25 de Julho de 2023 René Naba
RENÉ NABA — Este texto é publicado em parceria com a www.madaniya.info.
A primeira parte deste texto está aqui: https://queonossosilencionaomateinocentes.blogspot.com/2023/07/o-enclave-curdo-do-nordeste-da-siria.html
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Da Baía de Guantánamo à prisão de
Gweran. A permanência de uma zona sem lei.
Decifrar um caso obscuro.
· Os Estados Unidos transpuseram o modelo da Baía de Guantánamo para o nordeste da Síria, subcontratando prisioneiros do Daech aos seus auxiliares curdos, sem o menor controlo da sua parte nestes centros de detenção, apesar dos graves abusos que aí ocorrem e da corrupção dos guardas curdos.
· A exfiltração de prisioneiros do Daech para a Turquia durante o cerco de Baghouz, em Março de 2019, foi o resultado de uma transacção financeira com as autoridades curdas da zona autónoma do nordeste da Síria.
· 270 membros do Daech conseguiram não só escapar da prisão, mas também chegar a "áreas seguras", muitas vezes equipados com "ordens de missão" carimbadas com o selo da administração autónoma curda.
· A rede de comunicações instalada na prisão de Gweran para ligar os prisioneiros do Daech ao mundo exterior, incluindo as comunicações por telemóvel, foi criada com a conivência tácita das forças curdas.
· As autoridades curdas de facto da zona
autónoma utilizam o caso da prisão como trunfo contra a Turquia e os Estados
Unidos, para dissuadir Ancara, por um lado, de levar a cabo uma operação
militar contra a zona curda, e contra os Estados Unidos, por outro, para
dissuadir Washington de qualquer inclinação para se retirar do nordeste da
Síria.
Um olhar retrospectivo sobre este caso obscuro, com base nas informações
contidas num relatório de investigação de uma ONG enviado a organismos
internacionais, de que o autor deste texto tem conhecimento.
A 20 de Janeiro de 2022, o grupo Estado Islâmico DAECH lançou um assalto à
maior prisão jihadista do norte da Síria, libertando centenas dos seus antigos
combatentes debaixo do nariz das forças curdas apoiadas pelos seus aliados
americanos.
Hassaké, uma cidade controlada pelos curdos no nordeste do país, foi palco
de quatro dias de combates ferozes entre as Forças Democráticas Sírias e os
combatentes do Daech, após o assalto dos islamistas à enorme prisão de Gweran,
o maior campo de detenção para antigos jihadistas e suas famílias na Síria. 185
pessoas foram mortas de ambos os lados. Em apoio às forças curdas, a coligação
liderada pelos Estados Unidos enviou helicópteros para bombardear as bolsas de
rebelião e resistência. A ameaça foi "contida", mas centenas de
prisioneiros conseguiram escapar.
De acordo com a versão americana, tinham sido instaladas células adormecidas entre os guardas prisionais, que lançaram o assalto ao mesmo tempo que explodiam carros armadilhados, armando os prisioneiros a partir do interior e desencadeando quatro dias de combates ferozes.
1- O MIT turco por detrás da insurreição da prisão Daech
O assalto espectacular do Daech a uma prisão em Hassaké, no nordeste da
Síria, detida pelos auxiliares curdos dos americanos, foi uma operação
mediática por excelência, com um duplo objetivo:
-Permitir à Turquia a conquista de novas parcelas do território sírio.
Justificar a manutenção da presença militar americana nesta zona rica em
petróleo da Síria, apesar de não existir qualquer base legal para tal, argumentando
que a zona era porosa.
É esta, pelo menos, a impressão dada pela declaração do Sr. Noury Mahmoud,
porta-voz das YPG (Unidades de Proteção do Povo Curdo) desde o fim da
insurreição dos prisioneiros do Daech. O Sr. Noury Mahmoud acusou a Turquia de
fomentar esta revolta com o objectivo de se apoderar de Hassaké e das outras
cidades curdas da região através dos prisioneiros do Daech libertados durante o
assalto às prisões.
O MIT, o serviço secreto turco, terá atribuído a quantia de 15 milhões de
dólares para levar a cabo esta operação", acrescentou, afirmando que, ao
reactivar o Daech, a Turquia pretendia, de facto, reavivar a ameaça terrorista
em benefício da opinião ocidental, sempre sensível a este assunto, e justificar
a manutenção da presença militar americana nesta zona, apesar da ilegalidade
desta presença no nordeste da Síria.
