14 de Maio de 2023 Robert Bibeau
Por René. No enclave curdo do nordeste da Síria: uma zona sem lei sujeita à Lei da Selva. 1/4 – Madaniya
Este dossier em 4 partes é publicado por ocasião do 12º aniversário da guerra da Síria, quando, numa reviravolta incrível, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, um dos arquitectos da destruição da Síria, juntamente com o francês Nicolas Sarkozy e o emir deposto do Qatar, Hamad Ben Khalifa al Thani, procuram desesperadamente um encontro com o presidente sírio Bashar Al Assad, a fim de evitar um desastre eleitoral na consulta popular de Maio de 2023. Mas o Presidente sírio, escaldado e indiferente à sorte do seu vizinho turco, condicionou o encontro à retirada da Turquia de todo o nordeste da Síria, à cessação do apoio de Ancara aos grupos terroristas e a uma repartição equitativa dos recursos hídricos entre os dois países. De facto, o Presidente sírio recusa, no seu íntimo, imortalizar uma fotografia com o seu rival turco... para a galeria, uma operação PO-PR (photo opportunity and public relations), cara aos operadores turísticos, para servir de alavanca eleitoral. O mesmo se passa com a reintegração da Síria na Liga Árabe, que Damasco deseja levar a cabo nos seus próprios termos e não nos termos da organização pan-árabe ou das capitais árabes.
Longe vai o tempo em que o neo-sultão otomano prometia rezar, como conquistador, na mesquita omíada de Damasco, para festejar a queda do poder baathista... Longe vão também os arrotos periódicos do sonolento Laurent Fabius dos fóruns internacionais, sobre a queda iminente do presidente sírio.
Jogando com o efeito de surpresa, o presidente iraniano Ibrahim Raissi
visitou na sexta-feira a mesquita dos Omíadas, lugar alto do sunismo, na
companhia do presidente sírio Bashar Al Assad, num gesto que pretendia significar
a superação dos antagonismos sunitas xiitas que envenenam a vida regional desde
a implantação da República Islâmica Iraniana, há quase 40 anos, ao mesmo tempo
que selava, na ordem simbólica, a sua vitória comum na guerra da Síria.
Ao longo desta sequência de doze anos, o Presidente Bashar Al-Assad manteve-se obstinadamente fiel ao seu lema de que "o preço da rendição é infinitamente mais caro do que o preço da resistência". A história pode ter-lhe dado razão.
O objectivo dos americanos: transformar a Síria num pântano para atrapalhar
a Rússia.
Os Estados Unidos destinaram a quase totalidade da sua ajuda humanitária à Síria, atingida por um terramoto em Fevereiro de 2023, aos seus auxiliares curdos no nordeste do país, no escolho que criaram para prosseguir a sua política destinada a mudar o regime político de Damasco, o único país com o Líbano que não fez um pacto com Israel.
Segundo a doxa atlantista, esta política
inscreve-se numa geo-estratégia que visa manter a Síria fraca e dividida, a via
estratégica de abastecimento do Hezbollah libanês, a bête noire de Israel e dos
Estados Unidos.
Mas este ostracismo sobre um assunto
altamente humanitário - a catástrofe de uma população duplamente atingida por
uma guerra de dez anos e pelo terramoto (5.900 vítimas) - produziu, por efeito
inverso, um vasto movimento de solidariedade árabe, incluindo no seio de países
que eram resolutamente hostis à normalização com a Síria, nomeadamente a Tunísia,
um dos maiores exportadores de jihadistas terroristas sob o mandato de
Nahdhaouis (Moncef Marzouki-Rached Ghannouchi 2011-2014), assim como o Egipto,
que tinha decretado a jihad contra o seu antigo parceiro na guerra contra
Israel, sob o mandato do presidente islamista Mohamad Morsi (2012), e
finalmente a Arábia Saudita, país anfitrião da próxima cimeira árabe, desejosa
de secar o tráfico de captagon (a ‘droga dos jiadistas’ ou a ‘droga dos pobres’ - NdT) produzido na Síria ou que transita da Síria
para as petromonarquias. Segundo as estimativas mais geralmente aceites, o
tráfico ronda os 54 mil milhões de dólares por ano.
Numa indicação incontestável da vontade
americana de manter o bloqueio anti-sírio e impedir a reconciliação
inter-árabe, o Chefe do Estado-Maior Conjunto americano, Mark Milley, fez uma
visita surpresa à base de Tanaf, alvo regular de ataques de drones, no início
de Março de 2023.
