12 de Agosto de 2024 Robert Bibeau
Por Khider Mesloub.
Há artes, conhecimentos e "realizações sociais" que se pode
pensar que estão reservados apenas a mentes refinadas. Personagens
bem-humorados. Personalidades com uma psicologia sólida e equilibrada. Mas, ao
contrário do que se possa pensar, estas conquistas e fortunas não são inatas,
mas sim adquiridas através da perseverança e da persistência.
Não se chega a artista, cientista ou gestor sem primeiro dar provas de si
próprio através da aprendizagem e da formação. Afinal, a vida é feita de
aprendizagem e treino, para reforçar e aperfeiçoar as competências que se
adquirem gradualmente. Na base de todo o sucesso social e realização pessoal
está um investimento pessoal persistente.
Mas o investimento pessoal tem de florescer num ambiente familiar seguro, amoroso, protector e gratificante. É claro que, idealmente, uma família unida e duradoura é a chave para uma vida bem sucedida e para a realização pessoal. No entanto, este esquema ideal depara-se com uma realidade triste e sinistra.
Para muitas crianças, a família é a instituição mais opressiva e repressiva
da sociedade. Para muitas crianças, a unidade familiar pode ser como uma cela de
prisão. Uma prisão. Um reformatório. Uma estrutura para privar as pessoas da
sua liberdade. Um antro de abusos. Violência doméstica. Um lugar onde as crianças são domesticadas.
Um lugar de medo e de coacção. Um lugar de pressão e de repressão. De recusa e
de abuso. Por vezes, um asilo psiquiátrico, tão tóxicas e destrutivas são as
relações forjadas no seio da família.
Crescer num ambiente de amor e carinho permite à criança conhecer-se a si
própria de uma forma saudável e confiante. Descobrir o mundo com confiança.
Enfrentar as vicissitudes e as adversidades da vida com coragem e ousadia.
No entanto, ao longo da vida, sobretudo durante a infância, basta uma
"fractura psíquica", um traumatismo, para desestruturar toda a
estrutura psico-afectiva de quem sofreu alguma forma de abuso. A criança é
muito sensível aos problemas gerados no seio da família. Ela carrega consigo as
cicatrizes dessas feridas para o resto da vida, porque as feridas da infância
são indeléveis e não podem ser curadas.
Os maus tratos infligidos pelos pais, o assédio e a humilhação impostos
pelos colegas (na escola ou no bairro), deixam a sua marca nas crianças.
Sobretudo quando não conseguem encontrar um equilíbrio compensatório noutro
lado, por exemplo, no sucesso escolar. Estas feridas debilitantes vão
prejudicar o seu desenvolvimento psico-afectivo e social. Serão atormentadas
até à fragilidade. Maltratada, desestabilizada, toda a sua personalidade será
desequilibrada.
De um modo geral, todas as pessoas sofrem algum dano psicológico durante a
infância, com diferentes graus de efeito traumático. Todos nós estamos expostos
a potenciais traumas de infância que nos afectam na idade adulta. Carregamos as
cicatrizes para o resto das nossas vidas.
De um modo geral, os traumas de infância têm um impacto muito forte na
construção da identidade, nomeadamente na auto-estima. O trauma tem um impacto
na psique, mas também pode alterar o corpo. De acordo com alguns estudos, as
crianças expostas à violência, seja ela física, mental, emocional ou sexual,
podem de facto desenvolver um envelhecimento biológico mais precoce enquanto
crianças.
Em todo o caso, as feridas emocionais sofridas na infância podem durar toda a vida, mesmo na idade adulta. Os traumas de infância, consoante a sua intensidade e gravidade, permanecem com a vítima até à idade adulta.
Além disso, todos os traumas alteram a vida psicológica do indivíduo. Acima
de tudo, podem afectar gravemente a auto-estima e a confiança no mundo
exterior. Alguns traumas de infância podem levar a comportamentos
auto-destrutivos ou tóxicos. Conduzir a uma depressão crónica. Ou mesmo levar
ao suicídio.
Os traumas e as feridas emocionais farão parte da espinha dorsal emocional
da vida adulta.
Quando atingimos a idade adulta, a criança ferida dentro de nós assume o
leme das nossas vidas. Pensamos que somos os donos do barco, mas muitas vezes é
a criança ferida, encolhida no nosso inconsciente, que dirige o nosso barco
existencial.
