YSENGRIMUS
— Dori é um francês de origem martinicana que se mudou recentemente
para o Quebeque e trabalha para uma organização internacional (fictícia) cujo
objectivo é a valorização e a promoção da língua francesa no mundo. Crioulo e
francófono, Dori estabelece rapidamente uma ligação metódica com os seus
colegas do mundo académico e com os indivíduos locais, na nebulosa
afro-canadiana da metrópole quebequense. Assume serenamente o seu papel de
arauto da língua francesa, em todo o mundo francófono e sobretudo no Canadá.
Estamos a evoluir aqui, num pequeno universo sócio-histórico imperceptivelmente
deslocado, no quadro de uma curta utopia. Ou seja, os acontecimentos relatados
neste romance têm lugar em 2040, isto é, num futuro jornalisticamente distante
mas historicamente próximo. Tudo é, portanto, muito semelhante à situação
actual, mas há ainda um certo número de pequenas diferenças que se vão
instalando na nossa consciência à medida que a história se desenrola. Este é um
romance de antecipação, no sentido literal do termo. É a utopia em trajes
comuns. E esta utopia subtilmente ucrónica (ou ucronia insidiosamente utópica)
configura as coisas e as pessoas de tal forma que o autor tem margem de manobra
suficiente para proceder à disseminação silenciosa das ideias que propõe.
Nesta época e neste mundo, para admitir tudo sem nos comprometermos,
verificamos que, na disposição ordinária e extraordinária das coisas, a língua
inglesa ocupa realmente muito espaço no Quebeque, especialmente em Montreal.
Mas a ideia principal aqui apresentada, da forma mais explícita, é
inquestionavelmente a promoção do facto francês e do facto francófono. Deste
ponto de vista, os quebequenses aparecem como um povo ternamente apático, que
viu as suas antigas aspirações nacionais desvanecerem-se e dissolverem-se
lentamente, e que voltou a permitir que a língua e as práticas conceptuais do
ocupante colonial se infiltrassem nos interstícios da sua vida quotidiana.
Parece estar prestes a ocorrer uma mudança de direcção afrancesada e
francófila. Para isso, os vários protagonistas francófonos, que Dori acabará
por conhecer, ver-se-ão envolvidos numa série de actividades sociopolíticas que
os levarão, uma coisa à outra, a trabalhar nesta grande e complexa termiteira
que é a realidade bem estabelecida das relações interculturais, ou
multiculturais, ou pluriculturais no Canadá.
Esta obra assume abertamente o idealismo prospectivo dos seus pontos de
vista. No entanto, tem a característica crucial de ser um romance do mundo comum. Homens e mulheres encontram-se,
amam e militam nas condições mais prosaicas da vida urbana contemporânea. O
canadense não aprenderá muito sobre si mesmo, porque este livro é um espelho
claro e preciso do seu próprio mundinho. Por outro lado, também descobrimos
aqui um extraordinário
romance do mundo, para os leitores do resto do universo francófono. De facto, o exercício,
suavemente peculiar, para o qual Jean-Pierre Asselin de Beauville nos convida
consiste em grande parte em apresentar a realidade do Quebec e do Canadá ao leitor
do resto da Francofonia. Deste ponto de vista, este romance atinge
perfeitamente os seus objectivos. E tem o feliz efeito colateral de confrontar
os leitores canadianos e quebequenses com algumas facetas muito insólitas do
seu comportamento e da sua linguagem quotidianos. De facto, estamos a viver, às
escondidas, nada menos do que uma visita guiada à realidade quebequense, nos
seus pormenores mais vernáculos e íntimos. É uma visita guiada à realidade
quebequense, nos seus pormenores mais vernáculos e íntimos. E, pela forma como
os acontecimentos se desenrolam, parece que nos encontramos numa situação que,
sem produzir a atmosfera de um postal ou de um folheto turístico, nos permite
descobrir as emoções específicas e os diversos sobressaltos intelectuais
vividos por um observador exterior que nada e flutua na realidade quebequense e
que tem de montar, sempre às escondidas, um pequeno pacote de actividades
políticas e militantes com as suas consequências sociológicas não
negligenciáveis.
