sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A ACADEMIA DOS SOBREVALORIZADOS (VERSÃO Ysengrimus)

 


 2 de Agosto de 2024  Ysengrimus 


YSENGRIMUS
 — Tudo começa no magnífico filme Manhattan, de Woody Allen (1979). Um monte de personagens terciários e quaternários a preto e branco, muito ostensivamente, fazem a sua viagem, tagarela e snob, em todas as direcções. Entre outros, nesta arrogância de escritores de canetas atacada por Nova Iorque em 1979, duas destas personagens, Mary Wilkie e Yale Pollack, imaginaram uma Academia dos Sobrevalorizados (cujos detalhes encontrará no apêndice do meu post sobre este assunto). É a sua lista pessoal de figuras culturais reconhecidas como importantes, mas que consideram (nem sempre erradamente, diga-se de passagem) como sendo objecto de uma inflação de valor, na sensibilidade cultural e mundana do seu tempo. Isso, na altura, tinha-me feito cócegas particularmente. Então, no mesmo modelo, e no mesmo tom, decidi fazer a minha própria Academia dos Sobre-estimados. Em cadência, ao ritmo de um tempo que, como verás, já é o tempo de outro tempo, Ysengrimus alinha aqui (por ordem alfabética), doze académicos e doze académicas:

Aung San Suu Kyi. Política birmanesa com um historial de resistência e dissidência. Esta mulher lutou durante muito tempo contra a junta birmanesa e é vista como uma espécie de figura hierática que encarna tudo o que parece estar associado a uma vontade democrática ou emancipatória na Birmânia. No entanto, ela também se reconciliou com o poder com o qual foi confrontada durante muito tempo. Chegou a ocupar altos cargos e, ao fazê-lo, tomou medidas de Estado, nomeadamente contra as minorias étnicas do seu país. Com o tempo e o desgaste, acabou por se revelar uma política como qualquer outra, sem a aura carismática e semi-mágica que a tinha levado à proeminência. É uma figura institucional comum, nas condições particulares de um país emergente, com tudo o que isso implica em termos de compromisso, composição, cooptação e esquemas complicados, mas nada mais.

Joana Baez. Cantora da era da contra-cultura da segunda metade do século passado, grande companheira de Bob Dylan. Durante muito tempo, ela apareceu como a dupla feminina de Dylan, a diferença é que Dylan era um cantor e compositor prolífico, e que tinha substância. Dylan deixou um volumoso corpus textual e musical, enquanto Joan Baez foi mais uma intérprete, uma compositora, uma chansonnière, que assumiu, não sem brilho, as peças líricas dos outros e que beneficiou, em grande parte, da influência simbólica que a sua postura de acompanhamento dylanesco lhe tinha inicialmente dado. Por isso, Joan Baez tem sido vista demasiado como uma espécie de Bob Dylan feminino. E isso torna-a de facto sobrevalorizada. Ela ainda canta hoje, na casa dos oitenta, mas ainda em grande forma. Também rabisca desenhos que publica sem qualquer problema em pequenos livros, e sobre os quais brinca na televisão, sem obstáculos... porque o seu nome ainda é Joan Baez. Numa palavra, ele é um ícone cultural... percebida talvez como um pouco mais eminente do que era factualmente.

Roland Barthes. Um pergaminho cogitativo do qual não sabemos exactamente no que ele trabalhou. Escreveu sobre linguagem, sobre psicanálise, sobre Jean Racine, sobre não sei mais o quê. Este senhor é um pensador de quem é muito difícil identificar o que pôde contribuir... ao pensamento. Há alguém na Terra que seja capaz de resumir para mim qual pode ser a visão fundamental de Roland Barthes? Queridinho de uma época, ele falava de conotação e metalinguagem, mas, ao fazê-lo, apenas repetia um pequeno lote de clichés estruturalistas que já estavam lá antes dele, e aos quais ele não trazia muito de brilhante. O seu desenvolvimento sobre as Mitologias, que remonta aos anos marxistas dos quais insidiosamente se afastou mais tarde, é uma espécie de manifestação de sensibilidade jornalística rebelde, mas que permanece muito imprecisa em termos de extrair dela um pensamento eficaz. Quanto ao resto das suas coisas, perguntamo-nos um pouco a que corresponde e, acima de tudo, o que pode dizer intelectualmente convincente.