Num cenário de confronto entre os Estados Unidos e a Rússia, e de guerra
psicológica entre os diferentes protagonistas do conflito, a situação dramática
da população é ocultada, mesmo que seja pior do que aquela em que viviam os
prisioneiros de Guantanamo Bay.
As Nações Unidas lamentaram o drama de dezenas de milhares de pessoas
deslocadas devido às hostilidades, enquanto a UNICEF exprimiu a sua preocupação
quanto ao destino de 700 crianças encarceradas nos pisos superiores da prisão.
2- Uma tragédia que afecta 60.000 pessoas... em processo de banalização.
No entanto, esta tragédia envolveu 60.000 pessoas (homens, mulheres e
crianças), amontoadas em campos espalhados por 20 prisões, em condições
desumanas, reféns de um conflito, tratadas por uns como vítimas da peste e
usadas por outros como moeda de troca. Com o tempo, esta situação anormal
tornou-se tão comum que se tornou normal, esta situação anormal tornou-se
"normalizada". Por outras palavras, tornou-se um lugar-comum.
Os militares sobrepuseram-se aos políticos e aos órgãos representativos.
Mutatis Mutandis, a aclimatação a este estado de coisas conduziu a uma
aclimatação semelhante da situação de dezenas de milhares de pessoas detidas
nas prisões sírias, ou seja, à normalização, ou mesmo à banalização, da sua
condição de detidos; e a uma correlativa banalização da situação de vários
milhares de pessoas encarceradas nas 11 prisões construídas pelos serviços de
segurança da Jabhat An Nosra, a franquia síria da Al Qaeda, na zona sob o seu
controlo. A presença de tantos prisioneiros significava implicitamente que um
acordo político só poderia ser alcançado através de negociações entre
combatentes corruptos com as mãos manchadas de sangue.
A nível curdo: os órgãos criados pelos curdos para administrar a região autónoma a leste do Eufrates passaram assim a estar sob o controlo directo dos chefes militares, incluindo os campos petrolíferos e as zonas agrícolas. Assim, a maioria da população árabe a leste do Eufrates está agora sob a autoridade de facto dos militares curdos, sem o mínimo contacto com uma administração civil. Estes militares não reconhecem a sua especificidade e criminalizam-nos, acusando-os de pertencerem ao Daech", assim que manifestam a mais pequena exigência.
3- Os Estados Unidos e a implementação do sistema de
entregas extraordinárias no nordeste da Síria.
Os Estados Unidos transpuseram o sistema de rendição para o nordeste da Síria, confiando aos seus auxiliares curdos a sub-contratação dos seus pesados prisioneiros. O termo rendition, que significa "devolução", designa na realidade a acção de transferir um prisioneiro de um país para outro fora do quadro judicial, nomeadamente fora dos procedimentos normais de extradição.
O termo foi mediatizado no âmbito da "guerra contra o
terrorismo", nomeadamente no que se refere às operações da CIA que
implicam o transporte clandestino de prisioneiros, por vezes precedido de um
rapto. Estas transferências são regularmente associadas a uma espécie de
"externalização" da tortura, em que os Estados Unidos torturam os
prisioneiros nos países aliados, proibindo-a no seu próprio território. As
pessoas em causa são por vezes detidas em prisões secretas da CIA fora do
território americano (também designadas por "black sites").
No mundo árabe, o Egipto, sob a presidência de Hosni Mubarak, Marrocos, sob
o reinado de Hassan II, e a Jordânia, sob o reinado do rei Hussein, praticaram
a rendição por conta dos Estados Unidos no final do século XX.
No século XXI, os Estados Unidos repetiram este padrão com os seus aliados
curdos no norte da Síria. Por uma série
de razões relacionadas tanto com a situação no Médio Oriente como com a
política interna americana, os Estados Unidos desejam permanecer na Síria,
apesar de não haver base legal para a sua presença, aplicando uma estratégia de
"morte zero".
A- Uma transação comercial subjacente a um objectivo militar: o petróleo
sírio como fonte de financiamento dos carcereiros curdos no nordeste da Síria.
Nesta perspectiva, os Estados Unidos recorreram à rendição no Norte da
Síria, confiando o tratamento dos prisioneiros indesejados aos seus auxiliares
curdos, encarregando as "Forças Democráticas Sírias", na realidade o
aparelho de segurança e as YPG (Unidades de Proteção do Povo Curdo) sob o seu
controlo, de levar a cabo esta tarefa.
