sexta-feira, 5 de agosto de 2022

ISTO NÃO SOMOS NÓS… ou sobre o que não existe

 


 5 de Agosto de 2022  Ysengrimus 

 


YSENGRIMUS — A quantos ateus foi feita a seguinte pergunta por teólogos: Sim, mas você é capaz de provar – provar incontestavelmente – que Deus não existe? Ora, vamos admitir, há uma certa estranheza na atitude que consiste em exigir a demonstração de uma inexistência. Para dizer a verdade, como deve ser dito: simplesmente não queremos isso, de facto, nos recessos heurísticos de uma filosofia comum consistente. O que estou a propor aqui, com todo o respeito, é uma reordenação do ónus da prova. O facto é que, seja qual for o quadro de representações físico-culturais comuns que se adopte, é o argumentador que aspira a introduzir uma categoria não sustentada no sistema que herda o dever de demonstrar a sua existência. Aqueles que acreditam plenamente num deus intangível devem provar o seu deus intangível, ponto final. Não cabe a mim, um ateu vazio, desprovar ou refutar a coisa. Uma demonstração de inexistência é sempre uma refutação que não diz o seu nome. E uma refutação é inevitavelmente dada por postulados amplamente injustificados. De facto, há, em qualquer demonstração de inexistência, um ponto de apoio insidiosamente depositado e escorado num argumento de autoridade preexistente. No género: o deus é tradicionalmente recebido por um grande número de corpos institucionalizados (religiões oficiais, vários eruditos, escolásticos, magistrados, curandeiros de todos os barris, pai-mamãe, filósofos seguidores, crentes desnorteados e todos os enxames usuais). Assim, caberia ao opositor demonstrar o contrário (nomeadamente a sua inexistência) em insidiosa referência a este argumento de autoridade preexistente e pesando todo o seu peso cultural conformista. Só que uma aporia deferente e dócil continua a ser uma aporia... Então, não. Apenas não.

Deixe que me explique sobre um caso menos apoiado etno-culturalmente. Vamos aplicar a ideia, sem corar, aos discos voadores. O argumento da autoridade obriga, começamos por argumentar que Jimmy Carter viu um disco voador quando era governador da Geórgia (1969). O ex-presidente americano de prestígio, Jimmy Carter certamente não precisa de ovnis para se destacar. Isso garante amplamente a sinceridade autoritária das suas observações e, consequentemente, no entusiasmo, a autenticidade das suas memórias. Com base nesta fonte (ou qualquer outra de peso semelhante), argumenta-se então que recai agora nas mãos do opositor o ónus de demonstrar a inexistência de discos voadores. O argumentador não convencido pelo Sr. Carter e sua laia deve, portanto, de repente assumir todo o corpus, as fotos, os vídeos, os depoimentos e passá-los pelo decapante, demonstrando a sua invalidade, caso a caso. Experimentaremos a dimensão ubíqua que tal estratégia argumentativa alcançaria rapidamente se encontrasse personagens de ambos os campos para endossá-la. O facto é que, tanto cultural quanto empiricamente, o debate sobre discos voadores nunca começa assim. Com ou sem o apoio implícito de Jimmy Carter e dos demais da sua pirueta, é o ufólogo que deve trabalhar para demonstrar a existência da categoria que busca introduzir no nosso sistema de representações ordinárias (aqui , a categoria em questão é a de disco voador). É por isso mesmo que seria particularmente difícil (e deliciosamente surreal como corolário) desenterrar um argumento que visasse demonstrar de forma ôca, a todos os que se aproximavam, sem prévia dimensão polémica (sem visar, portanto, à refutação), a inexistência formal e o facto de discos voadores e a extracção metódica destes últimos do conjunto maior de OVNIs (que eles próprios, como noção gnoseológica, existem sem dificuldade particular, pois eles apenas corroboram a nossa incapacidade colectiva de reconhecer infalivelmente tudo o que flutua acima das nossas cabeças, no céu). Simplificando: você acredita em discos voadores, Baquet, pois bem, procura discos voadores. E, sobretudo, não me peça para fazê-los desaparecer antes que você mesmo os faça aparecer. Se encontrarmos tratados mais facilmente de ateologia do que tratados de não-ufologia, é, de facto, por uma questão de princípio, que os que procuram deuses (ainda) têm uma credibilidade intelectual, institucional e social implícita que os investigadores dos discos voadores não dispõem ou ainda não dispõem. Há, no entanto, um defeito comum de método aqui. Este último é formulado da seguinte forma. É simplesmente filosoficamente inadequado procurar proceder directamente, isolada e abstractamente (e consequentemente sem sistematismo dialéctico) à demonstração da inexistência.

Concentremo-nos numa categoria cuja inexistência é hoje tão massivamente acolhida que é até muito difícil conceber aquilo a que poderia corresponder, no momento da reivindicação da sua validade descritiva. Isto não é nada mais nada menos que o famoso flogiston. Ninguém acredita na existência empírica desta categoria, que correspondia, nesta parte da física moderna antiga chamada phlogiston, a uma substância imanente que garantisse intrinsecamente a inflamabilidade. Quando um objecto inflamável passou pelo fogo, acreditou-se que estava, sob o efeito das chamas, em perda de flogista e que finalmente já não continha esta estranha substância no momento da sua adesão ao estatuto de cinzas impalpáveis. Libertado pela combustão, o flogiston lixou o campo com as chamas. Como corolário, um objecto não inflamável era simplesmente um objecto inicialmente desprovido de flogisto. Enquanto queimava, o objecto inflamável desviava-se do seu flogiston, pêlo nas ventas. Muito bem, muito bem. Ninguém procurou de forma demasiado clara demonstrar a inexistência do flogisto, simplesmente porque a demonstração frontal (não-refutativa) de uma inexistência, não o fazemos, num método sonoro. Não acontece. Isto é intelectualmente invulgar. O flogisto, como uma substância inerente que garante a inflamabilidade, assim permaneceu no lugar no lote de postulados heurísticos da física empírica dos bons velhos tempos, muito tempo. Então algo mais aconteceu noutro canto da ciência.

