16 de Maio de
2023 Robert Bibeau
Classes médias, classes executivas? Entrevista com
Alain Bihr
Terça-feira 18 Outubro 2022 / DE : ALAIN BIHR, ANTONIO DELFINI. Fonte: Classes médias, classes executivas? Entrevista com Alain (...) – Premir à esquerda! Uma tribuna livre para a esquerda quebequense em movimento (pressegauche.org)
Nesta entrevista a Antonio Delfini, realizada a 11 de Março de 2022, Alain Bihr faz uma retrospectiva da sua trajectória intelectual, marcada em particular pela figura de Henri Lefebvre, e das razões que o levaram a interessar-se pelas classes médias. Esclarece o contexto em que nasceu a sua teorização do "quadro capitalista", as suas implicações políticas e as possíveis extensões da sua obra[1].
A questão das classes médias é um paradoxo. Se a classe média é
regularmente invocada nos discursos políticos de esquerda e de direita, se dois
terços dos franceses se consideram parte dela e se é a única versão do conceito
de classe social ainda tolerada no debate público, ela foi - e continua a ser,
em muitos aspectos - um ponto cego do marxismo e do pensamento revolucionário.
Extraído do sítio Web da revista Contretemps.
Uma rara excepção à regra, Alain Bihr publicou, em 1989, Entre burguesia e proletariado.
L'encadrement capitaliste, no qual defende a tese de que "a
estrutura de classes das formações sociais capitalistas opõe não duas, mas três
classes fundamentais". Um quadro teórico marxista heterodoxo que será
aprofundado em duas jornadas de estudo, dias 6 e 7 de Abril de
2023, na Universidade de Lille.
Nesta entrevista a Antonio Delfini, realizada a 11 de Março de 2022, Alain Bihr faz uma retrospectiva da sua trajectória intelectual, marcada em particular pela figura de Henri Lefebvre, e das razões que o levaram a interessar-se pelas classes médias. Esclarece o contexto em que nasceu a sua teorização do "quadro capitalista", as suas implicações políticas e as possíveis extensões da sua obra[1].
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Antonio Delfini (AD): Desde o início dos
anos 2000, escreveu vários livros sobre intervenção e teoria marxista. Nos
últimos anos, publicou muitos livros, incluindo um um um volume
múltiplo sobre a
"primeira idade do capitalismo". Mas encontramo-lo hoje para falar de
um livro escrito há quase quarenta anos e que corresponde a uma fase anterior
da sua trajectória intelectual: Entre burguesia
e proletariado. L'encadrement capitaliste, publicado pela
L'Harmattan em 1989. Sem entrar directamente no assunto, poderia começar por
explicar as razões biográficas que o levaram a abordar o papel das
"classes médias"?
Alain Bihr (AB): Podemos identificar duas razões: uma pessoal e outra mais política. Eu próprio sou uma transferência de classe. A dedicatória do livro não vos deve ter escapado. Dedico-o aos "meus pais e à minha infância operária, que me ensinaram, mesmo antes de eu compreender as razões, a distância que separa a condição proletária da de um membro da direcção". Nascido em 1950, fui um dos poucos elementos da primeira geração de filhos da classe operária que puderam aceder ao ensino secundário e superior graças à "democratização" do ensino. É evidente que, nessa altura, eu tinha consciência de que estava a mudar o mundo. Tenho consciência disso sob a forma de uma perda, ou seja, estou a afastar-me dos meus pais: o meu pai tinha trabalhado em vários empregos na construção civil e terminou a sua carreira profissional como estucador em Basileia. A minha mãe tinha-se formado como operária da seda, profissão que cedo abandonou pelo serviço doméstico, e só a conheci como empregada de limpeza em famílias abastadas. Mas, acima de tudo, perdi todos os meus amigos. Aos 14-15 anos, todos os meus amigos de infância estavam a trabalhar e eu não: ainda estava a estudar. Isso não me impedia de estar com eles, mas via que não era a mesma coisa. Experimentei a quebra da barreira das classes.
