12 de Agosto
de 2023 Ysengrimus
Só falarei por mim...
(p. 103 — Z, fragmento)
.
YSENGRIMUS — Alain Gravel (não confundir com
o radialista de Montreal) é um prolífico e percussivo autor de Deux-Montagnais. Constrói uma poesia original que funde
o tom rítmico, versificado ou não, com um tipo particularmente idiossincrático
de deslocação semântica da noção-palavra. Na sua obra, o tecido textual, sempre
solidamente dominado, configura-se de forma muito particular. Há uma íntima
interacção entre a poesia ficcional, aberta ao imaginário, e o ensaio... ensaio
muitas vezes de teor sociológico ou filosófico, abraçando com intensidade as
causas sociais contemporâneas (nomeadamente o ambientalismo). A coexistência
orgânica destas duas dimensões (poesia/ensaio) exige geralmente uma maturidade
particular da escrita. Alain Gravel conseguiu-o. O resultado final é que ainda
estamos algures entre Ronsard e Descartes.
Eu penso e eu sou
O que eu sou aqui
Sou o meu rasto
Ele já está aqui
Eu sou este rasto
Este é o meu desejo
Eu vejo que estou
No caminho certo
Mesmo que seja sinuoso
Posso ver quem eu sou
Pelos meus passos
E sei de onde vim
Deixando pegadas
Eu que não sou nada
Mas um rasto de relva
(p. 47 -J).
Neste trabalho denso e subtil de
escrita, o lírico coexiste sempre com o cogitativo, desde que não haja jogo de
palavras sem entrelaçamento de ideias. Um parâmetro temático que surge com
frequência é o da dor e as dobras da sua radiação. Rapidamente nos apercebemos
de que o texto é sofrimento, e que esse sofrimento se manifesta numa radiação
particularmente intensa. A dor é parte integrante e intrínseca do processo
criativo. Para Alain Gravel, o risco terrível e belo da dor, e as obrigações
práxicas e intelectuais que ela acarreta (sacrifícios, compromissos, ilusões,
partidarismos), bem... fazem-no escrever. O ritmo da escrita e a organização
dos temas são então fundados numa composição.
Segundo período
Pão e circo
no chão da
vaca
onde passo a
palavra a outro fôlego
do sacrifício
ao compromisso
do compromisso
à ilusão
que obriga o
porteiro a fechar a porta
e a baixar a
tampa do partidarismo
no covil dos
que têm o dom de lidar com o profissional
envolvidos
numa aventura perigosa
arriscar a
juventude e a vida
(p. 28 - E,
fragmento).
O exercício poético da presente obra
evoca, sob uma formulação genérica, uma experiência juvenil, deliberadamente
mantida sobre a velha cerca que separa a adolescência que observamos e a
adolescência que vivemos e/ou ainda vivemos (a adulescência...). É, portanto, a auréola do mundo da
infância tardia que está em causa. Alain Gravel está numa posição ideal para
evocar este tipo de realidade. Quando era adolescente, nos anos 70, ele próprio
seguiu um percurso bastante rock'n'roll,
como ainda se diz na língua local. E como educador (agora reformado), esteve
durante muito tempo em contacto com as sensibilidades dos adolescentes, em
contexto escolar (precisamente o tema que desencadeou a escrita deste livro). A
zoom adolescence é, pois, uma situação em que a lente de
abordagem olha para a frente e para trás. Mas também, ao mesmo tempo, o campo
de visão dá a volta, curva-se e olha para dentro. E, mais uma vez... palpitante,
lancinante... o que recebe a atenção mais intensa, sustentada e mordaz é a
realidade do sofrimento dos adolescentes.
Sofrer nas minhas transformações
Sofrendo mais do que a ponta do meu
nariz
Para os outros não fazerem nada com a
sua gaiola
A minha moral de liberdade, esta minha
justiça
O meu desejo de me manter de pé
Os meus pais planeiam as suas crenças
Eles guardam-nas e transmitem-nas a mim
Não faltam exemplos
Tenho tempo para viver em paz
Da minha gaiola aberta
(p. 73 - S, fragmento).
De acordo com as suas escolhas temáticas, Alain Gravel é perfeitamente capaz de jogar com os registos de linguagem, se a dureza pétrea desses registos servir o seu argumento e a sua evocação. E depois, obviamente, estamos numa dinâmica em que é a juventude que pulsa, que vive, que sustenta todas as relações de força, suaves ou intensas, com este mundo cruel e as mais diversas manifestações do substracto adulto. E juventude significa vernáculo. Todos nos lembraremos do cool, do sharp, do time e do pop que ainda pontuam os vários retalhos discursivos que juntámos na nossa juventude. Alain Gravel revela uma capacidade muito precisa, acutilante (quase dialectológica, aliás) de dominar essa particularidade da presença do vernáculo em algo que se formula, sem qualquer condescendência, como a força e a poética citadas no grito das formulações tipicamente adolescentes.
