segunda-feira, 24 de julho de 2023

Intelectuais franceses: cães de guarda dos poderosos (1/2)

 


 24 de julho de 2023  Robert Bibeau  Sem comentários


Por Khider Mesloub.

Como escreveu Antonio Gramsci, para governar, as classes sociais dominantes contam não só com a força do seu poder económico e das suas forças policiais e militares repressivas, mas também com o apoio ideológico da casta intelectual. Em França, como noutros países ocidentais, a elite intelectual sempre contribuiu para arregimentar as massas da população sob a bota do Estado burguês, e para as alistar ideologicamente (através da propaganda e da alienação).

De facto, com excepção dos raros períodos revolucionários caracterizados pela mobilização individual de alguns intelectuais para a luta das classes populares, a intelligentsia francesa permaneceu, em geral, fiel servidora das classes possuidoras. Sobretudo nos períodos de agitação social ou de preparação para a guerra, quando revela o seu carácter contra-revolucionário e belicista, como durante o movimento dos coletes amarelos, o protesto contra a reforma das pensões e, mais recentemente, durante a revolta dos jovens dos bairros populares após o assassinato de Nahel, morto à queima-roupa por um polícia. Sem esquecer, desde o início da guerra na Ucrânia, o seu apoio inabalável ao regime nazi de Zelensky e às forças da NATO.

Durante os protestos contra a reforma das pensões, nenhum grande intelectual apoiou aberta e firmemente o movimento. Nenhum foi capaz de seguir as pisadas de Pierre Bourdieu que, em Dezembro de 1995, se manifestou a favor do movimento social contra o projecto de reforma das pensões de Juppé.

"Perante a ofensiva desencadeada pelo governo, sentimos a responsabilidade de afirmar publicamente a nossa total solidariedade para com todos aqueles que lutam ou se preparam para lutar desde há várias semanas. Identificamo-nos plenamente com este movimento". "Estou aqui para manifestar o nosso apoio a todos aqueles que lutam há três semanas contra a destruição de uma civilização", afirmou.

Alguns dias mais tarde, foi a vez de um punhado de intelectuais de esquerda assinar uma petição intitulada "Appel de solidarité avec les grévistes" ("Apelo à solidariedade com os grevistas"), distribuída pelo jornal L'Humanité, entre outros. Entre os signatários, contavam-se Annie Ernaux, Etienne Balibar, Daniel Bensaïd, Luc Boltanski, Antoinette Fouque, Pierre Vidal-Naquet, Roland Castro e Régis Debray.

Foi a última vez que um punhado de intelectuais se empenhou individualmente numa luta em nome do proletariado e do povo.

De resto, historicamente, os intelectuais orgânicos, esses parasitas com a caneta venal elitista ou a voz gananciosa do audiovisual, não têm outra utilidade social senão a de serem laudatórios dos seus patrões (as classes dominantes) e de se oporem abruptamente às classes populares.

Assim, os principais representantes do marxismo em França estiveram sempre ligados à social-democracia e ao PCF, ambos conhecidos pelo seu legalismo e pacifismo, pela sua ideologia nacionalista (socialismo num só país). Curiosamente, os intelectuais franceses só abraçaram a nova religião laica (celular), esse "ópio dos intelectuais", o marxismo dogmático, depois de o coveiro da revolução bolchevique, o seminarista Estaline, ter instaurado o socialismo num só país, antítese do marxismo, essencialmente internacionalista. Isto explica o seu apego sentimental à Revolução Francesa, obra da burguesia, com a qual sempre partilharam os mesmos ideais: a defesa da República, o laicismo, o legalismo, o eleitoralismo, o nacionalismo, a pátria, o exército, as forças da ordem, a repressão (todos os membros da SFIO e do PCF aprovaram a matança em massa dos argelinos em 8 de Maio de 1945, para não falar da guerra de extermínio levada a cabo pela França colonial entre 1954 e 1962, quando 1,5 milhões de argelinos foram massacrados por se terem levantado para conquistar a sua independência).

Como escreve um historiador inglês, David Caute: "O intelectual francês, ao aceitar amplamente a Terceira e a Quarta Repúblicas, teve de o fazer apesar de Versalhes, da política interna do Bloco Nacional, de Marrocos, da Síria, da Indochina, do regime de Chiappe, do desemprego, da corrupção parlamentar, do abandono da Espanha republicana, de Munique, do McCarthismo, do Suez e da Argélia. O intelectual burguês francês é um Versalhesita e colonialista convicto. Despreza o povo (o proletariado gaulês), que esmagaria sem vergonha se se revoltasse. E odeia os estrangeiros, que colonizaria sem escrúpulos para provar e testar a sua supremacia racial e a sua superioridade civilizacional.