Mas este livro faz também parte de uma trajectória pessoal marcada desde o início por dois elementos: Maio de 68 e o encontro com um professor de filosofia no liceu que teve uma influência decisiva na minha evolução intelectual. Ele apresentou-me imediatamente a tradição marxista alemã: Ernst Bloch, Georg Lukàcs, a Escola de Frankfurt... e Henri Lefebvre. Dizia-me: "Em França esquece-se tudo: o marxismo é uma merda, excepto Henri Lefebvre". Ele praticava um marxismo heterodoxo porque era ao mesmo tempo muito aberto ao anarquismo. Pôs-me nas mãos simultaneamente o "Que sais-je?" sobre o marxismo de Henri Lefebvre e a Revolução Desconhecida de Voline, na edição original de 1946. Portanto, foram as minhas duas garrafas, diria eu [risos]. Depois do último ano do liceu, comecei a ler Lefebvre intensivamente com um amigo, Jean-Marie Heinrich, que tinha o mesmo professor de filosofia. Depois do bacharelato, estudei filosofia na Universidade de Estrasburgo e dediquei a minha tese de mestrado à crítica marxista, à superação da filosofia a partir da obra de Henri Lefebvre, que se chama Métaphilosophie[2].
2] A partir do momento em que partimos da constatação de que a filosofia é um género que já não pode ser praticado no nosso mundo, que está esgotado ou que só pode ser repetido de forma estéril ou confinado à história da filosofia - o que eu compreendi quando estudei filosofia, que consistia essencialmente em fazer a história da filosofia -, então o que fazer com este património? Porque há um património, então somos obrigados e não podemos esquecê-lo. E ali, Henri Lefebvre pôde mostrar como há em Marx, o jovem Marx, um novo problema possível: o da superação da filosofia, que é também a sua realização, tarefa que o jovem Marx atribui à revolução proletária.
AD: Henri Lefebvre teve, portanto, uma influência importante no tipo de trabalho de ciências humanas e sociais que você faz.
AB: Sem dúvida. A nível pessoal,
Jean-Marie e eu encontrámo-lo pela primeira vez em 1975, durante uma das suas
conferências em Estrasburgo. Tornámo-nos rapidamente amigos e ficámos muito
próximos dele: fomos visitá-lo várias vezes à rue Rambuteau, em Paris, e à sua
casa natal em Navarrenx, na região do Béarn, até 1979. Nessa altura, conheceu
Catherine Régulier, aliás uma pessoa encantadora, mas no rasto de Catherine
havia toda uma série de pessoas ligadas ao PCF; e o PCF não era bem a nossa
praia com Jean-Marie... Por isso continuámos a vê-lo, mas com menos
assiduidade. Lefebvre deixou o PCF no final dos anos 50. Tinha sido suspenso -
o que, segundo ele, nem sequer existia nos estatutos do partido - e foi ele que
saiu em 1958. Mas o partido permaneceu como um amor desfeito, com o qual se
reencontrou parcialmente nessa altura.
A nível intelectual, a sua influência no meu trabalho foi muito importante. Desde o início, a minha investigação tinha esta característica, tal como a de Lefebvre, de ser inclassificável. Em filosofia, diziam-me: "Isto não é filosofia". Na sociologia, diziam-me: "Isto não é sociologia". Mas não me importava porque, no início, não tinha qualquer ambição por uma carreira académica. Sei que o que faço não é sociologia, nunca tive a pretensão de estar a fazer sociologia. O segundo artigo que escrevi, que foi publicado em 1977 em L'homme et la société, chama-se "Essai sur le concept de théorie sociale". Nele defino com muita precisão o tipo de esforço intelectual que faço: praticar a teoria social. E mostro a relação crítica que ela tem com todas as ciências sociais, incluindo a sociologia. Continuo a reconhecer-me absolutamente nesta abordagem. Portanto, se tivesse de me definir, fá-lo-ia em termos lefebvrianos: estou numa trajectória metafilosófica. É ainda a filosofia que constitui a minha formação inicial, só que estou num empreendimento de ir além da filosofia, que procura integrar todas as contribuições das ciências sociais.
AD: O livro sobre a classe executiva é precedido por um primeiro livro, escrito com Jean-Marie Heinrich, intitulado Neodemocracia social ou capitalismo autogerido[3]. Esses dois livros parecem fazer parte do mesmo impulso de pesquisa. Você pode explicar o que os conecta?