Freud disse, parafraseando o poeta britânico William Wordsworth, que
"a criança é o pai do homem". Esta afirmação pode parecer paradoxal.
Mas se a olharmos de perto, se nos dermos ao trabalho de a analisar, podemos
ver a sua relevância demonstrativa a nível psico-sociológico.
O que ela significa é que toda a personalidade humana se forma na infância.
Por outras palavras, a psicologia do ser humano é o produto de um processo
baseado na educação dada pelos pais e pela sociedade durante os primeiros anos
de vida.
Cada adulto pode, portanto, ser visto como o "produto acabado"
("ser acabado") de uma educação e de um estado psicológico adquiridos
na primeira infância. Por outras palavras, a criança determina a vida do
adulto. A infância molda o adulto. E, por conseguinte, influencia o adulto. Tem
um impacto duradouro na vida adulta.
Isto corrobora o pensamento visionário de Spinoza no século XVII: "Os homens julgam-se livres pela única razão de que têm consciência dos seus actos e ignoram as causas pelas quais são determinados". Muitas vezes, não temos consciência da causalidade das nossas reacções e acções. Esta causalidade está enraizada na nossa psique profunda, moldada pelos nossos educadores (pais, professores) e pelos nossos governantes (sociedade dominada por uma classe social que detém os meios de condicionar as mentalidades).
Alguns séculos mais tarde, alargando o mesmo postulado, o psicanalista
Freud escreveu: "Desde os primeiros seis anos da infância, a psicologia do
escolar, o pequeno homem estabeleceu o modo e a tonalidade afectiva das suas
relações com as pessoas de um e de outro sexo, e a partir daí pode desenvolvê-las
e transformá-las em certas direcções, mas já não pode aboli-las".
Por outras palavras, os adultos permanecem eternamente cativos da sua
infância. Porque todos os nossos afectos, todas as nossas emoções, os nossos
modos de agir, de reagir, de sentir e de pensar - numa palavra, a nossa
personalidade - são construídos durante este período da infância, entre os 0 e
os 10 anos. Uma vez que estas estruturas psico-afectivas tenham permeado e
moldado a personalidade da criança, tornam-se permanentemente enraizadas.
Como adultos, podemos ter o corpo de um leão, impressionante pela sua
robustez, mas na realidade temos muitas vezes a personalidade de um gato que
mia ao menor incómodo e foge à menor adversidade, se o nosso equipamento
psíquico tiver sido construído de forma imperfeita ou, pior ainda,
violentamente abusado durante a nossa primeira infância.
Mas, dialeticamente, para além de ser o pai do homem, o mesmo ser humano é
filho do seu tempo, ou seja, é o produto das relações sociais, elas próprias
inscritas num modo de produção específico em constante evolução. Porque, como
sublinhou Karl Marx, "não é a consciência que determina o homem; pelo
contrário, é o meio social que determina o homem".
Assim, onde a família falhou na educação, a sociedade poderia remediar a
situação oferecendo às pessoas emocionalmente feridas as condições ideais para
a cura, nomeadamente através de um trabalho significativo, de actividades
artísticas, de empenhamento político, de mediação e de espiritualidade. Em
psicologia, isto é conhecido como sublimação, a transformação dos complexos em
actividades socialmente valorizadas. A sublimação permite que a angústia seja
redireccionada para algo mais saudável.
Algumas pessoas tentam curar as suas feridas emocionais consultando um psicólogo.
É o início da fase de auto-exploração e de introspecção, efectuada com a ajuda
preciosa de um terapeuta.
A tarefa mais difícil
surge no início da terapia, uma vez que têm de olhar para o seu passado e para
o da sua família, desenterrando tudo o que está enterrado nas profundezas da
sua história, que provavelmente foi dilacerada por feridas ainda abertas.
Para não falar do facto de a experiência de cada um ser pontuada por zonas obscuras cujo mistério é difícil de desvendar. Porque a memória é demasiado selectiva para se fixar em certos pormenores, mesmo que estejam cheios de significado. Para não falar das páginas negras do inconsciente, impossíveis de decifrar.
Toda a terapia esbarra nos mecanismos de defesa, porque o auto-conhecimento é o mais doloroso de todos os conhecimentos.
Desenterrar o passado é como desenterrar um cadáver da sua sepultura. É preparar-se para enfrentar os espectros da sua infância, os fantasmas da sua família traumática.
Khider MESLOUB
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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