terça-feira, 25 de julho de 2023

L'ENVERS DE LA VILLA (Marie-Andrée Mongeau)



19 de Junho de 2008  Ysengrimus 

YSENGRIMUS — Apresentamos uma novela (pequeno romance) que sintetiza deliciosamente os paradigmas ficcionais de Marie-Andrée Mongeau (1958-2023). A motricidade marítima (ainda tratada com indubitável perícia, mas aqui sob um ângulo recreativo e de férias), a vida mental em obras de ficção (ao estilo de um roman à l'eau de rose nanano, apenas mais solto e menos normativo), e o regresso fresco e vaporoso de uma rapariga do Collège de l'Assomption (ou do Collège de Rimouski, como em Contes d'ascenseur). Todos os temas mongeauescos se reúnem num cocktail de praia cintilante.

Depois da pequena-niaiseuse-pas-si-niaiseuse na escola, encontramos agora a pequena-niaiseuse-pas-si-niaiseuse em férias. A personagem preferida de Mongeau, a animada e incisiva Liliane Rancourt, de catorze anos, é mais uma vez a nossa guia e narradora. Ela parte, sozinha como uma adulta, para a ilha de Saint-Martin, onde se vai reunir com os tios e o primo Marcelino. Vai finalmente passar umas férias a sério no verdadeiro Sul, apesar de estarmos em pleno Janeiro em Montreal. Mas o inferno começa quando estas férias tomam um rumo completamente inesperado. Estas férias no outro lado do mundo tornam-se gradualmente um mistério. Tudo se passa entre duas ilhas das Caraíbas e, mais uma vez, a bordo de um catamarã. O quarteto formado por Liliane, a sua prima e os pais da prima têm de viajar de uma das ilhas de Saint-Martin para outra. Num fenómeno estranho e pouco conhecido, o mastro do catamarã partiu-se contra todas as expectativas. A partir daí, surgem inúmeras complicações que obrigam os pais de Marcelino, os dois turistas adultos de serviço, a entrar numa dinâmica complexa de interacção com agentes de seguros, representantes das autoridades e todo o tipo de personagens. Como não se trata de arrastar os dois adolescentes por todos esses percalços burocráticos, eles são deixados na companhia do misterioso tio Paul, um sujeito local que vive numa solitária vila da ilha. E é aqui que entram em jogo as subtilezas físicas e culturais. A casa do tio Paul tem a forma de um hexágono. Um hexágono é, como explica Liliane, a união geométrica de dois trapézios, transmitindo ela própria, com serenidade, um conjunto sólido e compacto de noções elementares de geometria. Para recordar, um trapézio é um tipo particular de quadrilátero em que os segmentos A e C, opostos um ao outro, têm o mesmo comprimento e os segmentos B e D, opostos um ao outro e paralelos, têm comprimentos desiguais, sendo o segmento D o maior dos dois. O hexágono é, portanto, constituído por dois trapézios, costas com costas, eventualmente separados/unidos por uma linha transversal, precisamente o segmento D, o mais comprido dos segmentos trapezoidais. Na villa hexagonal do tio Paulo, a linha em questão é uma (ou duas) parede(s) que separa(m) as duas metades trapezoidais da villa hexagonal. Vamos pôr as coisas em números. Se imaginarmos que somos um drone a filmar a villa a partir de cima, num mergulho perpendicular direto, começamos por cortar a villa nas suas duas partes.

 

A parte da frente da moradia, ou anverso da moradia, vista de cima. O pequeno segmento do trapézio tem vista para a praia e para o mar. O segmento longo tem vista para a parte de trás da vila.

 


A parte traseira da moradia, ou REVERSO DA VILLA, visto de cima. O pequeno segmento do trapézio tem vista para o lado da colina em que a vila repousa. O longo segmento tem vista para o anverso da villa.

 


O anverso e o reverso da vila juntos, formando um hexágono. O segmento D (segmento longo dos dois trapézios unidos) forma uma (ou mais) parede(s) separando o anverso habitado do reverso desabitado da villa.

E é exactamente isso que temos na nossa novela. Uma parte da villa, o trapézio número um, o anverso da villa, está virada para a praia e para o mar. A outra parte da vivenda, o trapézio número dois, o reverso da vivenda, está virada para a encosta, ao longo da qual a vivenda está subtilmente implantada. O resultado é uma moradia hexagonal simétrica com dois lados, um anverso e um reverso. Apenas o anverso é habitado e ocupado pelo Tio Paulo. O outro lado da sua vivenda, que é um espelho invertido do anverso onde vive o misterioso tio insular, está abandonado, negligenciado, em desuso, deserto e nem sequer está trancado. Curiosos e perspicazes, os dois adolescentes, muitas vezes deixados à sua sorte in situ pelo tio Paul, rapidamente se familiarizam com todo o universo. E rapidamente identificam, observam e fantasiam sobre uma série de elementos misteriosos. Tudo se resume a uma pergunta-chave, que não pára de crescer. Como é possível que só metade da vivenda do tio Paulo esteja habitada? E o que é que o outro lado da vivenda vai revelar de sombrio, sinistro e secreto?

