20 de Agosto
de 2024 René Naba
RENÉ NABA — Este texto é publicado em parceria com a www.madaniya.info.
Entrevista de René Naba ao jornal "Le relais du Bougouni" do Mali, parceiro do site https://www.madaniya.info/
Nicolas Sarkozy, na origem do naufrágio político francês em África
O urânio e o desenvolvimento humano no Níger.
O Níger é um dos principais produtores mundiais de urânio. Fornece à Europa cerca de 20% das suas necessidades em matéria de energia nuclear e de produção de electricidade.
O urânio é extraído principalmente das minas de SOMAIR, COMINAK e SUMINA (SOMINA), perto das cidades de Agadez, ARLIT e AKOKAN, no norte do Níger. Mais do que qualquer outra empresa, o grupo nuclear francês ORANO (antiga Areva) explora urânio no Níger há 50 anos. Consequentemente, o Níger é de importância vital para a França, contribuindo para a sua segurança energética.
No entanto, no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Níger ocupava o 189º lugar em 2022, entre os países mais pobres do planeta. O Mali, o Chade e o Burkina Faso estão pouco melhor do que o seu vizinho.
De um modo geral, a população da África Subsariana está a empobrecer cada vez mais. O número de pessoas pobres é superior ao registado em 1990. Dezoito países - incluindo o Mali, o Burkina Faso e o Níger - tinham mais de 8 milhões de habitantes e mais de 20% de pobreza extrema. No caso do Níger, o número de pessoas pobres aumentou de 7 para 11 milhões entre 1990 e 2018, para uma população total de 25 milhões. Actualmente, o Níger é um dos países africanos onde o número de pessoas que vivem na pobreza extrema aumentou desde 1990. Uma das razões para estes golpes de Estado é também, e provavelmente acima de tudo, esta pobreza, que é alimentada pela corrupção.
A isto junta-se a insegurança crescente no Níger, e em todo o Sahel, devido à presença dos grupos extremistas armados da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI), Daech ou Boko Haram. Os seus ataques contra os militares e as populações locais, que o governo nigerino não conseguiu travar, acabaram sem dúvida por convencer os oficiais nigerinos a intervir.
Por fim, há o papel da França no Sahel e no Níger, de que Mohamed Bazoum é muito próximo. A Rússia - através da Wagner ou não - acabará por tirar partido desta situação. Tal como outros países, como a China e a Turquia.
O que está em jogo no Sahel é uma remodelação das cartas geopolíticas, que durante muito tempo estiveram apenas nas mãos da França.
O Chade, aliado por excelência de Paris, cujo exército é demasiadas vezes apresentado como experiente, mas que, no fim de contas, não passa de uma aparência de gigante regional com pés de barro, não está de modo algum imune a um cenário semelhante, com a sua população a sofrer dos mesmos males socio-económicos que os seus vizinhos. E os soldados do Mali, do Burkina Faso e do Níger podem acabar por ser imitados em N'Djamena. O Senegal também está a braços com uma grave crise de governação e Dakar não escapará, se não a um golpe de Estado, pelo menos a uma profunda convulsão política, que não será sem consequências.
Le Relais du Bougouni: Quais são os efeitos destes golpes de Estado para os ocidentais, nomeadamente para a França?
Resposta de René Naba: O golpe de Estado no Níger, a 26 de Julho de 2023, é susceptível de marcar o golpe de misericórdia da presença ultrajante e insolente da França na África Ocidental e, na sequência dos golpes de Estado no Mali, Burkina Faso e Guiné, o fim de uma sequência histórica
A advertência conjunta do Mali e do Burkina Faso contra uma eventual intervenção militar ocidental contra o Níger - um gesto sem paralelo nas relações entre os países africanos e os seus antigos colonizadores ocidentais - parece assim ser a premissa do que poderia constituir uma “Frente de Recusa” à ingerência ocidental em África.
Mali, Burkina Faso, Guiné e Níger... a rejeição da França é clara e virulenta, e o “Grand Remplacement”, tantas vezes evocado pelos nostálgicos do Império, está a acontecer diante dos nossos olhos na pátria africana da França, encostada à parede. No sábado, 2 de Dezembro de 2023, o Burkina Faso e o Níger anunciaram a sua retirada da organização anti-jihadista G5 Sahel, seguindo o exemplo do seu vizinho Mali, que saiu em Maio de 2022. Quando foi criada, em 2014, para lutar contra os jihadistas no Sahel, a organização era composta pelo Mali, Burkina Faso, Níger, Mauritânia e Chade.
