sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Autoridade lamechas

 


 4 de Agosto de 2023  Ysengrimus 

YSENGRIMUS — Houve um tempo (a minha juventude e antes) em que a autoridade, nomeadamente a autoridade para censurar o discurso e o pensamento, era detida por um órgão ex cathedra tirânico que se legitimava no seu poder estatutário e arbitrário e nada mais. Quando a Igreja colocava na lista negra livros baseados em pensamentos alternativos, fazia-o com base na sua capacidade imanente e silenciosa de impor a sua lei. E, para ler esses livros, era preciso escondermo-nos dela. Quando o Partido ditava a linha doutrinal e comportamental, à esquerda ou à direita, era preciso aderir a essa linha partidária para sobreviver e continuar a existir politicamente. Com o movimento libertário da segunda metade do século passado, a linha do partido parece um arame farpado carrancudo e um tanto ridículo, que retém os únicos verdadeiros livres-pensadores com estatura e mantém no curral apenas os tacanhos, os nostálgicos e os seguidores. Na política actual, a divergência é a transcendência.

Seja pela Igreja, pelo Partido, pela Pátria, pela Comunicação Social, pela Administração Civil ou Empresarial, o acto de autoridade, a intervenção autoritária, ou já não existe ou existe com dor e miséria e por sua conta e risco. As grandes forças, como o Partido, a Empresa ou a Pátria, perderam toda a credibilidade. A sua antiga autoridade reduziu-se a uma gendarmeria brutal ou a um palavreado vazio e sem sentido que não interessa à sociedade civil. Os grandes corpos autoritários, comidos por vermes, estão agora congelados nas tábuas da História e, francamente, não vamos chorar por esses totens de outrora. Já sofremos o suficiente (NB, para o futuro).

Estamos finalmente livres? Oh, oh, tenha cuidado. Pois neste congelamento no grande molho outrora efervescente da proibição de proibir, outra instância insidiosamente se insinuou na posição de autoridade: a VÍTIMA. A autoridade brutal do leão arrogante é, hoje em dia, substituída pela autoridade fedorenta e suja do impudente texugo. A AUTORIDADE LAMECHAS é tão viscosa e irritante hoje em dia que, numa deferência contricta à sua omnipotência contemporânea, para evitar conscientemente enfiá-la nas minhas costas, terei o resto da minha demonstração operada como parte de um ensaio-ficção. O ensaio-ficção, neste caso, é novamente o facto de proceder, para expressar ideias sob o peso implícito da censura, como no tempo das histórias persas de Montesquieu e Voltaire.

Então aqui vai. Algumas pessoas são alérgicas a morangos. Se as obrigarmos a comer morangos, ficam muito doentes. As pessoas alérgicas aos morangos são como as pessoas alérgicas ao perfume, ou as pessoas que perderam as suas laranjas, ou as pessoas que perderam os seus laranjais, ou as pessoas que perderam as suas terras, ou as pessoas que perderam a sua nação, ou as pessoas que perderam as suas famílias, ou as pessoas que foram sujeitas a um verdadeiro ou suposto frutocídio, ou as pessoas que são vegetarianas, ou que são vegans, ou que são plantas, ou que são discriminadas pelo facto de serem plantas, vegetais ou flores, discriminação contra a cor verde, ou lilás, ou azul brilhante, ou contra uma banana com casca, ou sem casca, ou contra duas bananas coladas uma à outra, ou contra um banana split, numericamente maioritária e com musgo e morangos, ou sem. Estou certo de que conhecem bem a horda de vítimas, diversa, plural, antinómica, torrencial e estrondosa, a que estou a aludir. Lalalalalère, há de facto um ENXAME DE VÍTIMAS. Então, vamos lá bater nas vítimas da alergia ao morango.

No tempo da autoridade arbitrária da Pátria ou do Partido, estávamos a borrifar-nos para as vítimas da alergia aos morangos. Alinhavam-se, silenciosamente e em boa ordem fascista, como os canhotos, os gotosos e os gagos. E assim foi. Mas hoje, as vítimas da alergia ao morango (e todas as outras vítimas com inúmeras causas) têm o seu dia no tribunal. Pelo facto de terem sofrido ou de os seus antepassados terem sofrido, é-lhes concedido implicitamente uma espécie de direito de veto na grande ágora inclusiva de hoje. Estas vítimas testemunham e afirmam-se. Falam, primeiro corajosamente, depois perenptoriamente, e, de uma coisa para a outra, pretendem regulamentar e discutir a gestão do morango. Assim, torna-se cada vez mais difícil oferecer morangos à sobremesa, dar um morango espontaneamente a uma criança, falar mesmo de morangos, porque houve vítimas de alergia ao morango e o seu sofrimento tem de ser tido em conta, já que se tornou sub-repticiamente monopolizado. Um consenso colectivo, respeitoso e cívico, aprova esta situação de vítima. A sociedade civil está a ultrapassar serenamente o ponto de não retorno sobre a questão da alergia ao morango. E temos de o fazer. Tentar ignorar este facto vitimizador seria, pura e simplesmente, uma Causa Perdida. Os combatentes da retaguarda são rápidos a alinhar. A distância crítica em relação aos morangos é estabelecida por consenso, tendo como referência vernacular implícita as vítimas da terrível alergia aos morangos. Foi criada a AUTORIDADE LAMECHAS.

