terça-feira, 13 de agosto de 2024

Níger 1/2: Um ano após o golpe de Estado de 26 de Julho de 2023

 


 13 de Agosto de 2024  René Naba  

RENÉ NABA — Este texto é publicado em parceria com a www.madaniya.info.

O golpe de Estado de 26 de Julho de 2023, um golpe de misericórdia à presença escandalosamente insolente da França em África.

Entrevista de René Naba ao jornal "Le relais du Bougouni" Mali, parceiro do site https://www.madaniya.info/


Num sinal premonitório, a perda do "pré carré" (desmembramento – NdT) francês em África, no Verão de 2023, anunciava o colapso da classe política francesa nas eleições europeias de Junho de 2024, com o triunfo da extrema-direita francesa e o colapso dos grandes partidos políticos tradicionais que co-geriram a V República francesa desde 1958.

Vejamos esta sequência calamitosa: Nicolas Sarkozy, um empresário pós-gaullista e presidente condenado pelos tribunais do seu país; François Hollande, um social-motorista mais preocupado com a sua vida amorosa nocturna, numa altura em que o seu país estava envolvido em duas guerras em África e na Síria; e um terceiro que se proclamou Júpiter de França, mas que se revelou um frequentador de Le Touquet, Emmanuel Macron.


O Níger e o Gabão foram um Verão mortal para a França e fizeram soar o toque de morte para a presença francesa em África. O fracasso francês no seu próprio quintal levanta a questão de saber se a França deve continuar a ser membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

1.    O espantalho russo brandido pela propaganda ocidental é um falso pretexto. A maior parte dos golpistas africanos foram formados em academias militares ocidentais.

2.       Não cabe ao Terceiro Mundo árabe-africano sustentar o estilo de vida da elite político-mediática francesa e as suas férias paradisíacas, utilizando o dinheiro dos contribuintes dos povos famintos.

Níger, a nova linha de defesa do Ocidente no Sahel?

Le Relais du Bougouni: Que análise faz dos golpes de Estado no Mali, na Guiné, no Burkina Faso e no Níger?

René Naba: Como epílogo de um impasse de dois meses, a França cedeu finalmente, sob coacção, às exigências do Níger e decidiu retirar o seu embaixador Sylvain Itté e os 1500 soldados franceses estacionados no país.

Para dissimular esta grande desilusão diplomática e militar, o Presidente Emmanuel Macron fez o anúncio em 24 de Setembro de 2023, no final de uma semana de intensa actividade diplomática marcada pela dupla visita do Rei Carlos III a França e do Papa Francisco a Marselha.

Mais uma vez numa tentativa de ocultar o seu último revés diplomático, a retirada dos primeiros destacamentos franceses do Níger ocorreu na sequência da ofensiva palestiniana contra Israel, em 7 de Outubro de 2023, no momento em que os meios de comunicação social fervilhavam com o golpe de martelo desferido contra Israel pelo Hamas, o grupo paramilitar islâmico palestiniano baseado em Gaza.

Porquê esta reviravolta? Muito simplesmente porque o Níger e o Gabão foram Verões assassinos para a França e assinalaram o fim da presença francesa em África em 2023. O bate-boca da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental), alimentado pelas batidas de queixo de Júpiter de França, parece ter esmorecido, sem dúvida devido à deserção do aliado americano e às fracas capacidades tanto da antiga metrópole como deste agrupamento económico africano díspar.

O edifício estava degradado e rachado. A relação franco-africana estava a consumir-se, lenta mas seguramente, mas os políticos e jornalistas franceses olhavam para o outro lado. Ou melhor, gargarejavam com palavras bonitas enquanto admiravam o seu umbigo. No caso particular do Níger, este novo avatar francês em África levanta questões sobre as capacidades dos serviços secretos franceses, já de si sobrecarregados pelo fracasso no Mali.

Exactamente dez anos após o lançamento da operação Serval no Mali, o exército francês foi expulso de todos os países onde foi destacado para combater as insurreições jihadistas.

No Mali, depois no Burkina Faso e agora no Níger, os oficiais derrubaram presidentes eleitos, mobilizando uma retórica soberanista e explorando o ressentimento contra a antiga potência colonial.

A 16 de Setembro de 2023, os governos de transição do Mali, do Burkina Faso e do Níger assinaram uma carta que estabelece uma aliança defensiva, a "Aliança dos Estados do Sahel" (AES), prelúdio do que poderia constituir uma "Frente de Recusa" anti-ocidental na África francófona. Os três países propõem-se criar uma "confederação", um antídoto para a balcanização do continente africano.

