3 de Agosto de 2024 Robert Bibeau
Por Khider Mesloub.
No mundo islâmico, os muçulmanos, para darem credibilidade ao seu discurso apologético sobre a época do Califado, supostamente florescente e extravagante, em particular os salafistas que defendem o restabelecimento de um Estado islâmico baseado no modelo do Califado, supostamente virtuoso e mítico, não hesitam em afirmar que a antiga “civilização muçulmana” se baseava na equidade e na justiça social, supervisionada por um Estado poderoso e rico e sustentada por um extraordinário desenvolvimento do conhecimento. Neste caso, trata-se de um embuste.
É verdade que existia uma aparência de Estado muçulmano na Idade Média,
mas baseava-se na exploração e na opressão de classe. Na escravatura. Uma
economia de subsistência, não de abundância. Na fome e no pauperismo.
Uma coisa é certa: a “civilização muçulmana”, tal como a “civilização cristã feudal” europeia, nunca permitiu o desenvolvimento das forças produtivas. Só o capitalismo poderá realizar esta extraordinária revolução de expansão económica ilimitada. O termo “forças produtivas” designa os meios de produção (ferramentas, máquinas, sistemas de máquinas), o conjunto das pessoas que os utilizam e os conhecimentos essenciais ao trabalho (saberes tradicionais, conhecimentos técnicos e científicos, etc.). E só o capitalismo, simbolizado pela Revolução Industrial na viragem dos séculos XVIII e XIX, produzirá um arranque sem precedentes das forças produtivas. A industrialização das economias conduziu a um forte aumento da produtividade e da produção. Impulsionou uma “civilização tecnicista”, depois uma civilização tecnológica e, por fim, uma civilização digital.
Por conseguinte, é enganador utilizar a expressão “civilização muçulmana
florescente” para descrever uma sociedade que nunca permitiu o desenvolvimento
das forças produtivas. Desde o início, baseou-se no modelo feudal de sociedade,
que se manteve no mesmo estádio económico arcaico até ao século XX.
Na verdade, o deserto persa mal foi capaz de moldar uma civilização
fundada na areia e uma religião exportada pela espada. Por outras palavras, a
antiga sociedade muçulmana foi construída sobre a promessa de prosperidade
celestial, de conquista territorial e de pilhagem terrestre.
Durante esta época islâmica, o fatalismo reinava supremo e o Mestre
absoluto reinava sobre os seus seguidores fanáticos. Assim se explica a
resignação perante os fenómenos considerados imparáveis e fatais. Nenhuma mão
humana podia ou devia alterar o curso da história, previamente traçado por
Deus. O resultado foi uma ausência total de vontade de mudar a sociedade
muçulmana do seu curso predestinado. Vileza da transformação económica. Isto
traduzia-se numa submissão ao curso do destino, que não devia ser perturbado,
interrompido ou revolucionado de forma alguma. Nem a nível económico. Nem
socialmente. Nem economicamente, nem socialmente, nem politicamente. Do ponto
de vista desta sociedade islâmica, cega pela observância obsessiva de
princípios religiosos intangíveis, a inovação era encarada com desconfiança e a
modernização com repulsa. Isto explica o arcaísmo permanente da sociedade
muçulmana, tal como a sociedade cristã na época feudal.
Durante séculos, o mundo muçulmano estagnou na fase feudal, onde as
forças produtivas eram sufocadas pelo colete de forças de relações sociais
arcaicas impregnadas de religiosidade, essa força espiritual de inércia
reputada pelas suas virtudes económicas suavizantes e emolientes.
Só o capitalismo podia realizar a transformação extraordinária e
permanente da sociedade. Como assinalaram Marx e Engels em 1847, no Manifesto
do Partido Comunista: “A burguesia não pode existir sem revolucionar
constantemente os instrumentos de produção, o que significa as relações de
produção, isto é, todas as relações sociais. A manutenção sem alterações do
antigo modo de produção foi, pelo contrário, para todas as classes industriais
anteriores, a primeira condição da sua existência. Esta contínua agitação da
produção, este constante abalo de todo o sistema social, esta perpétua agitação
e insegurança distinguem a época burguesa de todas as anteriores.
Além disso, se houve alguma profusão intelectual no mundo muçulmano, foi
obra de “pensadores” autóctones dos países conquistados, e não de autores das
tribos beduínas, monopolizados pelas suas actividades de pilhagem, pelas suas
conquistas coloniais e, sobretudo, pelas suas guerras “fratricidas” no próprio
topo do poder.