Denise Bombardier. Autora, comentadora televisiva, jornalista de direita. Todos a tomam por uma grande eminência, enquanto ela era acima de tudo a entrevistadora de príncipes, nada mais. A sua carreira começou como uma personagem-televisiva que fazia perguntas a todos os figurões políticos de uma época em que estavam a fazer espuma, indo perorar no seu set. Uma espécie de canadense Anne Sinclair, Denise Bombardier é exactamente o tipo de personagem que imagina que conhecer a notoriedade, e compartilhar o ar que respira, é ser um pouco do que é. Disse-lhe que esta senhora é muito de direita? Trabalhou até ao fim da vida num tabloide de direita de Montreal. Entre outras coisas, ela incomodou muito os pequenos sobre a língua francesa (especialmente os francófonos e francófonos fora de Quebec, aqueles notáveis livre-tituladores linguísticos, eminentemente respeitáveis... mas que ela desprezava copiosamente). Uma reaccionária acabada. A história terá, sem dúvida, memórias bastante esporádicas para cultivar em relação a esta figura.

Hélène Carrère d'Encausse. A sovietóloga dos anos dourados do anti-sovietismo primário em busca de um aval académico. Como esta senhora era, de facto, georgiana, decidiu-se, numa qualquer redacção parisiense, que esta semi-renegada seria o bardo ideal da URSS, da mesma forma que o único homem que tinha um carro se tinha tornado Comissário dos Transportes da primeira República bolchevique. Assim, produziu longos e demorados desenvolvimentos, desvendando os moscovitas até ao mais ínfimo pormenor. Escrevia tomos intermináveis tentando demonstrar, por a+b, que o urso vermelho soviético era invulnerável e que ia acabar por devorar o planeta e torná-lo completamente comunista. Toda a gente lia esses disparates, embevecida, e via neles manifestações muito precisas e articuladas de uma subtil perícia em sovietologia sonhadora. O declínio da União Soviética e o seu colapso efectivo não foram de todo previstos por esta especialista, excepto, claro, no último minuto, quando todos se aperceberam. Por outras palavras, o relatório da perita foi uma farsa completa, produzindo uma série de trabalhos copiosos e datados que ninguém voltará a ler.

Solange Chaput-Rolland. Política canadiana que utilizou o apoio feminista dos primeiros tempos para servir a reacção mais untuosa e o federalismo mais velado. Era uma mulher da classe média alta que ocupou alguns cargos públicos aqui e ali. Foi deputada e também senadora. Tornou-se cada vez mais reactiva, no final da sua vida, se possível. No início, era um membro ronronante do Partido Liberal do Canadá. Acabou no Partido Conservador do Canadá, confirmando, como tantos outros, que também ela era capaz de provar que os partidos políticos do Canadá têm famosas ligações subterrâneas que os ligam muito intimamente uns aos outros. Esta senhora é um caso típico de grande burguesa que não tem absolutamente nada a dizer, mas que é reconhecida como tendo uma vaga importância, simplesmente porque pertence à boa sociedade... e, portanto, à classe social de eleição. Caiu em grande parte no esquecimento, confirmando, se é que era preciso provar, que o traço distintivo da sua contribuição histórica foi o vazio. Na minha juventude, nacionalista e rebelde, era abertamente apelidada de Solange Ça pue le relent (Solange É uma merda).