Actualmente, na era do domínio totalitário do capital, a função da intelligentsia burguesa, isto é, dos guardiães da ordem social (jornalistas, editorialistas, especialistas dos meios de comunicação, escritores, etc.), é magnificar os benefícios da sociedade liberal, do dinheiro, da democracia financeira, do consensualismo, do conformismo, do legalismo, numa palavra, do capitalismo. Tal como as antigas castas aristocráticas religiosas, rabínicas, cristãs e muçulmanas, legitima a desigualdade social e a monopolização do poder pela classe dominante.

Como escreveu Paul Nizan no seu livro “Les chiens de garde” (“Os cães de guarda”):

"A burguesia apercebe-se de que o seu poder material necessita do apoio de um poder de opinião. Uma vez que só subsiste por consentimento geral, deve incansavelmente dar aos que domina razões válidas para aceitarem o seu establishement, o seu reinado e a sua duração. Deve provar que o seu conforto e o seu domínio, as suas casas e os seus dividendos, são a justa recompensa que a sociedade humana lhe dá pelos serviços que presta. O burguês merece ser tudo o que é, fazer tudo o que faz, porque está a conduzir a humanidade para o seu destino mais elevado e mais nobre.” 


Em França, com a revolta do movimento dos Coletes Amarelos, os meios de comunicação social e os intelectuais orgânicos, essas vozes dos seus senhores, revelaram, com latidos retóricos enfáticos, num léxico mordaz para o povo e lambe botas para com os poderosos, o seu papel de cães de guarda da ordem estabelecida. A sua aversão inveterada ao povo proletário. A sua propensão pavloviana para se alistarem ao serviço da classe dominante, do governo Macron. Ver o volume AUTÓPSIA DO MOVIMENTO DOS COLETES AMARELOS – AUTÓPSIA DOS COLETES AMARELOS – les 7 du quebec (pode clicar no link para a edição em Língua Portuguesa)

Ao longo da luta dos Gilets jaunes, os jornalistas e os intelectuais, esses clérigos dos tempos modernos, partilharam o mesmo fervor pela propaganda odiosa contra este movimento populista, competindo em engenho para o distorcer, desacreditar e difamar. Para destilar as piores calúnias contra o movimento.

Na altura, para além dos jornalistas que não pouparam esforços para escrever artigos inflamados contra os Gilets jaunes, o multimilionário fascista Bernard-Henry Levy também tomou a iniciativa de publicar um artigo de opinião com o título sugestivo "A Europa está em perigo". Em termos menos hipócritas, o capitalismo está em perigo. Defensor inveterado do capital, este plumitivo de poltrona alarmava-se, neste texto, com a emergência dos "populismos", ou seja, dos movimentos sociais em luta na Europa, nomeadamente o movimento dos coletes amarelos, desdenhosamente rotulados de racistas, anti-semitas e homofóbicos (espantalhos "wokistas" frequentemente brandidos para desacreditar e desqualificar qualquer movimento espontâneo de luta não controlado pela burguesia).

Na sua cruzada contra os movimentos populares "anti-sistema", o rico sionista Bernard Henry Levy contratou cerca de trinta escritores famosos e acéfalos para levar a cabo a sua campanha de propaganda e de difamação contra os povos revoltosos. Liderados por este filósofo calamitoso, cujo pensamento polemológico está a pingar sangue e cuja actividade é alimentada por assuntos belicosos, tendo como pano de fundo uma lucrativa especulação financeira, estes escaramuçadores literários, fiéis soldados ideológicos do capital, apelaram à mobilização contra a "vaga populista que ameaça a Europa". Por outras palavras, que ameaça a estabilidade dos privilegiados da Europa, o reino das classes possuidoras.


Em geral, perante os coletes amarelos, os porta-vozes da burguesia, ou seja, a elite intelectual, uniram-se numa frente comum para os castigar, qualificando-os de racistas, fascistas, homófobos, facciosos. Mas também idiotas.

« Coletes Amarelos: A estupidez vencerá?" (sic), questionava-se Sébastien Le Fol no Le Point (10 de Janeiro de 2019). Um outro intelectual domesticado, jornalista de pleno direito, tinha declarado no canal de poder BFM TV: "Os verdadeiros 'gilets jaunes' lutam sem pensar, sem reflectir". O seu colega de "trela" no Le Figaro, Vincent Trémolet, vigilante do sistema, tinha escrito a 4 de Dezembro de 2018: "Os baixos instintos impõem-se com desprezo pela civilidade mais elementar". Eis algumas outras pérolas jornalísticas vomitadas por estes plumitivos de serviço nos seus respectivos, mas seguramente não respeitáveis, periódicos: "Um "movimento de campónios mesquinhos e facciosos" (Jean Quatremer), "liderado por uma 'minoria odiosa'" (Denis Olivennes), semelhante a uma "explosão de raiva e ódio" (Le Monde) em que "hordas de punks e saqueadores" "consumidos pelos seus ressentimentos como pulgas" (Franz-Olivier Giesbert) libertam os seus "impulsos doentios" (Hervé Gattegno).


