí, tenha cuidado, não cairemos na lógica inválida da negação abstracta
do flogiston, dos discos voadores e do deus monoteísta. Olà, olà, não vamos
cultivar a demonstração do que não é. Nos nossos tempos ambivalentes de fake news
e no facto alternativo, deixaremos aos políticos americanos uma boa compleição, os não é isso
que somos deslumbrados e consternados e ficaremos longe do
esforço para demonstrar o que não existe, entre os americanos, como em qualquer
outro lugar. Noutro ângulo, portanto, e por outro lado, se olharmos,
descaradamente, mas sem amargura, o que os americanos são, antes da história,
são a grande
civilização burguesa da era moderna. Foram constituídos
revolucionáriamente, na demarcação do colonialismo britânico, e conquistaram
uma influência preponderante no mundo, no movimento das duas guerras mundiais
que fizeram, no século passado, retirar a Europa. Depois também se retiraram,
civilizacionalmente, face à onda africana, do Médio Oriente e da Euro-Ásia.
Auto-proclamados detentores de verdades programáticas na perda acelerada da
serenidade dogmática, os americanos ainda relembaram um pouco os seus mitos de
terra de liberdade, terra de oportunidades, caldeirão e sociedade
igualitária. Portanto, há uma coisa que os americanos estão condenados a fazer
cada vez mais num futuro histórico próximo e um pouco mais distante: surpreenderem-se a si próprios. Eles ficarão
espantados e exclamar, vendo a sua civilização gradualmente perder a sua
amplitude imperial, o seu pluralismo jovial, e o seu descuido consumista: Nós não somos isso ou não é o que somos ou nós
não
somos assim.
Não os sigamos neste argumento. Não nos preocupemos com o que os
americanos não
são e vejamos o que são, isto é, aquilo em que se tornam: uma civilização original sem um império
para a impor. Isto não é fingir que os americanos não são imperialistas, não são
etnocentristas, não são plutocratas. É, mais
simplesmente, observar concretamente que estão em crise de consciência, como
foram todos os poderes forçados, no trabalho, a relativizarem-se historicamente
perante a ascensão de outras culturas do mundo.
.
Do
meu livro, PHILOSOPHY FOR
THE THINKERS OF ORDINARY LIFE, na editora ÉLP, 2021.
.
NÓS NÃO SOMOS, ISSO!
Ah, certo? A sério...
Fonte: C’EST PAS NOUS, ÇA… ou à propos de ce qui n’existe pas – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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