Adrienne Clarkson. Mulher canadiana da comunicação social que exerceu o cargo de Governadora-Geral do Canadá. Nessa qualidade, teve de lidar com um fenómeno vivido por outros governadores-gerais canadianos: o de se ver abruptamente catapultada para o trono de vice-rainha do Canadá. Quando não se tem força de carácter suficiente (o que era o seu caso), a cabeça fica rígida. Ficamos completamente apaixonados, imaginando-nos uma pessoa muito importante e eminente só porque acabámos numa posição de pata-regal da opereta, onde a nossa comitiva se curva perante nós o dia inteiro. Adrienne Clarkson, por exemplo, chegou a acreditar que é muito forte, quando na realidade tem muito pouco para contribuir, intelectualmente ou não. As línguas bifurcadas que nunca perdem uma oportunidade de vos fazer sentir o cheiro fétido de alguns dos grandes burgueses, sussurram a quem quiser ouvir que Adrienne Clarkson se apresentaria da seguinte forma: Eu sou a Adrienne Clarkson e tu não és. Esta pequena lenda urbana dá uma boa ideia do quão oca, inepta e pretensiosa é a personagem.

Jean-Pierre Ferland. Cantor popular quebequense de menor interesse que começou a sua carreira esforçando-se para ser o pequeno Jacques Brel do Quebec. Na década de 1960, ele assumiu grandes ares franco-franceses e cantou baladas pomposas que se referiam a Chamonix, ao Garonne e ao General de Gaulle. Crooner encantador com ronronar e um bardo misógino intensivo, especializou-se em canções de pseudo-sedução onde, de facto, tratava as mulheres como qualquer coisa, ao estilo Jacques Brel novamente, mas sem a delicadeza e subtileza textual. Depois, viu americanizar o seu som. Lançou um álbum chamado Jaune (1970), que toda a gente ainda hoje adora e sobre o qual se desenvolveu toda uma mitolatria, quando na realidade é apenas um pequeno pacote de canções populares que foram colocadas em som por um discreto mas funcional estúdio americano. Este tipo de truque de produção era um pouco novo no Quebeque na altura, por isso foi uma espécie de surpresa, daí o desmaio sobrevalorizado que se seguiu. Ferland ainda está vivo. Continua a arrastar os pés. Os seus seguidores continuam a adorá-lo. Até se esquecerem dele.

Ella Fitzgerald. Aqui, estamos numa situação altamente complexa de sobrevalorização. Esta artista é uma das mais belas vozes que o século passado produziu. Mas ela não era realmente uma cantora de jazz. Quando ouvimos atentamente Ella Fitzgerald, percebemos que o seu modus operandi lírico não funciona como o de Billie HolidaySarah VaughanDinah Washington ou outras grandes figuras femininas do jazz. Na realidade, Ella Fitzgerald teria sido e/ou deveria ter sido uma cantora pop de alto vôo, como Barbra Streisand. Uma letrista talentosa, uma espécie de Celine Dion antes do seu tempo, Ella Fitzgerald tem uma voz bonita, clara, bem colocada, bem configurada, sólida e límpida. O único problema que esta senhora tinha era que era negra e, como muitos instrumentistas negros e crioulos da época, viu-se obrigada a tocar jazz... E isso é tudo o que ela poderia fazer, por causa da natureza segregada da vida artística americana. Por razões estritamente discriminatórias, Ella Fitzgerald, uma excelente vocalista, é de facto sobrestimada... como cantora de jazz.

Serge Gainsbourg. Músico e cantor dos anos yéyé que fez muito barulho no seu tempo e era muito sagrado. Uma personagem cheia de escândalos que se safava de tudo o que queria. E todos os lambe botas baixavam os olhos piedosamente, suspirando Ah, Gainsbourg... Incompreensível. Um dia, decidi tentar ter uma ideia informada do que este músico e cantor, cujas composições me tinham dito serem tão maravilhosas e as suas letras tão inebriantes, podia realmente produzir. Assim, arranjei a caixa das suas obras musicais completas, que ouvi várias vezes, com respeito e calma. Para ser sincero, não me deu nada. Não encontrei nada de particularmente interessante. Este presunto lívido, vulgar-chique, de cabeça quente e fala-barato corresponde, de facto, à mitologia pecaminosa, peidorreira e escumalha-hedonista de toda uma época. Mal envelhecido.