São os mesmos jornalistas que ontem castigavam os Gilets jaunes, rotulados de racistas e anti-semitas, e que hoje apoiam as milícias ucranianas da NATO, descendentes do regimento neo-nazi Azov, um regimento aureolado com todas as virtudes por todas as elites ocidentais bélicas decadentes. Os intelectuais apoiam sempre os assassinos em massa. Aos empreendimentos genocidas cometidos pelos seus amigos governantes (da NATO).

Assim, quando surgiu este movimento de massas sem precedentes dos Gilets jaunes, a intelligentsia francesa, essa casta descerebrada, o cérbero dos poderosos, revelou a sua verdadeira função de auxiliar intelectual servil da classe dominante. Jornalistas, intelectuais e membros da classe dominante, toda a máfia elitista oficial, juntaram forças para ridicularizar o movimento dos Coletes Amarelos. Os jornalistas, com projecções de notícias insidiosamente contra os Coletes Amarelos; as autoridades, com projécteis balísticos incapacitantes; os intelectuais, com planos para mobilizar o exército e incitar a polícia a usar as suas armas contra os Coletes Amarelos.


De facto, alguns ordenaram ao Governo Macron que mobilizasse o exército para restabelecer a ordem. Como o intelectual orgânico Luc Ferry, irmão de armas de Bernard Henry Levy, professor de filosofia e antigo ministro de Sarkozy, que fez manchetes ao ordenar à polícia que usasse as armas. Luc Ferry pediu à polícia para disparar munições reais contra os Gilets jaunes durante as manifestações. "Deixem-nos usar as armas de uma vez por todas, já chega", disse ele durante um programa de rádio chamado "Esprits libres" (Não se pode inventar isto. Esprits libres... para massacrar o povo proletário quando este se revolta para se libertar da escravatura assalariada).

Mas também instando o exército a intervir contra o movimento dos coletes amarelos. Ou seja, esmagar esse movimento em sangue. "Temos o quarto exército do mundo, é capaz de acabar com esta porcaria", exclamou num tom furioso e cheio de ódio de classe.

O incitamento histérico de Luc Ferry ao massacre dos Coletes Amarelos não foi o delírio de uma "mente intelectual" mal orientada e psicopata, mas o pensamento profundo dessas "Mentes Livres" (debulhadores da democracia dos ricos), da maioria dessa intelligentsia francesa decadente e belicista, e de seus mestres, a classe dominante burguesa francesa. Como o demonstram os acontecimentos actuais, desde o início da guerra na Ucrânia e, sobretudo, desde a revolta dos jovens proletários nos bairros populares após o assassinato de Nahel.

É a mesma intelligentsia francesa, belicista e racista, que pede agora que se mate o povo russo à fome através do reforço das sanções económicas contra Moscovo, que se massacrem os russos, que se enviem tropas da NATO para a Rússia e que se armem as tropas militares neo-nazis ucranianas. A mesma ralé intelectual que derrama o seu ódio anti-árabe e islamófobo. Desde a recente revolta desencadeada pelo assassínio do jovem liceal Nahel, têm vindo a insistir com o governo Macron para que envie o exército para "restabelecer a ordem" nos bairros populares, castigue severamente os adolescentes detidos e imponha sanções financeiras aos seus pais. Chamar o exército dos ricos para esmagar a rebelião dos jovens, tachados de delinquentes, não é mais do que um pretexto para esmagar todas as dissidências sociais, políticas e ou ecológicas. Reprimir e matar todos os rebeldes para salvar o sistema capitalista é o grito de guerra da burguesia cultural e financeira francesa. "Matem – matem e salvem as câmaras municipais da ira dos oprimidos."

« É como durante a Comuna, quando a burguesia implorou à Guarda Nacional que matasse todos os comunardos", escreve o meu amigo Robert Bibeau na revista online Les 7 du Québec.

De facto, este discurso odioso das elites de esquerda e de direita contra o povo lembra curiosamente o dos escritores da época da Comuna, que se enfureceram com o movimento insurrecional dos comunardos. Este discurso odioso das elites, imbuído de desprezo de classe, ressurgiu novamente desde o início de 2023, com as manifestações e greves contra a reforma das pensões do governo francês, nos palácios dourados do Eliseu e de Matignon, nos hemiciclos parlamentares e senatoriais, nas plataformas de televisão e nas redacções da imprensa. E este discurso elitista, odioso, xenófobo, racista e repleto de desprezo assassino pelas classes populares acaba de ser reforçado pela revolta dos jovens dos bairros populares, que se sublevaram com o assassinato de Nahel, mais um jovem que o Estado matou à queima-roupa... sem remorsos.

Historicamente, esta manifestação de ódio contra os revoltados já tinha ocorrido durante a Comuna de Paris.

(A CONTINUAR)

 

Fonte: Les intellectuel(le)s français : chiens de garde des puissants (1/2) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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