AB: Quando escrevemos A Neo-Democracia
Social... no final dos anos 70, o contexto era o seguinte: dez anos após a vaga
de Maio de 68, apercebemo-nos de que havia um retrocesso. Todas as esperanças
revolucionárias, que eram também as nossas, foram enterradas. Entretanto,
vivemos a entrada numa crise estrutural do capitalismo, e vemos que não se
trata apenas de uma pequena depressão: dura, os planos de recuperação falham, o
desemprego aumenta, há um segundo choque petrolífero, etc. Vemos que o contexto
está a mudar. Neste fluxo e refluxo do movimento de contestação, vemos aparecer
dois fenómenos: em primeiro lugar, os "novos filósofos". Trata-se de
uma questão puramente mediática, mas perguntamo-nos o que significa. O que
significa a audiência destas pessoas histriónicas? Na altura, escrevi um artigo
inflamado sobre André Glucksmann na NON! (uma revista publicada pelo CERES, a
ala esquerda do PS na altura) intitulado "Le goulag Circus" (O Circo
do Gulag) para mostrar que toda esta moda é um circo, não se sustenta um único
momento.
Perguntamo-nos, então: como é que estas pessoas têm eco junto dos antigos soixante-huitards (sessenta-oitistas , do Maio de 68 – NdT)? Como e porquê passamos do culto de Mao-Zedong para Solzhenitsyn? Vemos um grande número de reviravoltas à nossa volta e podemos sentir que não se trata apenas de indivíduos isolados, mas de um fenómeno que se instala a nível nacional (e mesmo internacional). O aparecimento dos novos filósofos é, pois, uma primeira fonte de interrogação. A segunda é a mutação desta esquerda revolucionária e autogestionária, na qual nos identificávamos como anarquistas - Jean-Marie e eu passámos pelo PSU no final dos anos 60 -, numa segunda esquerda que se juntou à social-democracia. Perguntamo-nos como é possível este fenómeno de recomposição de uma parte da esquerda e como se enquadra na crise geral em que o capitalismo está a entrar neste momento. É isso que nos vai levar a identificar o que começamos a ver como um possível sujeito sócio-político, que na altura ainda se chamava "nova pequena-burguesia". Mas este termo incomoda-me imediatamente, e voltarei a ele.
AD: Qual é a sua intenção quando começar a escrever o seu livro sobre enquadramento?
AB: Com Jean-Marie Heinrich, após a
publicação de A democracia neo-social..., prosseguimos com o projecto de fazer
uma crítica das críticas contemporâneas ao marxismo. Este projecto devia
incluir um capítulo sobre as pessoas e os grupos que desenvolveram estas críticas
e aqueles que as receberam. O "quem" em questão é, mais uma vez, esta
"nova pequena burguesia". O projecto de livro nunca chegou a ser
concretizado, mas eu era o responsável pelo capítulo que deveria trabalhar
nesse sentido. O livro sobre a classe dirigente resulta, portanto, da
autonomização deste capítulo. Quanto mais trabalhava nele, mais identificava
este objecto como uma classe social específica, um puro produto das relações de
produção capitalistas e da sua reprodução.
Foi também nesta altura que surgiu o tema dos "novos movimentos sociais", erigidos por Alain Touraine - um autor que sempre me caiu literalmente nas mãos - e pela sua escola como actores principais da "sociedade pós-industrial", destinados a suplantar um movimento operário em declínio. Mais uma vez, coloca-se a questão de saber quem são estes novos actores sociais, de um ponto de vista sociológico. As raras análises da sua composição sociológica - estou a pensar, em particular, nos inquéritos de Dominique Mehl - convergiam em apontar a predominância numérica e a hegemonia política, no seu seio, daquilo a que se chamava então a "nova camada média" ou "camada média assalariada". Um vasto grupo de contornos pouco nítidos, que engloba empregados, técnicos, engenheiros, quadros médios e superiores da administração, professores, que o desenvolvimento do capitalismo ocidental tinha inflacionado durante a sua fase fordista sem conseguir assegurar - nomeadamente em França - um papel político proporcional ao seu peso social crescente. Mas não podia contentar-me com esta abordagem sociológica puramente descritiva e relativamente conjuntural; tanto mais que servia - entre os tourainenses, por exemplo - de pretexto para esbater ou mesmo dissolver as relações e as lutas de classes tradicionais.