Paris Hilton. Herdeira (entre outros) do império hoteleiro Hilton. Famosa por ser famosa. Eis alguém que não faz nada da sua vida, em mondovisão. Já experimentou quase tudo. Já se envolveu em música pop, moda, arte e perfumes. Foi apresentadora de televisão, actriz e até condenada. Nada resultou muito bem para ela. Nunca conseguiu nada, apesar de se exibir ostensivamente em todo o lado. Assim, acabamos por ter uma personagem que chama constantemente a atenção para si e que funciona ostensiva e literalmente como uma espécie de borboleta social. Há muitas personagens assim. Cito-a como um exemplo, um entre muitos. O interesse particular de Paris Hilton reside precisamente no seu lado de herdeira, na sua faceta bem sentida de pluto-emanação. Rapidamente se percebe que este tipo de socialites, para usar a expressão americana, existe em pleno... graças ao dinheiro dos seus antepassados.

Jacques Lacan. Mais um caso destas canetas cogitativas pós-modernas, que se dão um ar extremamente ponderado e profundo, mas que, na realidade, não trazem muito de um toque decisivo. De qualquer forma, neste momento, é toda a psicanálise que começa a vacilar e a ser considerada como uma espécie de desventura especulativa duvidosa. E nós entendemos isso perfeitamente. É fácil supor que Sigmund Freud via o que eram os bloqueios e neuroses de Viena da primeira metade do século XX como bloqueios e neuroses universais. Nessa continuidade, Lacan escreveu um pouco de tudo e de outras coisas. Lembro-me de ter tido alguns debates bastante amargos em Paris quando estava a fazer o meu doutoramento (1983-1986) com rapazes e raparigas da minha coorte que juraram por este senhor, embora eu não conseguisse ver o ponto. E pedi-lhes pacientemente que se dignassem esclarecer-me o contributo do seu mestre e apresentar-me, num lenço, qual poderia ser o pensamento deste antigo Jacques Lacan. Nada acontecia naquele momento. Esta é uma indicação terrivelmente convincente do carácter claramente sobrevalorizado do personagem.

Charles Lindbergh. Aviador que atravessou o Atlântico sozinho, sem parar. Este facto tornou-o um herói popular nos Estados Unidos. Tornou-se depois um líder político bastante suspeito, remando de cabeça na direcção oposta à da História. Acabou por não contribuir muito, nem para a sua república, nem para o resto do mundo. Este é o caso típico do herói popular temporário, totalmente anedótico, que foi intempestivamente impulsionado e promovido por acontecimentos da actualidade bastante emulsionados e cuja existência continua a ser mencionada em relatórios históricos, simplesmente para estar em sintonia com o que podem ter sido os movimentos da época. Aliás, outros aviadores tinham feito coisas antes dele, noutras circunstâncias, e já não se fala delas. Como político, personagem da actualidade ou aviador, Charles Lindbergh pouco acrescenta à realidade de como e porquê as coisas acontecem.

André Mathieu. Um músico e compositor ronronante, mas precoce, que tem sido considerado o génio franco-canadiano da música sinfónica. O seu trabalho musical recuperou parcialmente na altura dos Jogos Olímpicos de Montreal (1976), um acontecimento mundial que está um pouco desactualizado hoje em dia e cuja música de fundo me pareceu particularmente pomposa e sem sentido na altura. Por isso, fiz um pouco de pesquisa, para tentar descobrir quem poderia ter composto este tipo de porcaria pesada e ter-se safado. Foi então que me deparei com um jovem génio num frasco de cristal, que supostamente iria refazer toda a música contemporânea e a musicologia. Mais um que não contribuiu com nada de muito significativo e que, tanto quanto sei, é muito pouco ouvido actualmente. Alguém consegue sequer cantarolar uma música do grande compositor André Mathieu? Não é possível, não vai acontecer. Ele só é grande e extraordinário nas páginas amassadas de velhas enciclopédias.

