quarta-feira, 14 de agosto de 2024

A hipocrisia dos americanos anti-aborto

 


 14 de Agosto de 2024  Robert Bibeau  


Por Khider Mesloub.

Os activistas americanos contra o aborto, também conhecidos como pró-vida, a maioria dos quais são cristãos fervorosos e eleitores republicanos, gostam de se apresentar como humanistas. Afirmam defender o "direito à vida" opondo-se ao "direito ao aborto".

O movimento anti-aborto considera os fetos como pessoas e o aborto como um assassínio. Por isso, defende a proibição do aborto em casos de violação e incesto. Nalguns Estados, os médicos que praticam o aborto podem ser condenados a prisão perpétua. Os defensores da vida defendem que o nascituro deve gozar do direito à vida. Deve, por conseguinte, ser protegido por lei porque, na sua opinião, a vida começa na concepção. Defendem a atribuição de personalidade jurídica ao feto.

Aliás, a razão pela qual se adoptou o termo "pró-vida" em vez de "anti-aborto" é para recordar que os seus defensores denunciam o aborto como "a privação de uma vida humana".

Assim, na terra dos livres, o aborto é inacessível a muitas mulheres. Muitos estados nem sequer têm clínicas de aborto. Por isso, as mulheres têm de se deslocar a outros estados para terem acesso ao aborto. No entanto, nalguns Estados, nomeadamente no Texas, os anti-aborto estão a impedir as mulheres grávidas de apanharem a auto-estrada para fazerem um aborto em Estados onde este ainda é legal. Muitas mulheres não dispõem de meios para interromper a gravidez.

Em consequência destas restricções e proibições severas, os Estados Unidos registam a taxa de mortalidade materna mais elevada de todos os países desenvolvidos, causada por abortos clandestinos. Além disso, os movimentos anti-aborto realizam regularmente manifestações de grande visibilidade à porta de clínicas onde são efectuados abortos, por vezes bloqueando violentamente o acesso.

Também se registaram numerosos actos de violência cometidos por activistas anti-aborto. Os atentados bombistas, os homicídios, os tiroteios, os assassinatos de médicos e de pessoal de enfermagem das clínicas que praticam o aborto fazem regularmente manchete nos jornais.

Por que razão, durante exactamente cinquenta anos, os Estados Unidos foram o único país do mundo a colocar o aborto no centro do debate político? Porque é que as controvérsias em torno do aborto começaram, curiosamente, em 1973, com a decisão Roe v. Wade do Supremo Tribunal, que estabeleceu o direito constitucional das mulheres americanas a abortar? Até então, porém, o aborto não tinha sido uma questão prioritária.

Esta decisão foi tomada em 1973, quando os Estados Unidos entraram em crise e declínio. Foi também tomada numa altura de radicalização dos movimentos políticos, em que se destacavam os activistas contra a guerra do Vietname.

De que outra forma se poderia desviar a população e conter o protesto social senão lançando uma nova questão controversa na arena política. Para a classe dirigente americana da época, o aborto podia tornar-se um bom veículo de mobilização eleitoral, substituindo as mobilizações sociais e anti-guerra que tinham lugar nas fábricas e nas ruas.

A luta já não devia ser travada entre anti-imperialistas e pró-imperialistas, anti-capitalistas e pró-capitalistas; numa palavra, entre o trabalho e o capital, mas entre activistas anti-aborto e pró-aborto, pró-escolha e anti-escolha do aborto. Em todo o caso, esta questão controversa serve sobretudo para desviar a atenção dos verdadeiros debates políticos.

Ao longo das últimas décadas, o movimento anti-aborto teve uma profunda influência na política e parasitou as questões socio-económicas. Ainda hoje, continua a ser o tema político em jogo na elaboração dos programas e campanhas eleitorais. Em cada eleição, o movimento pró-vida marca o ritmo. Não há dúvida de que o movimento anti-aborto conseguiu forjar um eleitorado para o qual o aborto é a única questão que importa, particularmente entre os eleitores republicanos. O movimento tornou-se atractivo. E a luta pró-vida é uma diversão. Uma diversão. Entretenimento.