Fundada em 2016, esta base americana
situada no deserto sírio, perto das fronteiras da Jordânia e do Iraque, foi
apresentada por Washington como destinada a combater os grupos terroristas
islamitas. Para além deste objectivo, esta base visa sobretudo bloquear a
fronteira entre os três países árabes vizinhos e consolidar o bloqueio
anti-sírio.
A visita do oficial americano foi
acompanhada pela consolidação das bases de apoio do exército americano no
nordeste da Síria, em Malikiya (província de Hassaké), Roumeylane, Himo, Kisra,
a cidade do desporto de Hassaké e Cheddadi, com o alargamento das pistas de
aterragem para aviões de carga. No contexto da guerra na Ucrânia, uma tensão
viva opõe americanos e russos nesta zona sensível, onde a força aérea russa
efectuou nada menos que 25 incursões em Março de 2023, no perímetro da base de
Tanaf. Uma incursão de um drone no perímetro da base de Romeylane, em Al Kharrab
al Jir (província de Hasakah), ceifou a vida de um soldado americano, ferindo
outros seis, as primeiras vítimas americanas na guerra de desgaste entre as
grandes potências e potências regionais neste sector tão cobiçado.
Rand Paul no Twitter: "Bring our troops home from Syria and end every unauthorized war going on today. Return the power to engage in war to Congress. Our service members deserve it. The Constitution demands it. https://t.co/22sb8UVg0x" / Twitter
Mas esta vontade implacável da NATO de provocar uma rendição da Síria à "pax americana" gerou um efeito contrário: o regresso em força, neste país fronteiriço com Israel, das duas bête noires dos países ocidentais, a Rússia e o Irão, grande camuflagem dos demiurgos atlantistas e dos mercenários da oposição off shore petro-monárquica síria.
Melhor ainda: sem precedentes na história militar contemporânea, os dois pesos pesados da região, a Turquia e o Irão, procederam ao fornecimento de drones aos beligerantes da guerra da Ucrânia - Ancara para Kiev e Teerão para Moscovo -, invertendo assim a tendência observada até então de que a Europa, para além do Ocidente, se apresentava como fornecedor do Médio Oriente e não o contrário.
Relativamente à França, eis a sua posição delirante:
Regresso à zona sem lei sob o controlo dos auxiliares curdos dos
americanos.
Sob a sombra tutelar dos Estados Unidos, o Nordeste da Síria tornou-se uma
zona interdita, mais precisamente uma sombria zona franca, sujeita à lei da
selva, beneficiando de uma extraterritorialidade, onde os dois aliados
antagónicos de Washington, a Turquia e os Curdos, com base em acusações mútuas,
jogam um jogo obscuro de tráficos de todo o tipo, tendo como pano de fundo a
pilhagem dos recursos petrolíferos da Síria, Os dois aliados antagónicos de
Washington, a Turquia e os curdos, com base em acusações mútuas, jogam um jogo
obscuro de tráficos de todo o tipo, tendo como pano de fundo a pilhagem dos
recursos petrolíferos da Síria, chantageando o seu protector comum na origem da
sua implantação, fora da autoridade do poder central de Damasco, nesta zona
fronteiriça da Síria, da Turquia e do Iraque, durante muito tempo reduto dos
grupos terroristas islamitas Jabhat An Nosra, a franquia síria da Al-Qaeda,
primeiro; Depois, o Daech.
O objectivo dos Estados Unidos, para além desta zona sem lei, é transformar a Síria num pântano, a fim de atolar a Rússia e enfraquecê-la na sua guerra na Ucrânia.........., correndo o risco de alienar o seu aliado regional, a Turquia, que está ansiosa por pôr fim ao conflito com o seu vizinho, a fim de silenciar o descontentamento popular e aliviar a sua economia em crise.
A incoerência dos curdos. Auxiliares de atividades anti-árabes.
Washington tem um grande aliado nesta matéria, os seus auxiliares curdos,
que já tinham feito o mesmo trabalho para o seu patrocinador durante a invasão
americana do Iraque em 2003.
Por muito brutal que esta afirmação possa parecer, e um pouco depreciativa,
ela corresponde, no entanto, à realidade: os dirigentes curdos do Iraque e da
Síria, em particular o clã Barzani, parecem ser os apoiantes eméritos das
actividades anti-árabes do último meio século, quer sob o Xá do Irão, quer
contra Saddam Hussein, apesar do acordo de autonomia assinado entre Bagdade e o
Mullah Mustapha Barzani, o acordo de 11 de Março de 1971, que concedia mais
direitos culturais e sociais aos curdos do Iraque do que aos curdos da Turquia;
ou durante a invasão americana do Iraque em 2003, quando os Peshmergas, sob a
autoridade do seu filho Massoud Barzani, serviram de batedores para os
americanos antes de servirem de delatores do esconderijo do antigo líder
iraquiano;
O mesmo se passa na Síria. Curioso comportamento dos curdos, que se aliam
aos americanos e aos israelitas, os mesmos que capturaram o carismático líder
do movimento independentista curdo na Turquia, Abdullah Ocalan, para o
entregarem às autoridades turcas para ser preso.