O efeito retardado de uma descolonização formal, espartilhada pela antiga potência colonial através de dois instrumentos corrosivos - a Françafrique e o CFA francês -, a passagem para o campo anti-francês da maior parte da África Ocidental Francesa (AOF) - a famosa quadratura - põe em causa a postura internacional da França, na medida em que este descalabro levanta a questão de saber se a França deve continuar a ser membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, quando um continente inteiro, África, não tem nenhum.

A Índia também não, um Estado continental, a maior potência demográfica do mundo, com uma população 20 vezes superior à da França, e, além disso, uma potência atómica e a 4ª potência económica, suplantando a França na hierarquia das potências, tanto económica como militarmente. Pior ainda: a retirada da França do Níger, dois anos após a saída dos americanos do Afeganistão, reflecte um recuo ocidental não só militar mas também político e diplomático.

Sem paralelo desde há seis séculos, as novas gerações de africanos, em particular as da década de 2010 e seguintes, nasceram em países africanos independentes num continente independente, nada condicionadas pelas relações seculares de servidão colonial dos seus antepassados e, no caso da África francófona, pelo espartilho da Françafrique e pelo nazismo monetário do franco CFA, totalmente empenhadas no protesto.

O Ocidente, e a Europa em particular, têm sido demasiado lentos a mudar de software na sua abordagem a um continente que, há menos de uma década, o Presidente francês Nicolas Sarkozy afirmava peremptoriamente que "ainda não tinha entrado nos livros de história".  Cinquenta por cento (50) dos falantes de francês vivem em África, com uma projecção de 85% até 2060. O suficiente para manter a sua antiga potência colonial e os seus aliados ocidentais em alerta.

Desiludida com o golpe do Níger, a França, ansiosa por manter o seu lugar entre as grandes potências, convidou-se para a cimeira dos BRICS em Joanesburgo, no final de Agosto de 2023, para ser rejeitada, sinal do seu declínio progressivo tanto em África como na hierarquia mundial das potências.

As divergências entre os Estados Unidos e a França sobre o Níger.

A tergiversação da CEDEAO sobre a oportunidade de uma intervenção militar no Níger para restabelecer a ordem constitucional, sem mandato da ONU, reflectia de facto as divergências entre a França e os Estados Unidos, recém-chegados a esta antiga reserva francesa.

No entanto, a 16 de Março de 2024, o Níger denunciou o acordo de cooperação militar assinado com Washington em 2012, afirmando que a presença americana era "ilegal". A bofetada dada a Washington pela junta no poder em Niamey marca uma verdadeira inversão de aliança, com o Níger a tornar-se aliado de Moscovo. Com o Níger, a Rússia tem agora, juntamente com a República Centro-Africana, o Mali, o Burkina Faso, o Níger e o Sudão, para não falar das zonas do leste da Líbia controladas pelo seu aliado marechal Haftar, uma nova base num país de emigração e, além disso, um Estado central.  O primeiro contingente russo do Corpo de África desembarcou em Niamey a 12 de Abril de 2024, assinalando a nova cooperação russa com o Níger.

A saída das tropas americanas do Níger, exigida pela junta militar no poder, confirma uma tendência importante para a expulsão dos ocidentais, que estão a ocupar o seu lugar no Sahel.

Em Agadez, a maior cidade do norte do Níger, os Estados Unidos tinham uma base de drones, a Base Aérea 201, que funciona como o centro do exército americano para o Sahel, um ponto-chave nos seus esforços para fornecer informações, vigilância e segurança aos ocidentais em todo o Norte e Oeste de África. Como epílogo da valsa da hesitação, a CEDEAO sofreu um grande revés com a recusa da União Africana em apoiar a intervenção militar no Níger.

Para os estrategas ocidentais, o Níger parecia ser a nova linha de defesa do Ocidente no Sahel, onde as tropas francesas complementam a base aérea americana. A Base Aérea 201 está equipada com uma série de drones, incluindo os temidos MQ-9 Reapers, e está protegida por vedações, barreiras, torres de vigia e cães de combate.

O espantalho russo

O espantalho russo brandido pela propaganda ocidental é um falso pretexto destinado a esconder o facto de que a maior parte dos golpistas foram formados em academias militares ocidentais ou tinham ligações com os exércitos da NATO: A França, é verdade, não é a única culpada.