Quanto a esta pretensa idade de ouro do mundo muçulmano miticamente
glorificado, há que repor a verdade histórica: este universo “intelectual” da
tão glorificada era islâmica estava fanaticamente impregnado de religiosidade:
a fé sobrepunha-se à razão. Estes “intelectuais” muçulmanos da Idade Média não
eram de modo algum livres-pensadores, filósofos materialistas ou cientistas no
sentido moderno. Eram teólogos versados na metafísica confessional,
subservientes ao Todo-Poderoso e ao serviço dos poderosos. As suas reflexões
“científicas”, incluindo as mais ousadas, nunca foram para refutar a Revelação
divina ou contrariar os textos sagrados. Deste modo, o seu saber, difundido
dentro dos limites ditados pela religião, era enquadrado pelo Corão, pelo qual
Deus criou o homem e o universo e prescreveu o sentido da existência e da
História. A partir do momento em que tais axiomas dogmáticos são decretados
religiosamente no domínio do conhecimento, não há lugar para o conhecimento
científico, que é essencialmente o trabalho de investigação livre baseado na
observação e na experimentação combinadas com o espírito da dúvida metódica,
garante da veracidade epistémica.
Mesmo que o mundo muçulmano tivesse produzido um período caracterizado pela
difusão das artes, da poesia e da “filosofia”, estas criações culturais não
constituem um indicador de desenvolvimento económico, de progresso social ou de
democratização política, ou seja, de aperfeiçoamento e florescimento das forças
produtivas. Menos ainda um indicador de equidade e de justiça social. De
liberalização política e de democratização.
O nível cultural de uma civilização não se mede apenas pela acumulação de
conhecimentos rudimentares dominados por uma pequena fracção da população, ou
seja, a elite intelectual das classes privilegiadas. Mede-se também pela
aplicação técnica das verdadeiras ciências na esfera económica, permitindo o
desenvolvimento das forças produtivas. E pela sua difusão entre a população
massivamente instruída. Mas este não era o contexto histórico da sociedade
muçulmana feudal até ao século XX, que permaneceu presa a um modo de produção
arcaico, a uma economia de subsistência e a relações sociais feudais.
As ciências também testemunham o poder do espírito humano, a sua capacidade
de relegar as explicações místicas para o museu da história e de desconstruir
as teorias metafísicas e religiosas. Através do recurso sistemático à
observação e à experimentação, demonstraram a sua capacidade epistemológica de
analisar e explicar os fenómenos recorrendo apenas a leis racionais, sem
aditivos tóxicos sobrenaturais, ou seja, sem metafísica religiosa. Não era este
o ambiente histórico da era islâmica, supostamente florescente. Isto explica o
atraso económico do mundo muçulmano. E com boas razões. Devido à visão
teleológica do Islão, em que os fenómenos naturais e humanos são pré-definidos
no seu aparecimento e na sua finitude por um poder divino, qualquer curiosidade
humana em tentar analisá-los e explicá-los cientificamente era inútil. Muito
menos conquistar e dominar a natureza com o objectivo de a transformar
economicamente para aumentar a riqueza da sociedade industrialmente.
Ora, como mostra a história, qualquer sociedade que não seja dominada
racional e economicamente fertiliza o solo da religiosidade, da fatalidade, ou
seja, da crença infantil caraterística da impotência infantil. A partir daí, a
sociedade religiosa limitou-se a construir castelos existenciais de areia e
edifícios sacrificiais, locais de culto onde enterrou piedosamente a sua
existência copiosamente infantilizada. “Aqui é o lugar do mundo onde tudo se
torna criança”, dizia Péguy sobre a catedral de Chartres. Poderíamos aplicar
esta observação ao mundo muçulmano, onde a mesquita esmaga a sociedade,
suplanta a economia, afasta a ciência e eclipsa a universidade.
Qualquer sociedade fundamentalmente religiosa vive numa forma de niilismo
existencial. Porque vê a verdadeira vida no Além. O verdadeiro sentido da vida
é elevado ao Céu. Esta forma de niilismo leva a sociedade religiosa, fundada
sobre o pensamento do nada (ou o nada do pensamento), a demitir-se da vida
terrena, a poupar as suas energias para melhor gozar a existência celeste.