O nome do químico francês Antoine Lavoisier (1743-1794) está, de facto, associado ao desaparecimento intelectual desta categoria falsa de flogista e ao colapso irreversível da hipótese flogista. É que Lavoisier estava a trabalhar no oxigénio (foi ele que descobriu o oxigénio em 1778 - e especialmente não me perguntem como é que ele foi feito para respirar antes, eu já o fiz) e acaba por desenhar o papel deste último na combustão. Lavoisier não trabalhou particularmente na inexistência de flogiston. Simplesmente trabalhou, de outro ângulo, noutra coisa, mobilizando outras informações. Isto veio, por efeito lógico, para tornar a inexistência do flogiston confirmável e eventualmente confirmada. Não estamos a trabalhar para demonstrar que algo não existe. Trabalhamos – por outro lado e em primeiro lugar – em algo que existe e, por efeito colateral feliz, pretendido ou não, o nosso trabalho sobre o que existe faz desaparecer a crença no que de qualquer forma não existia (e, portanto, foi, corolário, não vale a pena que persistamos em opor-nos a ele e ao lutador, digamos, no ar).

Vamos para o famoso Não somos nós, isso ou não é o que somos ou não somos assim, nós americanos. (Isto não é quem nós somos). Ouvimos cada vez mais, esta formulação, uma vez posta em voga, pelo Presidente Obama. Um retórico subtil, este último muitas vezes tentou, durante a sua presidência atormentada, demonstrar a inexistência de certos comportamentos insaciáveis dos seus compatriotas. Isto foi deitado fora, com uma recorrência muito dolorosa, nas múltiplas situações de asneiras sociais que pontuaram os seus dois mandatos (crimes de ódio, capuzes racistas, tiroteios niilo-absurdistas, terrorismo em uniforme, etc.). Este problema americano é, aliás, muito mais irritante do que pensamos. É verdade que os últimos vinte anos nos obrigaram colectivamente (e involuntariamente) a questionar pensativamente o que os americanos não são. Tivemos o partido do fim da Guerra Fria Clintoniana, depois o Onze de Setembro da refachização de Bush, depois a era da redenção obamaesca e aqui estamos de volta ao estilo trumpista do orgulho em armas. Cenoura, pau, cenoura, pau. Sem pau, sem cenoura, sem pau, sem cenoura. Admitamo-lo, a pergunta é cada vez mais feita: o que não são os americanos? Não são imperialistas? Não são etnocentristas? Não são plutocratas? A sério?

Só que aí, tenha cuidado, não cairemos na lógica inválida da negação abstracta do flogiston, dos discos voadores e do deus monoteísta. Olà, olà, não vamos cultivar a demonstração do que não é. Nos nossos tempos ambivalentes de fake news e no facto alternativo, deixaremos aos políticos americanos uma boa compleição, os não é isso que somos deslumbrados e consternados e ficaremos longe do esforço para demonstrar o que não existe, entre os americanos, como em qualquer outro lugar. Noutro ângulo, portanto, e por outro lado, se olharmos, descaradamente, mas sem amargura, o que os americanos são, antes da história, são a grande civilização burguesa da era moderna. Foram constituídos revolucionáriamente, na demarcação do colonialismo britânico, e conquistaram uma influência preponderante no mundo, no movimento das duas guerras mundiais que fizeram, no século passado, retirar a Europa. Depois também se retiraram, civilizacionalmente, face à onda africana, do Médio Oriente e da Euro-Ásia. Auto-proclamados detentores de verdades programáticas na perda acelerada da serenidade dogmática, os americanos ainda relembaram um pouco os seus mitos de terra de liberdade, terra de oportunidades, caldeirão e sociedade igualitária. Portanto, há uma coisa que os americanos estão condenados a fazer cada vez mais num futuro histórico próximo e um pouco mais distante: surpreenderem-se a si próprios. Eles ficarão espantados e exclamar, vendo a sua civilização gradualmente perder a sua amplitude imperial, o seu pluralismo jovial, e o seu descuido consumista: Nós não somos isso ou não é o que somos ou nós não somos assim.

Não os sigamos neste argumento. Não nos preocupemos com o que os americanos não são e vejamos o que são, isto é, aquilo em que se tornam: uma civilização original sem um império para a impor. Isto não é fingir que os americanos não são imperialistas, não são etnocentristas, não são plutocratas. É, mais simplesmente, observar concretamente que estão em crise de consciência, como foram todos os poderes forçados, no trabalho, a relativizarem-se historicamente perante a ascensão de outras culturas do mundo.

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Do meu livro, PHILOSOPHY FOR THE THINKERS OF ORDINARY LIFE, na editora ÉLP, 2021.

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NÓS NÃO SOMOS, ISSO! Ah, certo? A sério...

 

Fonte: C’EST PAS NOUS, ÇA… ou à propos de ce qui n’existe pas – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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