O objectivo deste livro era, portanto, demonstrar que, com base nas relações de produção capitalistas e no seu processo mundial de reprodução, não são geradas duas mas três classes fundamentais por essas relações e pela divisão social do trabalho daí resultante: entre a burguesia e o proletariado, surge uma terceira classe, o quadro capitalista, tão distinta das duas últimas como entre si, composta por todos os agentes subalternos da reprodução do capital, os agentes dominados da dominação do capital. Esta demonstração levou necessariamente a conferir a esta terceira classe uma autonomia no seio da luta de classes e a questionar o seu papel na história social e política do capitalismo. Esta última constatação não podia deixar de encontrar um eco em França após a vitória nas eleições presidenciais do Partido Socialista. A tese que defendíamos então era a de que essa força que acabara de chegar ao poder tinha como base social boa parte da classe executiva.
AD: Entendemos o carácter subversivo de tal tese para a esquerda social-democrata não – ou mesmo anti-– marxista da época, politicamente encarnada pelo Partido Socialista. Mas o destaque dessa terceira classe também é carregado de consequências para a própria teoria marxista...
AB: De facto. Com efeito, na época, o
marxismo não era muito menos curto sobre o assunto, quer não reconhecendo estes
estratos como pertencendo a uma classe de pleno direito - o que equivalia a
comprometer o próprio conceito de classe - quer fazendo deles - como Baudelot,
Establet e Malemort, por um lado, e Poulantzas, por outro - uma fracção da
pequena burguesia, à custa de desvios óbvios dos princípios marxistas da
análise das relações de classe. Foi, portanto, necessário começar a análise
destes estratos sociais a partir do zero, para ver que o seu aparecimento e
desenvolvimento não se enquadram na tese marxista de uma bipolarização
progressiva da estrutura de classes, laminando as antigas classes médias, que
eram o campesinato e a pequena burguesia.
Deste ponto de vista, o termo "pequena burguesia" proposto por outros autores marxistas sobre a questão colocava-me um problema directo, porque o que eles identificavam sob este conceito era uma formação própria do capitalismo e não a simples sobrevivência, no capitalismo, de uma formação pré-existente. A pequena burguesia já existia enquanto tal na Antiguidade e durante a Idade Média, e acompanhou toda a transição do feudalismo para o capitalismo. É parcialmente destruída pelo desenvolvimento do capitalismo, mas ao mesmo tempo é constantemente reproduzida por ele. Não se trata, em rigor, de algo especificamente capitalista. Ao passo que me parece que aquilo de que estamos a falar, a estrutura capitalista, é uma formação específica do capitalismo, é um produto puro do capitalismo. Este é o argumento central da minha discordância com pessoas como Poulantzas, que falava da "nova pequena burguesia", ou Jean-Pierre Garnier, que falava da "pequena burguesia intelectual": trata-se de não utilizar um conceito que identifica e permite analisar algo que existia antes do capitalismo e que é um puro produto das relações de produção capitalistas e da sua reprodução. Mas é uma tese que permanece completamente herética, ainda inaudível de um ponto de vista marxista, quando todo o meu esforço consistiu precisamente em fornecer uma base marxista para esta tese.
AD: Além da construção teórica do conceito, você também o utiliza para fins de análise política em outros textos.