Desde 1973, data do caso Roe v. Wade, os activistas anti-aborto e os políticos têm-se mobilizado para anular a decisão. Os anti-aborto ocuparam o palco político, cercaram clínicas e assediaram líderes governamentais para conseguir anular Roe v. Wade.

Confrontada com uma crise económica e institucional sem precedentes, a classe dirigente americana decidiu recentemente inverter a tendência dos protestos anti-aborto, anulando Roe v. Wade graças a seis juízes conservadores do Supremo Tribunal.

Desde então, os activistas pró-escolha e os políticos têm-se mobilizado, por sua vez, para anular esta decisão de proibir o aborto. É um verdadeiro jogo de baloiço. Mas, acima de tudo, um jogo de tolos.

Seja como for, o que caracteriza os americanos anti-aborto é a sua hipocrisia. Como já referimos, os apoiantes do movimento pró-vida, na sua maioria cristãos e republicanos, lutam contra o aborto em nome do direito à vida. Para estes anti-aborto, porque a vida começa na concepção, o feto deve ser protegido. Nomeadamente através da proibição do aborto e da venda de pílulas abortivas.

Hipocrisia, pois os mesmos que defendem a proibição do aborto e das pílulas abortivas são os mesmos que, no seu poderoso lobby, defendem ferozmente a livre venda de armas, responsáveis por milhares de homicídios e assassinatos em massa todos os anos. Já para não falar do facto de defenderem também o complexo militar-industrial norte-americano, responsável por guerras imperialistas e por milhões de mortes inocentes em todo o mundo.

Os Estados Unidos detêm o recorde mundial tanto do número de armas em circulação como do número de mortes causadas por armas de fogo. Só o povo dos Estados Unidos possui quase metade das armas de fogo detidas por civis em todo o mundo.

De acordo com vários estudos, o rácio é de 120 armas por 100 habitantes, incluindo crianças. Mais de 390 milhões de pistolas, espingardas de assalto e outros dispositivos letais são propriedade dos americanos. Este número muito elevado deve-se a uma legislação permissiva. A venda livre de armas é responsável pelo aumento da violência letal. E dos tiroteios em escolas.

Dito isto, o número de mortes por armas de fogo nos Estados Unidos continua a aumentar. De acordo com os últimos dados, em 2023, registaram-se 656 tiroteios no país, incluindo 40 assassinatos em massa, num total de mais de 48.000 mortes. Desde 2012, registaram-se 3.865 tiroteios em massa. Desde 2020, registou-se uma média de quase 700 tiroteios por ano, ou seja, mais de um por dia, a maioria dos quais cometidos por adolescentes. Todas as semanas, 25 menores morrem de ferimentos de bala e 91% das crianças mortas por armas de fogo em todo o mundo são mortas nos Estados Unidos. Esta carnificina diária de crianças não suscita a mesma emoção, o mesmo horror, a mesma indignação, a mesma fúria entre os activistas americanos contra o aborto. E com razão. Eles são directamente responsáveis por estes homicídios através do seu apoio ao lobby pró-armas.

Para acrescentar insulto à injúria, a maioria dos apoiantes pró-vida são membros do poderoso lobby das armas, a National Rifle Association (NRA). A sua influência é formidável. A NRA é acusada de bloquear qualquer progresso legislativo que limite o acesso dos americanos às armas de fogo. A NRA conta com mais de cinco milhões de membros, a maioria dos quais são também membros de associações anti-aborto.

Assim, o cúmulo da hipocrisia: por um lado, os defensores da vida pró-vida, em nome da chamada defesa da vida fetal, lutam contra o recurso ao aborto e à venda de pílulas abortivas; por outro lado, estes artesãos da morte, em nome da liberdade de matar, fazem campanha pela livre venda de armas de fogo, apesar de estas serem responsáveis por milhares de mortes.

A nível governamental, a mesma hipocrisia e o mesmo engano reinam supremos. Os dirigentes americanos dizem ser democratas e defender a democracia e a paz. No entanto, são eles os instigadores de todos os golpes de Estado, responsáveis por todas as guerras no mundo. Actualmente, fornecem, sem escrúpulos, armas ao regime fascista israelita, que trava uma guerra genocida contra os palestinianos.

Khider MESLOUB

 

Fonte: L’hypocrisie des anti-avortement américains – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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