Marilyn Monroe. Actriz norte-americana que tem sido alvo da mitificação mais intensa que se possa imaginar. Marilyn Monroe representa o epítome do que é ser sobrevalorizado. É uma sobrevalorização como uma das Belas Artes. Esta senhora tornou-se um grande símbolo cinematográfico e cultural. E podemos considerar que a sua personagem está agora permanentemente configurada como uma das figuras icónicas importantes e instantaneamente reconhecíveis do século XX, juntamente com o Rato MickeyElvisSuperman e O (Charlie Chaplin). No entanto, na realidade, Marilyn Monroe era uma actriz muito comum. Não sou eu que o digo, é (entre outros) o realizador Elia Kazan. Dirigiu-a em filme e explicou aqui e ali, a quem quisesse ouvir, que ela não era uma boa actriz. Estamos numa situação em que o carácter ampliado é tão sobrevalorizado que o que dele emana é nada mais nada menos do que uma espécie de misticismo etéreo, auto-sustentado, valendo amplamente por si mesmo. Marilyn Monroe, em si mesma, fez do fenómeno da sobrevalorização algo sublimemente especial. Curiosamente, pode ser considerada o estudo de caso fundamental.

Elon Musk. Bilionário e egomaníaco plutocrata, muito orgulhoso de si mesmo. Personagem altamente tóxico que sente que inventou tudo enquanto não inventa nada muito específico. O seu carro eléctrico não vai a lado nenhum. A sua companhia de foguetes voa em todas as direcções, excepto a certa. E ele está a colocar o Twitter no prego. Este é o caso típico desses espectáculos bilionários como tantos e geralmente sobrevalorizados no nosso folclore das cabeças de americanos loucos. O lote clássico de personagens serão malandros semi-suspeitos como RockefellerJ.P. MorganHenry FordWestinghouseHoward HughesSteve JobsBill GatesJeff Bezos e assim por diante. Quando um bilionário é tão visível e tão conhecido do público, é muito provável que isso não passe de uma manifestação de sobrevalorização. Os verdadeiros bilionários com poder real são pessoas completamente opacas, desconhecidas do grande público e de quem não se fala nos media. Elon Musk é um presunto vazio e o seu contributo histórico será profundamente insignificante.

Émile Nelligan. Um grande poeta franco-canadiano que se supõe ter revolucionado a sensibilidade literária do Quebeque. Na realidade, este senhor é um pequeno plagiador totalmente rabugento que não é de grande interesse intelectual e/ou poético. Este versificador semi-mundano produziu muito pouco, muito tarde, uma espécie de obra lírica pseudo-Baudelaireana, mal montada, que cheirava fortemente a verniz de balaústre velho e que, além disso, segundo algumas hipóteses de investigação literária, foi em grande parte escrita por outro homem. Nelligan... e o seu mito... foram especialmente favorecidos no Quebeque pelo sistema escolar. As escolas do século passado apoderaram-se do personagem. E fizeram-no girar nas suas turbinas e engrenagens, transformando-o numa espécie de falso génio totalmente irrelevante. Os compositores, também do século passado, envolveram-se. Musicaram alguns dos seus poemas, visando os atrasados mentais da primeira fornalha. O útil Nelligan não se resume a muito. A sua obra poética tem um interesse perfeitamente mínimo.