Em troca deste serviço, os Estados Unidos garantiram aos curdos a posse dos
recursos energéticos da Síria (petróleo e gás), dos quais beneficiaram através
das receitas financeiras que geraram para financiar as suas operações e reduzir
as despesas americanas neste sector.Uma transacção comercial subjacente a um
objectivo militar. Como resultado, os curdos assumem a responsabilidade pelos
acontecimentos na área do seu destacamento, campos de reagrupamento
populacional e prisões. Ao mesmo tempo, o FBI dá uma mão, se necessário, aos
sub-contratantes curdos dos americanos.
B- Oposição síria controlada ou o processo de desestabilização dos aliados
dos Estados Unidos na Síria, os grupos terroristas e os auxiliares curdos.
Sem nunca ter falta de imaginação quando se trata de servir os seus
próprios objectivos, os Estados Unidos introduziram uma espécie de rótulo AOC
(appellation d'origine contrôlée/designação de origem controlada - NdT) para
conferir respeitabilidade aos grupos terroristas islamistas que pretendem
utilizar.
A Jabhat An Nosra, o franchising sírio da Al Qaeda, recebeu a etiqueta
"VSO" (Vetted Syrian Opposition) para poder participar na coligação
de oposição monárquica petrolífera off-shore.
Para além disso, os Estados Unidos esforçaram-se por conferir "respeitabilidade" aos seus sub-contratantes curdos, abrindo missões na capital da zona curda para representar os países membros da "Coligação Internacional de Luta contra o Daech", encorajando visitas de campo de uma dezena de cônsules com o pretexto de se informarem sobre o destino dos seus nacionais detidos nas prisões curdas, ou ainda sobre o acolhimento pelas autoridades curdas de personalidades ocidentais.
4- A passagem ao acto: O alvo, uma prisão de 3.600 prisioneiros do Daesh e 700 crianças menores.
O acto surge no contexto desta espetacular exibição de mentiras oferecidas
à opinião pública internacional para a enganar. Dois voluntários do Daech, Abou
Abdel Rahman e Abou Farouk, da brigada Mouhajirine (grupo armado jihadista
salafista composto por muçulmanos da diáspora e muito activo de 2013 a 2015
durante a guerra civil síria), realizaram uma operação suicida utilizando dois
veículos armadilhados, embatendo contra os muros da prisão de Gweran. Esta
prisão é, de facto, o antigo colégio industrial da cidade de Hassaké,
convertido em centro de detenção. Albergava 3.600 membros do Daech e 700
menores.
Este assalto voltou a colocar a Síria no primeiro plano da actualidade, com a sua habitual procissão de especialistas no fenómeno do terrorismo e as suas especulações sobre os danos colaterais, nomeadamente os resíduos humanos, da guerra contra o terrorismo. Se os Estados Unidos não tivessem lançado imediatamente uma operação de comando para eliminar Abdallah Quraysh, o sucessor do líder do Daech, Abu Bakr Al Baghdadi, a Síria teria voltado a estar fora da actualidade. O destino trágico das prisões e dos campos de confinamento para as famílias dos detidos também teria sido ofuscado da mesma forma.
5- O precedente da prisão iraquiana de
Abu Ghraib.
Dois mil prisioneiros, membros do Daech, conseguiram fugir das prisões de Abu Ghraib e Al Taji em 2013. Mas os funcionários curdos da prisão de Gweran disseram não ter conhecimento desta fuga colectiva.
Nota do editor: O
Centro de Detenção Central de Bagdade, mais conhecido por prisão de Abu Ghraib,
é uma penitenciária iraquiana situada na cidade de Abu Ghraib, 32 km a oeste do
centro de Bagdade. Foi utilizada pelos americanos como centro de tortura para
os detidos iraquianos. O escândalo de Abu Ghraib, que eclodiu na sequência da
publicação, em 2004, de fotografias de torturas infligidas pelo exército
americano a prisioneiros iraquianos, levou a que a prisão fosse transferida
para as autoridades iraquianas em 2006.
Em 2013, registou-se
uma fuga em massa de prisioneiros e a prisão foi encerrada pelo governo
iraquiano em 2014.
Fonte: L’enclave kurde du Nord-Est de la Syrie: Une zone de non droit (3/4) – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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