As vítimas de alergia aos nabos, as pessoas a quem cortaram as unhas dos pés demasiado curtas quando eram crianças e as pessoas daltónicas de nascença estão a protestar. Consideram, em boa consciência, que a alergia aos nabos, as unhas encravadas e o daltonismo visual são condições de vitimização mais graves do que a alergia aos morangos. É óbvio. E se não o for, sê-lo-á. Chegaremos ao ponto de inventar novas condições de vitimização para demonstrar que as vítimas da alergia aos morangos coexistem na sociedade com pessoas que sofreram, real ou supostamente, e que também viram outras, e melhores. É uma corrida louca para este novo banquete de prestígio. Segue-se um debate surdo, virulento, implacável, de precedência autoritária. É a COMPETIÇÃO LAMECHAS. Nesta altura, ainda podemos acreditar na boa-fé de todas estas doninhas vitimizadas que atiram almíscar umas às outras enquanto se sentam para comer... embora o regresso de uma dimensão competitiva ao quadro levante algumas sobrancelhas.

Por fim, chegam os vendedores de morangos sintéticos feitos de açúcar químico. Modernos e astutos, aperceberam-se de que já não podem impor a sua porcaria pela autoridade, como faziam a Pátria, o Partido, os Media ou a Empresa, através de todo o tipo de negócios duvidosos. Assim, estes novos fornecedores de merdosa material e mental infiltram-se por detrás das vítimas da alergia ao morango e actuam como seus humildes criados de patins. O morango sintético feito de açúcar químico toma então o seu lugar no círculo cripto-mercantil da promoção cíclica. Os seus vendedores deixam então as suas manadas de vítimas balir e gemer, apostando no facto de que o seu poder e a sua determinação lacrimosa de bestas de cabeça encaracolada acabarão por permitir impor esta solução ilusória, sintética e química. É o LOBBYISMO LAMECHAS.

Através da transição para a vitimização, passámos da autoridade de um único diktat para a autoridade de múltiplas manipulações. É importante compreender que é a manutenção da ordem burguesa facciosamente consensual que sustenta a autoridade da vitimização. O que as vítimas estão a dizer, sem se aperceberem, é: não nos revoltemos, acomodemo-nos. Depois, a dimensão vilanesca de tudo isto vai-se instalando progressiva e inexoravelmente. Os morangos são apanhados no campo verde de um candidato com vinte anos e sub-repticiamente pendurados ao pescoço. Quando ele aparece para fazer um discurso para uma multidão cheia de vítimas de alergia a morangos, é a histeria em massa e o almíscar das doninhas vitimizadas é expelido em todas as direcções. O candidato vulgar acaba de ser enganado por um melhor manipulador da corrente de vítimas do que ele próprio. O grande tirano único foi substituído por uma profusão de pequenos batoteiros iníquos. O bem das vítimas, o respeito pelas suas prioridades cívicas, o dever de recordar o seu drama, tudo isso passa para segundo plano. O que conta agora é usá-las para amordaçar os outros tribunos das onze horas. A sua alergia aos morangos é agora menos importante do que o seu fedorento, fatal, imparável e explorável almíscar de gambá. É a MANIPULAÇÃO LAMECHAS.

Grandes populistas malcheirosos (cujos méritos são totalmente inexistentes) sentem confusamente que cheira a sebo. Eles então começam a agitar em todas as direcções e a rebelar-se. Protestam veementemente contra o politicamente correcto. Mais uma vez, não preciso de lhe desenhar uma imagem. Mas estes reaccionários desnorteados, que querem combater a rede da manipulação de má-fé do vitimismo, esbarram com a boa-fé da sociedade civil, que continua a ouvir que o respeito pelas vítimas se perpetue e que, certamente, não tenciona curvar-se novamente sob o jugo do Partido. da Pátria, ou do Índice. Há tensão entre as vítimas, aqueles que as protegem (em todos os sentidos da palavra) e aqueles que as exploram.

É a cola lenta e involuntária na armadilha libertária, o paradoxo multidireccional da tolerância. A autoridade das vítimas restaurou uma nova forma de censura e, apesar das suas intensas lutas internas competitivas, tornou-se um poder tal que os manipuladores sociais estão a cavalgar esta nova corrida para a fazer ir na direcção das suas prioridades estreitas. O rei gigantesco tornou-se num rei coxo. É preciso coxear como ele para sobreviver. E aqueles que vendem tamancos demasiado apertados compreenderam o seu interesse em todo este caso, miséria por miséria.

E as vítimas continuam a sofrer. O facto de estarmos na rua e de sermos um animal de circo inchado e sofredor, objecto de uma formidável aposta social, não nos acalma a garganta, o estômago ou as ideias.

 


Fonte: L’autorité victimaire – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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