Para além deste ressalto bélico, coloca-se a questão da racionalidade do
Ocidente e dos seus aliados curdos na guerra da Síria:
O facto de os curdos se aliarem aos Estados Unidos, autores da captura do
líder curdo turco, e depois, para se protegerem dessa mesma Turquia, pedirem a
ajuda da Síria, cujo Estado central contribuíram para a decadência, é no mínimo
incoerente. Para o Ocidente, opor-se à
independência da Catalunha e da Córsega e trabalhar para provocar a divisão da
Síria é, no mínimo, uma duplicidade que prejudica a credibilidade do seu
discurso moralizador.
Durante a guerra na Ucrânia, a Turquia quis aproveitar a singularidade da
sua posição na NATO, o facto de ser o único Estado muçulmano, não banhado pelo
Oceano Atlântico, mas membro desta aliança exclusivamente ocidental, no flanco
sul da Rússia. Assim, Ancara proibiu a frota russa, devido à sua beligerância
com a Ucrânia, de passar pelo estreito dos Dardanelos, que controla. Mas, num
movimento pendular, opôs-se à adesão da Finlândia e da Suécia ao Pacto
Atlântico, invocando o apoio destes dois países nórdicos ao PKK, o partido
independentista curdo da Turquia.
Perante a urgência da situação para o bloco atlantista, a Turquia acabou
por levar a melhor sobre este ponto e obrigou a NATO a ceder às suas condições.
Melhor ainda, a Turquia reactivou a frente síria com vista à criação de uma
nova zona de segurança de 30 km, a fim de concentrar uma grande parte dos
refugiados sírios que vivem no seu território e, assim, livrar-se do peso
económico que esta massa humana representa, tendo em vista as datas incertas
das eleições de meados de Maio de 2023 para o Presidente Recep Tayyip Erdogan.
Desde há muito que Ancara acalenta o projecto de preservar a maior parte da
sua força incómoda na região, com o objectivo subjacente de criar um enclave
turco no sector de Idlib, segundo o modelo da República Turca de Chipre.
Para isso, pretende modificar demograficamente a zona para formar uma
espécie de barreira humana com os cidadãos sírios pertencentes ao movimento dos
Irmãos Muçulmanos, que considera estarem sob a sua autoridade de facto. Nesta
zona, tenciona concentrar um viveiro de jihadistas que gerirá de acordo com as
necessidades da sua estratégia.
O projecto visa, de facto, constituir uma cintura demográfica árabe -
"um escudo humano" - comprometida com a ideologia islamista do
presidente turco, em frente à zona autónoma curda. Nos termos de um acordo
russo-turco, o Qatar deverá financiar a construção de um vasto complexo
imobiliário na região de Idlib, para alojar os refugiados sírios que regressam
da Turquia. O projecto do Qatar prevê a construção de 163.000 casas para alojar
os sírios. O projecto deveria estar concluído em meados de Maio de 2023, antes
das eleições legislativas turcas.
Isto aconteceu depois de o Irão ter vetado a ofensiva turca, levando a
Turquia a procurar um compromisso com a Rússia, o outro garante do status quo
na Síria. A cimeira de Sochi de 5 de Agosto de 2022 entre Vladimir Putin e
Recep Tayyip Erdogan pôs fim às tentativas turcas de anexar novas partes do
território sírio. No final desta cimeira, a Rússia concordou, por um lado, que
a Turquia pagasse os seus fornecimentos de petróleo em libras turcas e, por
outro, que finalizasse a construção de uma central nuclear turca, a central
nuclear de Akkuyu, na região de Mersine, no sul da Turquia, antes do final de
2023, data do centenário da proclamação da República Turca.
Este feito deve-se à diplomacia russa, uma vez que ocorreu no meio de um
bloqueio ocidental à Rússia. O facto de uma central nuclear ter sido construída
num país membro da NATO é duplamente notável, uma vez que a Turquia foi
convidada a participar na próxima cimeira do Grupo de Xangai, em Setembro de
2022.