A França está assim a pagar o preço da sua condescendência, do seu paternalismo, da sua complacência e das suas demasiadas torpezas em África:
Desde o sistema CFA, à cristalização das pensões dos veteranos da União Francesa, à sua extensão corruptora, os djembes e as pastas, em que o antigo colonizado tinha de manter o nível de conforto do seu antigo colonizador, por chantagem do seu antigo senhor - um facto único no seio das grandes potências ocidentais -, à incessante interferência nos assuntos internos de países teoricamente soberanos mas efectivamente sob tutela neo-colonial, a lista dos abusos franceses é longa.
As repetidas intervenções militares francesas em África tiveram o efeito secundário de limpar a França do seu passado colonial, porque a utilização do poder colonial para restaurar a independência minou definitivamente qualquer discurso de independência e dignidade, devido à venalidade e cobardia da classe política africana, à sua indignidade e à sua falta de sentido de patriotismo.
O tráfico de djembes e pastas, para além do tolerável, com toda a indecência, tem sido uma prática que envergonha toda a África e a França, na medida em que não cabe ao Terceiro Mundo árabe-africano sustentar o estilo de vida da elite político-mediática francesa e as suas férias paradisíacas, à custa do orçamento dos contribuintes de povos famintos.
É uma vergonha para a África alimentar os seus algozes, na medida em que a venalidade francesa e a corrupção africana formaram uma combinação corrosiva, degradante para o doador e degradante para o receptor. Esta observação aplica-se a todos os clientes africanos da França.
Um ano após a queda de Kadhafi, o Sahel tornou-se uma zona sem lei de 4 milhões de km2, um perímetro sob vigilância electrónica da força aérea americana, para onde convergem agora os islamistas do sul do Níger, do Chade e da Nigéria (Boko Haram). Com a perspectiva de um aumento do número de empresas militares privadas e a consequente proliferação de grupos terroristas.
A França tem sido demasiado lenta a tomar plena consciência do ressentimento dos povos africanos face à sua ligeireza e à sua ganância, nomeadamente o efeito corrosivo pernicioso da Françafrique, o pacto de corrupção da tecnoestrutura francesa em toda a África francófona.
§
A- Tirar dinheiro dos orçamentos dos Estados africanos para manter o nível
de conforto dos hierarcas franceses - facto único nos anais das “grandes
democracias ocidentais” - é a marca de uma ganância rara.
§
B- Aliar-se à Turquia e ao Qatar, patrocinadores de organizações
terroristas islâmicas, para derrubar a Líbia, a barragem que retém os boat
people africanos a caminho de Lampedusa (Itália), é a marca de uma cegueira que
é tanto mais chocante quanto foi perpetrada pelo único país do mundo que se diz
laico.
§
C- A imposição do líder dos líbios afegãos, Abdel Hakim Belhadj, à frente
da governação de Tripoli é um crime tanto mais imperdoável quanto a sua adesão
ao Daech e o seu controlo sobre os stocks de armas das casernas de Tripoli
deram um impulso considerável ao terrorismo na zona Sahel-Sahariana. A
intervenção da NATO na Líbia conduziu à talibanização do Sahel, com a
destruição de sete santuários em Timbuktu (norte do Mali) pelo Ansar Eddine, um
grupo salafista pró-Qatar, na mais pura tradição dos seus emuladores afegãos,
os talibãs pró-Wahhabi, responsáveis pela destruição dos três Budas de Bamyan
(Afeganistão).
§ D- Para piorar a situação, confiar a gestão das infra-estruturas da rede de bases francesas e da ONU no norte do Mali a empresas militares israelitas revelou um desprezo soberano pelas aspirações profundas do povo do Mali, o maior país muçulmano da África Ocidental.
Nicolas Sarkozy, que ordenou a destruição da Líbia e da Síria, tem um lugar
especial nas origens deste passivo. Desta catástrofe.
Na origem deste naufrágio político, militar e diplomático, Nicolas Sarkozy
foi particularmente mau para a França. Duas vezes condenado pela justiça do seu
país por crimes relacionados com dinheiro ilegal, o “primeiro presidente
mestiço” de França continua a gozar do fervor do eleitorado chauvinista de
direita. Um facto que revela a perda de sentido e de referências da opinião
pública francesa, bem como a incoerência do debate político e a
irresponsabilidade dos seus quadros políticos.
A futilidade da procura de um homem providencial
No final desta sequência, a França deve convencer-se da inutilidade da
procura de um homem providencial. A procura incessante de um homem providencial
não pode ser um fim em si mesmo, e muito menos substituir a política na cena
internacional. Independentemente do que possam dizer os publicitários, o
fracasso da França em África deveria levar os fazedores de opinião a repudiar
este fracasso francês e os cidadãos a sancionar estas práticas nas suas
escolhas eleitorais.