Assim, durante
séculos, a vida da comunidade muçulmana foi reduzida a uma existência ascética
com a perspectiva de uma recompensa materializada “paradisiacamente” por um
destino celeste eterno exaltante. Na sociedade muçulmana, tal como na sociedade
cristã da época feudal, esta divinização da vida celeste foi conseguida à custa
do desprezo pela existência terrena. A morte existencial na terra, o suicídio
produtivo, a fuga económica, consubstanciada na recusa de trabalhar. A recusa
de investir na actividade produtiva, considerada supérflua, inútil,
terrivelmente profana. De facto, durante muito tempo, as duas sociedades
feudais, cristã e muçulmana, basearam-se na humilhação e na prostração como
dogma social.
É verdade que a antiga sociedade muçulmana conheceu um período de florescimento marcado por prodigiosas criações culturais e fundações religiosas. Mas nunca foi um período caracterizado por uma civilização técnica desenvolvida e de alto rendimento. Esse trabalho será efectuado pelo capitalismo. E o capitalismo é o fruto (amargo?) da burguesia produtiva. O capitalismo surgiu nas fábricas criativas das cidades florescentes da Europa, fecundado por uma nova geração de empreendedores decididos a revolucionar o mundo (recorde-se que a burguesia já foi revolucionária durante muito tempo).
No entanto, apesar de ter nascido na Europa cristã, o capitalismo não foi concebido pelo cristianismo, que durante séculos foi dominado por eunucos incapazes de gerar a mais pequena criação humana material, para além das fantasmagóricas ruminações religiosas celestiais. Incapaz de revolucionar as forças produtivas devido à sua esterilidade social congénita, a instituição eclesiástica não deu qualquer contributo para a fecundação do capitalismo. Além disso, o celibato do cristianismo impediu-o de abraçar o espírito de criatividade, impedindo-o de gerar a mais pequena civilização humana material e cultural.
O cristianismo, inimigo da razão (como todas as religiões), mal conseguiu construir uma instituição eclesiástica parasitária que se ocupava escolasticamente em epilogar sobre o sexo dos anjos no céu e em se entregar ao sexo com anjinhos na terra. Assim, o capitalismo não nasceu na Igreja, ocupada a ajoelhar-se perante o Espírito Santo em igrejas sujas, mas nos “laboratórios científicos” da sociedade burguesa racional emergente, no coração da manufactura produtiva.
A Idade Antiga foi marcada pelo aparecimento das primeiras civilizações humanas, caracterizadas pelo extraordinário desenvolvimento da agricultura, pela invenção da escrita, da arquitectura, do artesanato e do sistema de irrigação. Foi um período florescente. No entanto, os historiadores não falam das civilizações de Amon, de Marduk, de Hattoussa, de Zeus, de Júpiter, de Mitra ou de Buda, nomes dos diferentes cultos dessas civilizações antigas, para descrever essas prodigiosas civilizações do Egipto, da Babilónia, dos hititas, da Grécia, de Roma e da China. Atribuímos estas invenções e obras ao génio destes povos (pelo menos à elite letrada, técnica, artesanal e artística) e não à sua “religião”, ou seja, ao seu culto. Poderíamos dizer que o seu génio foi obra da sua extraordinária cultura e não o milagre do seu culto.
Quando se fala do milagre grego, uma sociedade marcada pelo politeísmo, atribui-se espontaneamente essa proliferação intelectual aos filósofos e à sociedade civil democrática, mas nunca aos muitos deuses e cultos gregos.
Assim, se houve alguns génios muçulmanos no período “feudal”, a culpa foi da sua prodigiosa cultura geral e dos seus conhecimentos seculares, não do Islão e muito menos do Corão. O Islão, tal como o seu Livro Sagrado, pertence ao domínio espiritual, não ao científico e muito menos ao económico.
O Islão oferece a possibilidade de realização pessoal, se se acreditar nele. Mas nunca o desenvolvimento económico e social da sociedade, fruto do trabalho colectivo nas fábricas e nos campos agrícolas, com ferramentas de alto rendimento feitas por seres humanos activos; fruto do investimento educativo e científico proporcionado por um sistema escolar secularizado e moderno.
Em conclusão, não se pode falar de uma civilização florescente no mundo muçulmano. Trata-se, antes, de uma civilização espiritual fulgurante. Com efeito, o mundo muçulmano ainda hoje brilha em termos religiosos. Brilha pela graça da sua religião, não pela energia da sua economia. A fosforescência é a propriedade de uma substância de brilhar visivelmente no escuro.
Assim, o Islão continua a ser a última “luminescência espiritual” numa sociedade sombria, marcada pela crise económica, pelo sofrimento social e pela desordem psicológica.
Khider MESLOUB
Fonte: Civilisation musulmane florissante : mythe ou réalité ? – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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