A operação militar turca deveria ser a quinta do género, após o "Escudo do Eufrates" (Agosto de 2016), que visou Djerablous e Al Bab; depois a operação "Ramo de Oliveira" (Dezembro de 2018), que permitiu ao exército turco ocupar Afrin, a que se seguiu a operação "Fonte de Paz" (Outubro de 2019) que levou à ocupação de Ras Al Ain;
Finalmente, o "Escudo da Primavera" (Janeiro de 2020), que conduziu a um acordo entre a Rússia e a Turquia para a circulação de patrulhas de vigilância conjuntas nas zonas de contacto.
A 5ª ofensiva tinha como alvo Ain Al Arab (Kobane), bem como a ocupação de
Manbej, que alberga um aeroporto militar sírio e foi, em tempos, o
quartel-general de Tarkhan Batirashvili, conhecido como Abu Omar Al Chichani, o
checheno de pseudónimo Barbarossa, devido à pigmentação da sua pele vermelha.
Cerca de 50.000 soldados turcos foram mobilizados para esta ofensiva, cujo objectivo principal é empurrar os curdos para fora do alcance da artilharia turca. Ain al Arab é um território altamente estratégico: o elo perdido, a leste do Eufrates, capaz de assegurar a continuidade entre Idlib e Ras al Ayn, ocupada por bandos duvidosos afiliados à Turquia, perto da fronteira turca.
Receando a desistência de Washington e preocupados em não alienar o apoio turco, no meio do confronto com a Rússia na Ucrânia, os curdos retomaram o diálogo com Damasco, via Moscovo, para colocar Manbej e Tall Al Rafah, os dois redutos curdos autónomos, sob a autoridade do exército sírio, poupando aos curdos a agonia de uma nova derrota dos turcos.
Mas no nordeste da Síria, uma ocupação esconde muitas vezes outra. Em 2016, a Turquia declarou triunfantemente que tinha "libertado" um território com 120 quilómetros de comprimento e 30 quilómetros de largura ao fazer recuar as forças curdas no nordeste da Síria.
No entanto, os civis que fugiram desta "zona de segurança" denunciaram uma forma de anexação e de pilhagem sistemática das suas cidades e aldeias pelas milícias apoiadas por Ancara.
Desde então, uma parte da direcção curda retirou-se para Raqqa, a capital caída do grupo Estado Islâmico. Mas também aí uma parte da população se insurge contra uma autoridade considerada ilegítima e apela, para alguns, ao regresso do regime de Damasco. Na Síria, a "libertação" de uns é muitas vezes vista como a "ocupação" de outros. E os Estados Unidos, aqui como noutros lugares, mostraram a sua habitual duplicidade.
Durante a guerra da Síria, os Estados Unidos mostraram um desprezo soberano pelos princípios que proclamam alto e bom som, e que tentam impor pela força aos outros países, e procederam a um estratagema malicioso para financiar a guerra da Síria, criando uma zona legal no nordeste do país para a subcontratação, pelos seus auxiliares curdos, dos prisioneiros da Daech que tinham capturado.
ILUSTRAÇÃO
(Fonds topographique, Ifpo 2003; Ababsa, 2004)
PARTE 2 DO ARTIGO
Síria-Curdos: O enclave curdo no Nordeste da Síria: uma zona sem lei 2/4
1- O esquema de financiamento da Guerra da Síria.
Os Estados Unidos forneceram à Ucrânia 100 mil milhões de dólares em ajuda militar numa semana, no final de Fevereiro de 2022. Um valor exorbitante comparado com a ajuda insignificante prestada aos aliados sírios dos Estados Unidos durante onze anos de guerra. No caso da Síria, o valor corresponde a cerca de 1% do que foi fornecido à Ucrânia numa semana.
No entanto, foram os mesmos Estados Unidos que criaram a coligação de 120 nações em torno do "Grupo de Amigos do Povo Sírio" para travar a guerra contra a Síria. Foram eles que conceberam e dirigiram os postos de comando militar MOC e MOM, antes de apoiarem as SDF (Forças Democráticas Curdas da Síria).
A- MOC E MOM
O MOC e o MOM são estruturas de coordenação e salas de operações instaladas de ambos os lados da fronteira síria, à maneira das "salas de situação" dos quartéis-generais ocidentais: no sul, o MOC para a Jordânia (Military Operation Center); no norte, o MOM (Musterek Operasyon Merkezi), para a Turquia, a partir do qual agentes estrangeiros, principalmente dos exércitos ocidentais, estabeleceram a coordenação com os agrupamentos islamitas.