Depois de ter elogiado o iraquiano Saddam Hussein, o Saladino do mundo
árabe, o costa-marfinense Félix Houphouët-Boigny, o sábio de África, o tunisino
Zine el Abidine Ben Ali, o “baluarte contra o fundamentalismo” no Norte de
África, o Mozart das finanças, Jean Marie Messier (Vivendi), o Paganini da
recuperação de empresas em dificuldade, Bernard Tapie, os queridinhos da noite
parisiense, os empresários William Kazan, Akram Ojjeh e Samir Traboulsi, o
publicitário Raghid Al Chammah,
Por fim, o mago do teclado electrónico, Imad Lahoud, falso decifrador da
cotação da Clearstream, anteriormente em África, o general Mobutu Sessé Seko do
Zaire. Depois, por causa do petróleo, os presidentes Omar Bongo (Gabão) e
Gnassimbé Eyadema (Togo). No início dos anos 90, a França apostou em Rafic
Hariri, depois no seu herdeiro Saad Hariri, antes de sucumbir ao novo pequeno
génio da República, Nicolas Sarkozy, o único homem capaz de restabelecer a
segurança e a solidez das finanças públicas francesas, o principal obstáculo à
extrema-direita francesa, o líder da esquerda e o reabilitador da França, o
campeão da luta contra o anti-semitismo e as discriminações positivas, em suma,
o salvador supremo.
O que aconteceu a seguir é bem conhecido, com dois dos queridinhos da
França, Mobutu e Ben Ali, a serem banidos do território francês quando foram
expulsos do poder após décadas de serviço leal. A ingratidão é a lei suprema
dos Estados para a sua sobrevivência. Um aviso aos aspirantes a ditadores.
A França está, de facto, intoxicada pelo seu próprio veneno.
Pior ainda, o Magrebe e a África Ocidental são os grandes reservatórios da francofonia, a base da influência cultural internacional da França. As constantes diatribes anti-árabes e anti-africanas dos polemistas em busca de sucesso fácil - “a equipa de futebol francesa, negra, negra, branca, a chacota da Europa” -, “os franceses de origem imigrante são mais controlados do que os outros, porque a maior parte dos traficantes são negros e árabes? É um facto” geraram uma profunda desconfiança em relação ao ‘país da Declaração dos Direitos do Homem’ e explicam a forte rejeição do país do Code Noir e do Code de l'Indigénat nas suas antigas colónias.
Para além do urânio, o Níger é o último pivot do sistema anti-jihadista no Sahel. O exército francês não tem praticamente nenhuma opção de recurso. Da Mauritânia ao Sudão, os jihadistas conseguiram fazer fugir todos os ocidentais. De facto, o exército francês continua presente no Chade (mil soldados), no Djibuti (1.500 homens) e em Dakar. Por muito doloroso que seja para a França, esta deve compreender que se trata do fim de uma sequência histórica.
Le Relais du Bougouni: Quais são as suas últimas palavras?
René Naba: A última palavra pode ser resumida numa fórmula: a guerra na Ucrânia, um alerta salutar.
A guerra na Ucrânia foi uma chamada de atenção salutar para os países africanos que, na sua grande maioria, se abstiveram de condenar a intervenção russa, colocando-se em pé de igualdade com os beligerantes deste conflito, que consideravam uma “querela de brancos”, e que não queriam voltar a ser utilizados como “carne para canhão”, como aconteceu por duas vezes no século XX, durante as duas guerras mundiais (1914-918) e (1939-1945). E isto poderia explicar em parte os acontecimentos anti-ocidentais em África.
É uma honra para a França devolver a África o dinheiro retirado aos seus povos, na medida em que a devolução de pagamentos indevidos é uma medida de saúde pública.
A sabedoria manda que a França observe um período de desmame de África, durante o qual se entregará a uma profunda introspecção, sem concessões, antes de se apresentar de novo às suas antigas colónias, com uma imagem melhorada, imbuída de humildade e de humanidade, numa tentativa de esperar recuperar o lugar que deveria ter sido sempre seu e que desbaratou de forma irreflectida.
A África entrou num novo ciclo histórico e, neste, a França já não é mais do que um actor secundário”, observa o filósofo e historiador Achille Mbembé, num artigo publicado no ‘Le Monde’. Para ele, o continente está agora perante uma escolha entre o neo-soberanismo e a democracia.
Para ir mais longe nestes temas:
§ https://www.madaniya.info/2015/09/20/la-galaxie-terroriste-en-afrique/
§ https://www.madaniya.info/2023/02/17/ukraine-un-an-apres-3-3/
§ https://www.renenaba.com/les-oublies-de-la-republique/
§ https://www.renenaba.com/fonds-vautours-bradage-terres-arables-fond-devasion-de-capitaux/
§ https://www.renenaba.com/loffre-de-service-de-lafrique-au-reste-du-monde/
Fonte: Niger, un an après 2/2 : De l’uranium et du développement humain du Niger – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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