AB: Quer se trate do meu livro sobre a
crise do movimento operário[4], do livro sobre a Frente Nacional[5], ou de toda
uma série de artigos, entre os quais um grande artigo escrito em 2008 por
ocasião do quadragésimo aniversário do Maio de 68, publicado no site A
l'encontre[6], onde analiso a transformação das relações de classe, incluindo
as suas dimensões políticas e ideológicas, atribuo sempre à classe dirigente o
lugar que lhe cabe. O meu último texto sobre este assunto apareceu (também no site
A l'encontre[7]) na altura da vitória de Macron. Tentei mostrar como o aumento
da força dos quadros, por um lado, e o enfraquecimento do proletariado, por
outro, desestabilizaram completamente as forças de esquerda, num contexto de
transnacionalização que, além disso, também desestabilizou as forças de
direita. Como resultado, a hegemonia burguesa nunca conseguiu, desde o início
dos anos 80, reconstituir uma fórmula coerente e consistente, o que resultou
num fenómeno de alternância constante entre forças de direita e forças de
esquerda. E Macron, talvez, fosse finalmente permitir a estabilização.
Eu estava a tentar
mostrar, e nisso concordo com Gérard Duménil e Dominique Lévy,
que este novo bloco hegemónico se basearia numa aliança privilegiada entre
elementos - digo elementos em termos neutros porque não sei se devem ser
analisados em termos de camadas ou de fracções - uma aliança entre os elementos
transnacionalizados do capital e os elementos superiores do quadro, tanto
público como privado. Basicamente, a ideia que defendi no livro sobre o quadro
- nomeadamente que a história social e política francesa tinha sido
caracterizada até então por uma divisão do quadro entre uma fracção pública e
uma fracção privada - esta divisão, na minha opinião, desvaneceu-se
parcialmente e foi substituída por uma divisão entre as suas camadas superiores
e inferiores, com tensões dentro das camadas intermédias. As políticas
neoliberais permitiram a promoção dos estratos superiores, enfraqueceram
seriamente os estratos inferiores da direcção, ameaçando-os com a
proletarização, e colocaram assim os estratos intermédios sob tensão, presos
entre os dois tropismos.
AD: Na época, o livro não encontrou o seu público. Por que é que acha que isso aconteceu?
AB: O que fez com que o livro fosse um
fracasso - e um fracasso mesmo antes de ser publicado, uma vez que acabei de o
escrever em 1983 e só foi publicado pela L'Harmattan em 1989, porque não
consegui encontrar outro editor - foi em parte o resultado do contexto muito
particular dos anos 1980. Por um lado, em França, era a esquerda que estava no
poder e uma esquerda que desiludia toda a gente. Quando enviei o manuscrito
para La Découverte, disseram-me - guardei a carta de resposta de François Gèze
- que nunca publicariam um livro como este, porque era inútil para a
esquerda... É espantoso ver um editor de esquerda dar uma resposta destas, não
é? Nem sequer olham para o valor intrínseco do texto... E o segundo elemento é
que estamos em plena fase de descrédito do marxismo. Não viveu esse período,
mas dizer-se marxista em França, nos anos 80, era certamente ser tratado como
um pária. E isso durou até ao final da década de 1990. Quando Roland
Pfefferkorn, um amigo e colega, e eu começámos a trabalhar sobre as
desigualdades no início dos anos 90, éramos olhados como se fôssemos
esquerdistas retardados, quando bastava olhar à nossa volta para ver como se
tinha tornado óbvio que estávamos numa fase de agravamento das desigualdades.
Tornou-se inconcebível interessarmo-nos por estas questões. Por isso, acho que
o livro não podia ter saído numa altura pior do que esta. E por isso vai passar
despercebido. Foi uma grande surpresa ver, recentemente, que várias obras,
incluindo a sua e outro livro[8], se baseiam na conceptualização do quadro. Há
caminhos subterrâneos como esse.
AD: Tendo utilizado o conceito de classe executiva (e supervisora – NdT) na minha tese, fui alvo de observações sobre as suas delimitações, o seu peso considerado muito impositivo na estrutura social e as diferenças internas em termos de condições materiais de existência. O que é que diz àqueles que criticam o carácter excessivamente inclusivo dessa classe?