B- A JORDÂNIA, ESPECTADOR DESPREOCUPADO DA MAL CHAMADA "PRIMAVERA ÁRABE", COM UMA FUNÇÃO ESTRATÉGICA IDÊNTICA À DA TURQUIA.
A Jordânia tem sido, por excelência, um ponto cego na actualidade
internacional. No entanto, o campo de Zaatari deu origem a um grande tráfico
sob a forma de escravatura branca, materializado pelo assalto de gerontocratas
petro-monárquicos lascivos a raparigas pré-púberes sírias, na ordem dos 3.000
dólares por transacção para uma rapariga de 15 anos. Foi a ocasião para uma
jornalista de uma fonte enganosamente autorizada, Annick Cojean (Le Monde),
vilipendiar... o assédio sexual das mulheres sírias pelos combatentes do
Hezbollah.
A Brookings Institution de Doha, em 2014, no seu relatório anual sobre a
Síria, nunca validou este facto. Apostemos que esta instituição americana,
sediada numa dependência americana (Qatar), que lidera a contra-revolução
árabe, - como tal, não suspeita da menor simpatia para com a formação
paramilitar xiita libanesa -, teria um prazer malicioso, se fosse esse o caso,
em apontar os seus desvios sexuais. Para grande espanto dos islamófilos, ela
referiu-se, pelo contrário, ao desempenho militar do Hezbollah em termos tão
brilhantes que deixariam muitos comentadores mediáticos verdes de inveja:
"O Hezbollah
conseguiu assumir um papel cada vez mais distintivo na liderança das operações
do exército sírio durante as grandes ofensivas das forças governamentais. Em
Qusayr (Junho de 2013), o Hezbollah assumiu o comando directo das operações,
assumindo, paralelamente, a vigilância aérea permanente do campo de batalha,
através de drones.
https://www.renenaba.com/rapport-syrie-brookings-doha-center-report/
A Jordânia pode, no entanto, ser objecto de reportagem de guerra, na medida em que desempenha uma função estratégica idêntica à da Turquia:
Uma plataforma operacional para o financiamento e o trânsito de jihadistas para a Frente Sul da Síria, através de Dera'a, quando a Turquia está a fomentar a Frente Norte, através da aglomeração de Alepo.
Em Amã existia, de facto, um quartel-general conjunto da NATO/Petro-Monarquia em Amã, sob a autoridade do príncipe Salmane Ben Sultan, o irmão mais novo de Bandar Ben Sultan, o antigo capo di tutti capi do jihadismo errático mundial.
C- O HOTEL FOUR SEASONS EM AMÃ E O PC EM MAFRAK
O grande quartel-general islamo-atlântico foi instalado no hotel "Four Seasons" em Amã e o quartel-general operacional, incluindo a Turquia, foi instalado em Mafrak, a 50 km da fronteira síria, em Dera'a, no antigo quartel-general conjunto israelo-jordano de 1988, a fim de sincronizar as operações contra o governo de Damasco. Foi criada uma ponte aérea entre a Jordânia e a Turquia para consolidar a Frente Norte (Alepo), onde os jihadistas se encontravam em má posição.
O príncipe Salmane Ben Sultan, meio-irmão do príncipe Bandar, foi encarregado de gerir o fluxo de jihadistas da Jordânia para a Síria, e de coordenar a gestão do seu abastecimento de armas e munições.
Ponto de partida dos comboios protegidos de fornecimento de armas e munições através do sector fronteiriço de Dera'a, comboios supervisionados por agentes da CIA, este PC traduzia, em termos concretos, a conivência orgânica das grandes democracias ocidentais e dos regimes árabes retrógrados na propulsão da contra-revolução árabe. A Jordânia é o ponto de trânsito dos jihadistas de e para a Síria.
Zohrane Allouche, líder do Jaish Al Islam (Exército do Islão), o chefão saudita da nebulosa jihadista na Síria, que se propõe restaurar o califado omíada, encurralado nos arredores de Damasco durante meses, em 2015, pôde assim escapar via Jordânia para reaparecer na Turquia a 20 de Abril, em plena guerra saudita contra o Iémen, numa mensagem monárquica subliminar augurando a reactivação do conflito sírio numa operação mediática de diversão sobre o Iémen.
3- O Golã, uma plataforma para lutar contra a Síria e não contra Israel
A morte de um oficial israelita nos Montes Golã foi um sinal concreto deste conluio até então subterrâneo. O oficial israelita foi morto a 10 de Março de 2015 durante um ataque do exército sírio contra as milícias que colaboram com Israel no sul da Síria.