Aqui, uma estrela que ganhou fama com as
suas canções,
despiu-se no seu ramo.
Aqui, os rapazes dizem que as raparigas
estão a segurar
o futuro do Quebec pela manga.
Uma rapidinha na estrada. O rock não
está morto.
Fala tu sobre isso, ok.
Era eu que estava lá antes de ti. Não és
suficientemente forte.
Pausa para o banho fodida.
(pp 32-33 - F, fragmento).
E, de A a Z, está tudo lá. Do sofrimento
ao prazer, um tema é particularmente saliente: a boa comida. O nosso
adolescente genérico é, entre outras coisas, um epicurista em ascensão. Este
tema do manducável confirma, se é que era preciso uma prova, que estamos de
facto na situação de uma personagem que vai jogar e flirtar com o cantilever
entre a infância gulosa, em reabsorção, e a idade adulta gastronómica, em
emergência. E o que é que pode ser mais revelador, neste tipo de situação
sinuosa, do que uma boa refeição de salão? Assim, ao evocar os procedimentos de
um certo baile (baile de finalistas, baile à beira-mar, baile de casamento, não
temos a certeza), chega o momento em que o nosso adolescente implícito
estabelece a sua ligação com as coisas doces da carne. E é um staccato de
pratos, com sentimentos poéticos particularmente densos, que se sucedem perante
os nossos olhos e papilas gustativas colectivas.
À hora da refeição
Uma refeição
sem restos
Na mesa
redonda do nosso engodo
Teatro de um
apetite manifesto
Grande
limusina toda aperaltada
O ventre, esse
recipiente de ternura
Cheio de vida
e de restos
É isso que nos
alegra
Uma alma gémea
na sopa cultural
Uma dupla boca
cheia de sabor
Uma borboleta
de truta
E batatas em
roupões
Os nossos
olhos reviram os cantos
Tudo em boa
diversão
Castelo e
sussurros daqui
Vais
ultrapassar isso até à sobremesa
Eu vou ter a
lua, garantido
É bom beber e
festejar
(p. 88 - V,
fragmento).
Bombância é a palavra-chave. Nada de que
nos possamos queixar. Ter devorado é também ter olhado... e falado. Alain
Gravel sabe perfeitamente como fazer coexistir a força das cores, a
sensibilidade surrealista das sensações e a sua dimensão filosófica sólida e
tendenciosa. Ah, a dimensão filosófica, com este autor, nunca sai da sua obra e
vem sempre à tona e à superfície da sua textualidade, que, por sua vez, é
também o seu reflexo. Aqui, depois de termos comido, tanto quanto depois de
termos brincado na relva, não esquecemos que mesmo comer ou viver se desenrola
no ângulo da inexorável variabilidade, emocional e perceptiva, dos planos de
apreensão do conhecimento.
A vida é demasiado curta para desiludir.
A natureza é verde, mas as sardinhas
enlatadas são cinzentas;
tudo depende da forma como se
percepciona.
(p. 32 - F, fragmento).
Recebam agora uma confissão. O corpus
textual de Gravel é vasto e, com esta colecção de poesia baseada na ordem
alfabética, temos este acesso frugal a apenas vinte e seis (26) dos seus
poemas, cada um intitulado com uma letra do alfabeto, e o lote classificado de
acordo com a fatal ordem alfabética. Resta-nos esperar que as numerosas
miniaturas em prosa e o resto da poesia de Alain Gravel saiam um dia das suas
gavetas e sejam lidos (pensem nesta admissão agora...). Alain Gravel é um
escritor prolífico que ainda tem muito para ler. E devo dizer que estou ansioso
pelo próximo livro, pois a brevidade desta primeira obra deixou-me um pouco
esfomeado (as deliciosas sardinhas em lata satisfizeram-me apenas por pouco
tempo).
O livro está cravejado de pequenas
ilustrações em preto, cinza e branco, num estilo ciber-moderno que é...
também... já o de outro tempo. O prefácio (pp. 8-9) é de Claire De Pelteau,
poetisa eustáquia e autora de boa floresta. O
exercício do livro (p.7) é retirado do livro Le canadien errant (1953), uma colectânea de
histórias imaginárias de François Hertel (1905-1985). A colectânea termina
com agradecimentos (p. 106), notas biográficas (p. 107) e uma pequena lista das
publicações anteriores do autor (p. 108). O índice (p. 109) parece ser o mais
simples e despojado da história da poesia moderna...
.
Alain Gravel, Zoom Adolescence— Recueil de
poèmes, Éditions le Baladin, 2022, 109 p.
Fonte: ZOOM ADOLESCENCE (Alain Gravel) – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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