O estilo do livro é limpo, prosaico e simples. O tom é directo e bem
transmitido. Sem corar nem hesitar, é sobriamente explícito e discretamente
explicado. E o que, para o leitor canadiano, aparece em grande parte como uma
sucessão de truísmos e quase trivialidades, descobre-se na realidade como o
resultado da frescura e originalidade do ponto de vista do observador exterior,
que é sempre novo. Os diferentes protagonistas da história vão, portanto,
lançar um ataque à inércia canadiana, flácida e pastosa, na promoção da língua
francesa. A concretização da sua acção será estimulada por particularidades que
só têm lugar nos nossos imparáveis vizinhos do sul. O objectivo desta obra
compreende bem, e assim consegue fazer-nos compreender também, que uma parte
importante das realidades sociais no Canadá se desenrola a partir de um imenso
dínamo sócio-histórico exterior a ele. Os Estados Unidos. Assim, nos Estados
Unidos, acaba de chegar ao poder um chefe de Estado democrata (fictício) de
origem hispânica, o vivaz Presidente Hector Sanchez, que se insere numa
dinâmica em que pretende valorizar a língua espanhola, ao ponto de a tornar
mais do que um simples idioma veicular ou familiar. Tendo em conta a demografia
moderna, o novo governo americano quer agora que a língua espanhola se torne
nada mais nada menos do que uma das línguas oficiais dos Estados Unidos, com o
seu estatuto claramente inscrito na Constituição americana, etc. Isto cria uma
dinâmica sociolinguística renovada que gera um impulso muito forte a favor das
diferentes línguas latinas do continente. E, prontamente, isso é interpretado,
ao norte da fronteira, como uma oportunidade de promover a língua francesa. E,
na alegria inconfundível das utopias suaves, a mencionada língua francesa vem a
ser tão promovida, tão aprovada e tão apresentada, no contexto cuidadosamente
configurado desta fábula, que finalmente mudamos o nome Canadá para Quénada, de modo a fazer
sentir que agora é um país bilíngue francês-inglês. Nada é bonito demais. Ah,
caro realismo pastel da ficção, por que é que nos incomodariamos com o realismo
acinzentado das realidades reais?
Estamos aqui, abertamente, a meio caminho entre uma espécie de exercício de
planeamento linguístico imaginário e algo como um conto fantástico. Esta
apresentação fabulista termina com uma moralidade, na qual se pode sentir uma
espécie de ténue ironia a flutuar. O trabalho reflexivo situa-se aqui muito
mais ao nível do fantasmático do que do programático. Tudo parece tão
simples... e no entanto... Como se de repente, como se de passagem, tivéssemos
a oportunidade de observar o que muitos imigrantes e residentes permanentes
experimentam, no contexto canadiano... este belo, limpo, gentil, falsamente
inofensivo contexto canadiano, onde tudo parece tão agradável e tão
higienizado. De repente, sem mais nem menos... por terem militado por uma causa
que está, creio eu, muito abaixo dos limites minimamente extensíveis da
liberdade de expressão, alguns dos nossos imigrantes e estudantes com
autorização de residência começam a tremer como folhas em frente às suas caixas
de correio. Temem, de uma forma muito vulgar, ficar sujeitos a pressões
administrativas em consequência das opções militantes que fizeram na sua vida
social. De repente, apercebemo-nos de que, no caldeirão deste Canadá ensaboado
e amável, está a percolar uma outra realidade, mais moderada, mais delicada,
menos limpa, menos fácil, para as pessoas que não são canadianas nem
quebequenses. É-nos trazida com deferência e inteligibilidade de tom e de
facundidade... O tratamento é descontraído, claro, mas... De repente, sentimos
que tendem a acontecer coisas implacáveis, para personagens com o perfil
sociológico do narrador e o segmento sensível do seu grupo de pares.
Bem-vindos a este passeio silenciosamente etnológico, sociológico e
sócio-histórico por um Canadá e um Quebeque inesperados e incongruentes, que se
reflectem, sem o sabermos, na Órbita do Olho do Mundo. O que temos aqui é uma
obra surpreendentemente inter-relacionada. Tocante pela sua simplicidade, pelo
seu sentido do prosaico e pelo seu modo vulgar de virar a mesa e de transformar
subitamente o observador exterior num observador interior, isto é, numa
personagem cujo olhar nos prende pela sua candura e, ao mesmo tempo, pela
intensa profundidade da suave radicalidade que avança e promove. Sem concessões.
Fonte: IL ÉTAIT UNE FOIS… LE QUÉNADA (Jean-Pierre Asselin de Beauville) – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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