De acordo com a televisão israelita, "Johnny", o seu pseudónimo, participava, juntamente com uma equipa técnica israelita, numa reunião de trabalho com os chefes das milícias, no âmbito de uma aliança de milícias pró-israelitas, denominada Exército Principal (PA), na localidade de al-Fitiane, na província de Quneitra.
Um dirigente do Exército Sírio Livre (FSA), Abu Hamza al-Nouaimi, foi morto juntamente com outros 12 dirigentes das milícias. Mais de 80 milicianos feridos no ataque foram tratados em hospitais israelitas. Um oficial jordano da célula da JI também estava presente na reunião, mas o seu destino não foi esclarecido.
4- O financiamento da contra-revolução síria
Para além do facto de a Ucrânia ser parte integrante da Europa, no limiar da NATO, na periferia da Rússia, uma potência rival que os EUA queriam esgotar numa guerra de desgaste, como se explica este tratamento diferenciado? Simplesmente porque os Estados Unidos conceberam um esquema engenhoso para financiar a guerra da Síria, fazendo com que a comunidade de utilizadores de veículos e os consumidores de energia suportassem o seu fardo.
A guerra da Síria foi,
de facto, financiada pelo aumento do preço do petróleo bruto de 65 para 105
dólares por barril, em Julho de 2010, cinco meses antes de qualquer Primavera
Árabe.... e até Julho de 2014, antes de voltar a cair. Estes quatro anos de
aumentos geraram um excedente de 500 mil milhões de dólares para as
petro-monarquias, segundo informações fornecidas à https://www.madaniya.info/
por um alto funcionário europeu há muito colocado no Médio Oriente (Iraque,
Síria, Turquia). A subida do preço do petróleo bruto começou em Julho de 2010,
ou seja, cinco meses antes das primaveras árabes, mas sobretudo após a decisão
da Síria de optar por uma via de gasoduto no Golfo Mediterrâneo que desagradou
à Turquia e ao Ocidente, nomeadamente à França de Nicolas Sarkozy, após o
abandono do belo projecto de barragem turco-síria no baixo Orontes, um belo
projecto anunciado em Abril de 2019.
A cifra de 500 milhões de dólares parece irrisória, a julgar pela soma astronómica reclamada por Bandar Ben Sultan, o príncipe saudita encarregado da Legião Islâmica responsável pela queda do regime baasista.
5- Bandar: 2 triliões de dólares pela queda do presidente Bashar Al Assad
O "Capo di tutti capi" do terrorismo islâmico terá exigido a espantosa soma de 2 mil milhões de dólares para derrubar o presidente sírio Bashar Al-Assad. Este valor foi avançado por Hamad Ben Jassem, primeiro-ministro do Qatar, em funções durante a primeira fase da "Primavera Árabe" (2011-2012), quando o principado liderava a coligação islamo-atlântica, antes de ser suplantado pela Arábia Saudita.
O pedido foi feito durante uma reunião do MOC (Centro de Operações Militares) em Amã, onde estiveram presentes delegados da Arábia Saudita, Qatar, Jordânia, Turquia e Estados Unidos, disse Hamad Ben Jassem numa entrevista ao diário kuwaitiano Al Qabas", cujo sítio online "Ar Rai al Yom" difundiu o vídeo de 22 de Março de 2022
6- A expulsão de Hamad Ben Jassem: sanção pelo fracasso da batalha de Bab Amro
Hamad Ben Jassem, que tinha prometido ao seu homólogo francês Alain Juppé fazer da batalha de Bab Amro, um subúrbio de Homs, em Fevereiro de 2012, "a Estalinegrado do Médio Oriente", foi destituído da responsabilidade pela condução da guerra, após o seu amargo fracasso nesta matéria.
Segundo a imprensa árabe, a expulsão do emir do Qatar Hamad Ben Khalifa e
do seu primeiro-ministro Hamad Ben Jassem foi a sanção dos seus excessos
demasiado graves, tanto em termos de apoio firme ao jihadismo como de cobiça
dos seus investimentos ocidentais.
De facto, o soberano foi notificado da sua ordem de abandonar o poder por
um alto funcionário da CIA, especialmente enviado por Barack Obama para o
notificar da ordem presidencial americana após a descoberta, no esconderijo de
Osama Bin Laden, de documentos que atestavam que o financiador do líder da
Al-Qaeda seria um cidadão do Qatar, primo do ministro da Cultura, Hamad Al
Kawari.