Para adensar o mistério, nas traseiras da vivenda, entre as traseiras da vivenda e a encosta, há uma piscina. É uma piscina de boas proporções, fora de uso, vazia, mas muito estranha. Bem, é uma piscina enterrada em betão pintado, descascado, seco, um pouco antiquado, mas ainda muito sólido. O que é estranho é que esta piscina comprida e larga não é muito funda. Nem sequer tem a profundidade dos sovacos dos adolescentes. Liliane, que nunca perde uma oportunidade de nos mostrar a sua bela cultura de bisbilhoteira, apimentando-a alegremente com muitas e variadas considerações, apercebe-se de que esta curiosa estrutura, de facto, se parece mais com um antigo banho romano do que com a piscina subterrânea, fervilhante e seminal, de um moderno resort pan-americano. E é caso para perguntar o que é que um antigo banho romano poderia estar a fazer no coração das Caraíbas. Um mistério ondulante. E isso contribui para o som cada vez mais ruidoso dos gatilhos imaginários que estão agora a disparar a todo o vapor. E não vai ficar mais calmo quando descobrirmos uma passagem secreta ambivalente no lado de betão desta piscina enigmática. Ah, mas não há mistério em topografias exóticas e configurações espaciais de outro mundo sem uma passagem secreta. De facto, uma das grandes qualidades sapientes deste pequeno romance é o facto de examinar, pelo menos em pequena escala, a forma como as organizações arquitectónicas e paisagísticas funcionam como gatilhos imaginários. Não há nada mais oniróide do que estes espaços atípicos, tortuosos, refractários, que parecem carregar implicitamente, nas suas profundezas secretas, todo o mistério da obscura implantação histórica que um dia lhes deu origem. Uma relação com um espaço é sempre uma relação com um passado, e uma relação com um passado abre garantidamente as portas do imaginário, sobretudo as portas do imaginário da idade adulta, quando ainda oscilamos entre os voos bonitos e floridos da infância e um contacto mais denso e intenso com o mundo complexo dos adultos. A maioridade quer provar-se a si própria, aqui e agora. E para se provar, neste caso, o nosso já referido jovem terá de desvendar o mistério do tio Paulo e da sua vivenda. Mas se o próprio Tio Paulo se tornar, passo a passo e sub-repticiamente, o agente que conscientemente produz e gera o seu próprio mistério, é provável que as pistas tortuosas dos jovens detectives se desvendem muito rapidamente e se tornem passo a passo, sub-repticiamente, o agente conscientemente produtor e gerador do seu próprio mistério, os trilhos tórridos dos jovens detectives podem rapidamente desvendar-se e desfazer-se alegremente, em todas as direções. A engenhosa densidade de propensões ficcionais nem sempre é a daqueles que pensamos.

Aqui, Marie-Andrée Mongeau funde harmoniosa e alegremente a sua faceta de memorialista marítima com o seu amor incondicional e sorridente pelo romance ligeiro. Os leitores habituais desta autora sabem que ela guarda no seu coração terno e endurecido a aspiração de escrever algo como literatura sentimental, literatura de viagens ou literatura infantil. Aqui, nesta novela, encontramos uma espécie de realização rapsódica destas facetas vibrantes da nossa polimorfa escritora. A escrita é sóbria, limpa e precisa. É maravilhosamente visual. A história é leve, e levanta mais uma vez o velho problema de como fazer com que a fantasia faça parte da imaginação da criança-adolescente-adulto que todos nós somos em certa medida. Bondance de bondance. Então, o que é que se passa em torno desta vila esquecida por Deus e do seu lado? Passa-se alguma coisa? Há um mistério? Ou estamos apenas a ouvir o vento e as ondas das férias, tão cheias de cabelos e ideias? E o que é que o outro lado do Tio Paulo tem a dizer ao outro lado da vivenda? Quem é este personagem poliglota, barbudo, desordeiro, bucaneiro, que parece trazer consigo um monte de tachos e panelas inomináveis? É o que poderá descobrir se ler este romance, que, embora não vá mudar radicalmente a sua visão fundamental do mundo, irá sem dúvida colocar-lhe  um sorriso no seu rosto. Leitura de verão. Júbilo assegurado.

Esta obra é perfeitamente encantadora, docemente irritante, docemente irónica. Leve, controlada e muito bem escrita.  Dá-nos um gostinho de literatura infantil e um sopro de férias. E a escrita é orgulhosa, sóbria e precisa. É com alegria, serenidade e entusiasmo que a ÉLP lança no mundo das Belas-Letras esta última obra de uma das autoras mais fortes do seu palmarés.

Marie-Andrée Mongeau, L'envers de la villa, Montreal, ÉLP éditeur, 2024, formatos ePub, Mobi.

 


 

Fonte: L’ENVERS DE LA VILLA (Marie-Andrée Mongeau) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice





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