AB: Tanto quanto sei, todas as
objecções contra o conceito de classe dirigente - lembro-me de as ter enumerado
- são válidas contra o conceito de classe em geral, mas não especificamente
contra o conceito de classe dirigente. Isto é particularmente verdade no que
respeita ao argumento da diversidade dos grupos sociais reunidos por detrás
deste conceito. No seio da burguesia, qual é a relação entre o pequeno patrão
que tem quatro ou cinco trabalhadores e que trabalha quase tanto como eles e o
tipo que dirige uma empresa transnacional? Da mesma forma, há uma aristocracia
operária que não tem nada a ver com as camadas do lazareto, como dizia Marx, do
subproletariado. Porque o subproletariado continua a ser uma parte do
proletariado! Tive a oportunidade de conhecer trabalhadores altamente
qualificados que ganhavam o triplo do meu salário de professor universitário,
mas que ainda assim continuavam a ser operários! Estas situações existem, mas
não põem em causa o conceito de classe social. É aqui que vemos o quanto a análise
em termos de classe social depende de um paradigma teórico baseado no conceito
de relações sociais, enquanto estas objecções se baseiam num paradigma
individualista, que toma o indivíduo e as suas relações sociais como o sujeito
central. Raciocinar ao nível das classes é estar a um nível totalmente
diferente.
AD: A nossa posição de pesquisadores bastante experientes em métodos qualitativos (por entrevistas e observações) ainda nos estimula a estar atentos às diferenças – até mesmo conflitos – entre fracções dessa classe executiva. O que é que teria em mente em termos de um programa de pesquisa para avançar nessa direção?
AB: Ao escrever este livro sobre o
enquadramento, pensei que tinha estabelecido algo sólido, mas que devia ser um
ponto de partida. Não considerei que tivesse dito tudo, de longe, sobre a
classe dos quadros executivos. Era uma forma de dizer que devíamos ter isto em
conta, começar por aí. Se alargássemos este trabalho na direcção que traçámos,
uma das ambições poderia ser a de analisar as transformações das diferentes
fracções internas desta classe sob o peso das suas determinações gerais.
Em Entre o Proletariado e a Burguesia..., distingui três interesses gerais da classe dirigente: a modernização, ou seja, a transformação capitalista do mundo, a racionalização e a democratização. A classe dirigente é, por definição, portadora de racionalidade, as suas funções dirigentes são funções de racionalização no sentido weberiano do termo - racionalidade instrumental e racionalidade ético-política. E, obviamente, as formas que essa racionalização assumirá são extremamente diferenciadas de acordo com os estratos ou, ainda mais precisamente, com as categorias dentro da classe. Não assumirá necessariamente a mesma forma num professor e num engenheiro, num técnico ou num assistente social. Ou num burocrata político-sindical - e digo isto sem qualquer conotação negativa. Em todo o caso, podemos mostrar como as suas práticas profissionais e as suas concepções do mundo se enquadram nesta categoria. Nunca o fiz, mas se tivesse de fazer este tipo de trabalho, seria assim que procederia: tentar mostrar como as determinações gerais são declinadas e, ao mesmo tempo, como essas determinações são construídas e transformadas historicamente.
***
Ilustração: "Amarelo, vermelho, azul", Vasily Kandinsky, 1925
Anotações
[1] Muito obrigado a Matthieu Adam por ter aproveitado a oportunidade de ir
a Estrasburgo, pelos meios técnicos e pela participação perspicaz na condução
desta entrevista.
[2] Métaphilosophie, Paris, Editions de Minuit, 1965. O livro foi republicado pela Syllepse em
2000 com prefácio de Georges Labica.
[3] La néo-social-démocratie ou le capitalism
autogestion, Paris, Le Sycomore, 1980. O livro foi republicado online com um
importante prefácio pelo site "Les classiques des sciences sociales"
da UQAC.
[4] Do Grand Soir para a alternativa. Le
mouvement ouvrier européen en crise, Paris, éd. Ouvrières (éd. de l'Atelier),
1991.
[5] O espectro da extrema-direita. Les Français dans
le miroir du Front national, Paris, Éditions de l'Atelier, 1998.
[6] "Maio-Junho
de 1968 em França: epicentro de uma crise de hegemonia". Apenas a primeira parte ainda está acessível.
[7] "O momento Macron", 4
de Julho de 2017.
[8] O de Bruno Astarian e Robert Ferro, Le
ménage à trois de la lutte des classes. Classe moyenne salariée, proletariado e capital,
Paris, L'Asymmétrie, 2019.
Fonte: Classes moyennes ou classes d’encadrement ? – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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