Sob a pena do seu director Osama Fawzi, antigo alto funcionário do
Ministério da Informação do Qatar, o Arab Times, de 24 de Junho, afirma que
"a célula qatari próxima de Bin Laden era composta por Salim Hassan
Khalifa Rached al Kawari, que já foi entregue aos americanos, bem como pelo
kuwaitiano Hassan Ali Ajami, um jihadista que combate na Síria, pelo sírio
Ezzdine Abdel Aziz Khalil e por Omid Mohamad Abdallah.
As transferências de dinheiro foram efectuadas através de instituições
financeiras do Qatar. As suspeitas sobre o Qatar aumentaram desde a invasão do
Iraque, ao ponto de o Presidente George Bush Jr. não hesitar em bombardear a
sede da Al Jazeera em Bagdade e estar prestes a fazer o mesmo com a sede do
canal árabe transfronteiriço em Doha.
A ordem americana "não negociável" teria exigido o afastamento
simultâneo do emir e do seu primeiro-ministro, Hamad Ben Jassem. O processo de
transição deverá começar no Verão de 2013, para coincidir com o início do
período de jejum do Ramadão, e terminar no final de Agosto, quando recomeçar o
calendário diplomático internacional. Segundo a versão da imprensa árabe, o
delegado da CIA propôs ao emir a seguinte escolha: ou o congelamento dos
activos financeiros do emirado em todo o mundo ou a sua destituição. Por outras
palavras, a morte financeira do emirado ou a morte política do emir, motivando
esta sanção pelo facto de o tandem ter "ultrapassado o seu papel na Síria
e no apoio ao jihadismo", bem como pelo seu apoio estrondoso aos
neo-islamistas no poder na Tunísia e no Egipto.
Sem surpresas, a manobra para estrangular o emir já tinha começado no Verão
de 2012, com as indiscrições divulgadas pela imprensa francesa sobre o papel
desestabilizador do Qatar na pátria africana de França, nomeadamente no Mali,
através da organização jihadista Ansar Eddine, que obrigou Paris, em plena
crise financeira, a envolver-se numa dispendiosa operação para reconquistar o
norte do Mali em Janeiro de 2013. Isso explica a ausência de uma visita oficial
de François Hollande ao Qatar durante o primeiro ano do seu mandato, apesar da
volumosa carteira financeira do Qatar em França.
7- Bandar Ben Sultan: o homem providencial da estratégia americana na
Síria.
O seu sucessor, Bandar Ben Sultan, filho de uma cópula acessória do príncipe Sultan Ben Abdel Aziz, impôs-se como o homem forte do Reino devido à doença de uma grande parte da equipa dirigente saudita, atingida por uma patologia incapacitante.
Empossado pelo próprio general David Petraeus, antes de o antigo chefe dos serviços secretos americanos ter sido arrastado por um jogo de galhofa imprudente, um embedded affair ao estilo americano, Bandar foi apresentado como o novo homem providencial da estratégia saudita-americana.
Para muitos observadores ocidentais citados pelo jornal neoconservador "The Wall Street Journal", o antigo "Great Gatsby" da vida diplomática americana, Bandar era considerado "um combatente experiente capaz de criar as condições para a queda de Assad", sustenta o Wall Street Journal sobre Bandar, segundo o "Al Quds Al Arabi" de 29 de Agosto de 2013.
Perante o impasse do conflito sírio, os excessos jihadistas na Líbia e na Tunísia e a ascensão dos Irmãos Muçulmanos no Egipto, a Arábia Saudita assumiu o comando das operações, apoiando o exército egípcio na destituição do neo-islamista Morsi da chefia do Estado egípcio e impondo a um príncipe residente na Jordânia o financiamento e o abastecimento off-shore da oposição síria
Desde o início das revoltas árabes, a Arábia Saudita conseguiu formar uma maioria de bloqueio de monarquias árabes no seio da Liga Árabe, com a contribuição de dois confetti do Império Francês - o enclave militar franco-americano de Djibuti e as Comores. Derrotou o protesto anti-monárquico no Barém e expulsou do poder o neo-islamista egípcio Mohamad Morsi, uma ameaça à ordem monárquica hereditária islâmica. Trabalhou para excluir o Hezbollah do futuro governo libanês, que está a ser preparado há seis meses.
8- Nasrallah x Bandar: 4 a 0
Mas o supremo salvador do Ocidente e do islão wahhabita tem um historial pobre no seu confronto com o Hezbollah.
Por quatro vezes, Bandar foi derrotado por Hassan Nasrallah. Em 2006, quando a resposta balística vitoriosa do Hezbollah libanês à força aérea israelita, bem como a destruição do navio-almirante da frota israelita, causaram consternação no campo saudita-americano, enfraquecendo o herdeiro político do clã Hariri.
