Invenção da escrita e das sociedades de
classes
Claude
Lévi-Strauss, fragmento de uma
entrevista radiofónica na RTF, transmitida por Georges
Charbonnier,
1959
Vejamos o elemento tempo. Em que é que ele consiste? Penso que é necessário introduzir aqui uma aquisição essencial da cultura, que é a própria condição desta totalização dos conhecimentos e desta utilização da experiência passada que sentimos, mais ou menos intuitivamente, estar na origem da nossa civilização. E o que é essa aquisição cultural, essa conquista? A escrita. É certo que um povo só pode beneficiar de aquisições anteriores na medida em que estas estejam fixadas na escrita. Sei bem que os povos a que chamamos primitivos têm muitas vezes capacidades de memória espantosas. Ouvimos falar de populações polinésias que podem recitar sem hesitação genealogias de trinta, quarenta ou cinquenta gerações. Mas há limites óbvios. A escrita teve de ser inventada para que os conhecimentos, as tentativas, as experiências felizes ou infelizes de cada geração pudessem ser acumulados e para que, a partir desse capital, as gerações seguintes pudessem não só repetir as mesmas tentativas, mas também utilizar as que tinham sido feitas antes, melhorar essas técnicas e alcançar novos progressos. [...]
Portanto, temos aqui algo a que nos podemos agarrar, porque a invenção da escrita é algo que podemos estudar. Sabemos que teve lugar no Mediterrâneo Oriental, entre o terceiro e o quarto milénios, e que havia ali qualquer coisa por resolver. [Porquê aqui? Vou parecer que estou a contradizer o que estava a sugerir há pouco. Mas parece-me que, neste ponto, temos de introduzir um novo pensamento. A escrita surgiu na história da humanidade, entre o terceiro e o quarto milénios a.C., como dizia há pouco, numa altura em que a humanidade já tinha feito as suas descobertas mais essenciais e fundamentais, ou seja, não antes mas depois daquilo a que se chamou a revolução neolítica. A revolução neolítica que consistiu na descoberta daquelas artes da civilização que ainda estão na base da nossa existência, como a agricultura, a domesticação dos animais, a cerâmica, a tecelagem e, em geral, todo um conjunto de processos que permitem sociedades humanas, já não como nos tempos paleolíticos, para viver do dia a dia, à mercê da caça e da colecta diária, mas acumular... ter um volante. Mas enganamo-nos se pensarmos que descobertas tão essenciais podem ter surgido de um momento para o outro, como que por acaso. A agricultura, para dar apenas um exemplo, representa um conjunto de conhecimentos e de experiências acumulados ao longo de gerações, transmitidos de geração em geração, antes de se tornarem efectivamente utilizáveis. Foi muitas vezes salientado que os animais domésticos não são simplesmente espécies selvagens que se tornaram domesticadas, que são espécies selvagens que foram completamente transformadas pelo homem e que esta transformação, que era a própria condição para a sua utilização como animais domésticos, deve ter exigido períodos de tempo e persistência, uma aplicação extremamente longa de experimentação. Mas tudo isto foi possível sem a escrita. Portanto, se a escrita é, ou parecia ser há pouco, uma condição de progresso, devemos, no entanto, estar conscientes de que certos avanços essenciais, e talvez os mais essenciais que a humanidade já fez, foram feitos sem a intervenção da escrita. [...] [...]
Não é de modo algum certo que as grandes
conquistas do Neolítico tenham ocorrido num só lugar, e
num só tempo. É mesmo provável que, sob certas condições, que também tentámos
determinar, o relativo isolamento de grupos humanos em pequenos vales
montanhosos, beneficiando de regadio natural, protegidos por esse isolamento
contra invasões de populações estrangeiras... Mas parece que, em várias partes
do mundo, as conquistas do Neolítico poderiam ter aparecido de forma
independente. Enquanto que, no que diz respeito à escrita, então, ao que
parece, ela é muito mais nítida. A aparência da escrita, no que diz respeito à
nossa civilização, era menos bem localizada. E então você tem que se perguntar
a si mesmo com o que está relacionado? O que aconteceu, ao mesmo tempo que a invenção
da escrita? O que veio com isso? O que, talvez, o condicionou? A este respeito,
é necessário fazer uma observação que me parece bastante marcante, é que o
único fenómeno que sempre e em toda a parte parece estar ligado ao aparecimento
da escrita, não só no Mediterrâneo oriental, mas na China proto-histórica e mesmo naquelas regiões da
América onde os rascunhos de escritos apareceram antes da conquista, A escrita
parece estar por toda a parte ligada à constituição de sociedades hierárquicas,
sociedades... Vamos simplificar muito... composto por senhores e escravos, e
sociedades que usam uma certa parte de sua força de trabalho para trabalhar em
benefício da outra parte. E quando olhamos para quais foram os primeiros usos
da escrita, bem, parece que esses usos foram essencialmente usos de poder. Foi
há apenas alguns anos que conseguimos decifrar algumas destas tábuas micénicas que tinham permanecido muito
enigmáticas e que representam, se não a primeira pelo menos uma das mais
antigas manifestações da escrita, na bacia do Mediterrâneo. É surpreendente que
estas tábuas sejam quase inteiramente dedicadas aos inventários de riqueza. São
catálogos de objectos preciosos. Que os textos mais antigos que possuímos se
encaixam facilmente em diferentes grupos. São leis. Estas são ordens de missão.
Isto é, em todos os casos, quer se trate do comando dos bens materiais ou do
comando dos seres humanos, em qualquer caso, a manifestação do poder de certos
homens sobre outros homens e sobre os bens materiais. [...]
Controlo do poder e dos meios desse controlo. E, em última análise... Veja
que seguimos um caminho bastante tortuoso. Partimos deste problema do
progresso. Reduzimo-lo à capitalização ou agregação de conhecimento. Isso até
nos pareceu possível apenas a partir do momento em que a escrita existe. E a
própria escrita parece-nos estar permanentemente associada, nas suas origens,
apenas à instituição de sociedades que se baseiam na exploração do homem pelo
homem.
Fonte: INVENTION DE L’ÉCRITURE ET SOCIÉTÉS DE CLASSES (Lévi-Strauss, 1959) – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para
Língua Portuguesa por Luis Júdice
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