Para além da União Europeia, os Estados Unidos, por exemplo, treinaram os militares que tomaram o poder no Mali (Amadou Haya Sanogo em 2012 e Assimi Goïta em 2021), na Guiné (Mamadi Doumbouya em 2021) e no Burkina Faso (Paul-Henri Damiba e Ibrahim Traoré em 2022). Em Bamako, Assimi Goïta e Lassine Togola, comandante interino do batalhão autónomo de forças especiais, recentemente sancionado por Washington, participaram no exercício Flintock em 2019 e 2020, que os americanos organizam todos os anos para reforçar as capacidades operacionais e anti-terroristas dos seus aliados em África.

Coincidindo com a cimeira Rússia-África em São Petersburgo, no final de Julho de 2023, e apenas um mês antes da cimeira dos BRICS em Joanesburgo, no final de Agosto, o golpe de estado no Níger deixou os países ocidentais extremamente nervosos, pois temiam que a quadratura francesa em África se inclinasse para o campo hostil aos antigos colonizadores ocidentais. Mas o golpe de Estado no Gabão, um mês mais tarde, em Agosto de 2023, ao pôr fim a 56 anos de poder do clã Bongo, deu o golpe de misericórdia a qualquer indício de intervenção militar da CEDEAO no Níger, ao mesmo tempo que fez soar o toque de morte da presença francesa em África.

Incoerência francesa: O caso da família Deby no Chade e da família Bongo no Gabão.

A presença de Emmanuel Macron no funeral de Idriss Déby Itno, no Chade, em 2021, sentado ao lado do seu filho e sucessor, o general Mahamat Idriss Déby, foi entendida pela opinião pública africana como um aval a uma transição familiar à margem de qualquer legalidade constitucional.

Por outro lado, a França mostrou-se inflexível perante as juntas do Mali, do Burkina Faso e, mais recentemente, do Níger, recusando-se a reconhecer as novas autoridades militares destes países, segundo um relatório parlamentar francês sobre os reveses da França em África.

Segundo os autores do relatório, os deputados Bruno Fuchs (Mouvement Démocrate-Modem) e Michèle Tabarot (Les Républicains-LR), esta atitude torna a doutrina francesa ilegível. "Se não pusermos fim a esta política de dois pesos e duas medidas, continuaremos a alimentar o cepticismo e a rejeição, e a alimentar a fantasia de uma agenda francesa oculta", observam.

§  Sobre este tema: https://www.lemonde.fr/afrique/article/2023/11/08/le-rapport-sans-concessions-de-parlementaires-francais-sur-la-politique-de-paris-en-afrique_6198946_3212.html

O Gabão foi outro belo exemplo da incoerência francesa: Os Bongos, por exemplo, governam o Gabão desde 1967, um Estado que alberga uma parte da máfia da Córsega e onde a companhia petrolífera francesa Total explora jazidas preciosas desde o início do século XX (o grupo está também presente em 40 outros países africanos). Quanto às numerosas escapadelas da família Bongo, foram sempre toleradas pelos governos franceses, enquanto os presidentes democraticamente eleitos eram chamados à ordem em nome da luta contra a corrupção: o sistema de dois pesos e duas medidas teve efeitos catastróficos em África.

Oitenta e uma (81) empresas francesas estão presentes no Gabão, sendo a mais estratégica a ERAMET, que extrai, transforma e exporta manganês. Este mineral é uma das vinte e três matérias-primas críticas identificadas pela Comissão Europeia. Durante muito tempo símbolo da "Françafrique", o Gabão não tem o peso económico da sua reputação política.

Os próximos países africanos a cair nas mãos das respectivas forças armadas poderão ser o Benim e o Togo, dois países cada vez mais afectados pelo terrorismo, bem como o Congo Brazzaville, onde Denis Sassou Nguessou está no poder há 20 anos, e os Camarões, liderados por Paul Biya há 41 anos.

A má gestão, a corrupção, o nepotismo, a incapacidade de controlar os problemas e os perigos e a conivência ocidental com este laxismo foram ingredientes poderosos de uma situação explosiva, que levou os países africanos a apressarem-se em busca de uma solução autoritária para os problemas que se arrastam em África, tendo como pano de fundo um pesado passado colonial que ainda não foi expurgado.

Sobre este tema: https://www.renenaba.com/loffre-de-service-de-lafrique-au-reste-du-monde/


Fonte: Niger 1/2 : Un an après le coup d’État du 26 juillet 2023 – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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