Último jogador no campo de batalha sírio, depois dos esquadrões jihadistas da Chechénia à Tunísia, passando pela Bélgica, Kosovo e França, bem como dos Mujahideen Khalq, formação da oposição islamo marxista iraniana, e do clã Hariri, o Hezbollah operou uma espectacular inversão da situação em Qousseir, invertendo o curso da batalha da Síria.
"Pela sua brilhante actuação não só em Qusayr, Latakia e Homs, mas também pela sua contribuição para a defesa da base aérea de Minbej, sitiada no norte da Síria, Hassan Nasrallah mereceu bem o título de "Senhor da Resistência", admitirá Mohamad Hassanein Heykal, antigo confidente de Nasser.
Anteriormente, em 2008, com o caso da rede de transmissões estratégicas do Hezbollah, que resultou numa capitulação em campo aberto dos adversários da formação paramilitar xiita, em particular o líder druso Walid Jumblatt, na altura a ponta de lança do clã Hariri.
E, em 2007, com a neutralização do campo palestiniano de Nahr el Bared (norte do Líbano), cujo líder jihadista Chaker Absi, a soldo da Arábia Saudita, queria transformá-lo numa zona interdita, com vista a parasitar o Hezbollah na sua rectaguarda.
Por fim, em 2013, na Síria, para além da perda considerável representada pelo assassinato do seu adaga de segurança, o capitão Wissam Hassan, chefe da secção de informações das forças de segurança interna libanesas, dinamitado três meses após a decapitação da hierarquia militar síria.
9 – O réquiem de Robert Ford para Bandar Ben Sultan
Estóico na adversidade, Robert Ford, embaixador dos Estados Unidos junto da oposição síria offshore, vai beber o copo até ao fim.
Aos dirigentes da oposição síria offshore, preocupados com a queda da ajuda
saudita, Robert Ford, lacónico, anunciou o fim da missão de Bandar Ben Sultan,
chefe dos serviços secretos sauditas, e a sua evacuação médica para os Estados
Unidos, para uma longa convalescença.
Um anúncio que soou como uma certidão de óbito político do líder da
contra-revolução árabe:
"O plano Bandar já não existe. Bandar está nos Estados Unidos para
tratamento médico. Não regressará em breve. Sofre de uma compressão dolorosa
das vértebras. Está exausto e precisa de um longo período de repouso.
Um anúncio lacónico que teve o efeito de uma chuva de gelo nos mendigos
sírios e soou como uma bofetada magistral na cara de Bandar, que foi
imediatamente evacuado e enviado para os Estados Unidos, o seu verdadeiro lugar
preferido.
A história desta
entrevista está neste link de "Al Rai Al YOM", o novo site de Abdel
Bari Atwane, antigo proprietário do jornal trans-árabe "Al Qods Al Arabi"
http://www.raialyoum.com/?p=51589
Contra a corrente da mundialização, a guerra da Síria foi a primeira deslocalização sul-norte de uma "revolução", na medida em que os seus dirigentes eram cidadãos ocidentais, empregados da antiga administração colonial.
A menos que sejam afectados a um serviço perpétuo com marionetas desarticuladas off-shore, o fim da sua carreira estava programado. Um triste fim de carreira diplomática para um homem das trevas por excelência.
10- Raqqa: os erros dos Estados Unidos
Enquanto os Estados Unidos estão na vanguarda da denúncia da agressão russa contra a Ucrânia, não falam das suas acções em Raqqa, no nordeste da Síria, na sua luta contra o Daech.
No final da batalha de quase cinco meses para libertar esta importante cidade síria do domínio do EI, "60 a 80% da cidade estava inabitável" e o ressentimento da população era dirigido contra os libertadores, sublinha um relatório do centro de investigação RAND Corporation.
Os ataques ditos "dirigidos" e os disparos de artilharia das forças da coligação sobre Raqqa causaram muitas vítimas civis entre 6 de Junho e 30 de Outubro de 2017: entre 744 e 1600 mortos, segundo as contagens da coligação, da Amnistia Internacional ou do site especializado Airwars, diz o relatório.
Mas a batalha por Raqa também causou a destruição de um grande número de edifícios e infra-estruturas, o que "enfraqueceu os interesses dos EUA a longo prazo" na região, acrescenta o documento de 130 páginas.
De acordo com os números da ONU citados pela RAND Corporation, 11.000 edifícios foram destruídos ou danificados entre Fevereiro e Outubro de 2017, incluindo oito hospitais, 29 mesquitas, mais de 40 escolas, cinco universidades e o sistema de irrigação da cidade.
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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