Robert Oppenheimer. O chamado pai da bomba atómica. Na realidade, este senhor não é o pai de muita coisa. Ele é simplesmente um físico que, como milhares de outros poilus terciarizados, fez parte do Projeto Manhattan. Sem interesse intelectual ou histórico particular. Muitas personagens como esta são engrenagens na roda. Fazem com que a estrutura funcione e, colectivamente, dão vida às invenções, sejam elas válidas ou sinistras. Esta personagem foi colocada no centro das atenções porque precisávamos de uma espécie de bode expiatório para nos entusiasmarmos com a má consciência atómica de uma época. Assim, fizemos dele uma espécie de anti-herói atormentado. Uma manifestação da crise de consciência de uma cultura silenciosamente imperialista que, em todo o caso, usava bombas quando precisava delas, pouco se importando com o resto. O possível inventor personalizado que ajudou a dar forma a estas máquinas infernais é uma personagem perfeitamente marginal e acidental, destinada a representar apenas uma nota de rodapé no grande desenvolvimento histórico e civil das coisas mais cinzentas e tristes. O imperialismo e a guerra são um poderoso viveiro de capangas sobrevalorizados e de falsas eminências.

Nathalie Petrowski. Autora, jornalista, comentadora disto, daquilo e do resto, que nos exucrina os ouvidos com as suas considerações sobre quase tudo e outra coisa, há anos, até décadas. Em grande parte nepotizada (o seu pai e a sua mãe infiltraram-se na media do Quebec muito antes dela), como a Véronique Cloutiera Penelope McQuade e a Pascale Nadeau deste mundo, ela vê-se como nada menos do que o molho branco que flutua acima das massas. É o caso destas filiações dinásticas nos meios de comunicação social, que colocam na sela pessoas que não têm nada a dizer e que arrastam os seus chinelos antiquados, muito depois da idade em que os nossos patrões nos reformam, a baixo custo. Como estes parasitas mediáticos sobrevalorizados têm um enquadramento e origens, conseguem sobreviver e impor-nos a sua presença inepta. E depois, são eles que nos falam da sacrossanta meritocracia de que tão abertamente se esquivam. Sobrevalorização por descendência. A saída histórica para este tipo de carácter será o esquecimento compacto.

Popeck. Humorista francês de pouco interesse. Nunca percebi o que é que este tipo podia fazer ou dizer que fosse engraçado. Todas as suas anedotas são sem graça. Não tem um impacto especial em nada e não avança nem um bocadinho as principais leis do riso, da comédia ou da farsa. Já está bastante velho. Já foi actor (teve um papel secundário aceitável no excelente Rabi Jacob, 1973) e depois começou a fazer stand-up comedy. A sério, vi-o várias vezes na televisão francesa nos anos 80, e é muito aborrecido. Não nos faz rir, não tem piada, não tem sentido. E, no entanto, toda a gente fica tão entusiasmada com ele. Dizem que é uma forma de humor extremamente subtil e fina. É tão subtil e fino que me escapou completamente. O Popeck está a dar na televisão. Arranjem-me uma almofada depressa, estou quase a adormecer. Quando o Popeck exclama, verbalmente, po-po-po-peck, eu respondo, mentalmente, pas-pas-pas-drôle (não-não-não-é engraçado). E é tudo o que há para fazer.

Ken Russell. Um cineasta decadente, profundamente inspirado pelo rock e por muitos fenómenos curiosos e bizarros, no mesmo registo. Mais uma vez, ele é um senhor que foi muito falado, sobre quem ficamos muito animados, em determinado momento. Está um pouco desbotado e esquecido hoje. Mas houve um tempo em que as pessoas juravam por Ken Russell, mesmo que o seu cinema não fosse de particular interesse. Eu vi Lisztomania (1975) quando foi lançado. É uma grande e fácil aventura, que vai em todas as direcções e apresenta um interesse fundamentalmente menor. E toda a gente ficou encantada. Este tipo de cineasta é muito mais notado pelo alarido que faz, pelo hype que utiliza, do que pela qualidade artística ou intelectual do seu trabalho. A única coisa que Ken Russell tem a seu favor é o facto de ter agora alcançado a posição que lhe cabe por direito e de facto: o esquecimento.

Diana Spencer. A princesa divorciou-se do príncipe Carlos (agora Carlos III, rei de Inglaterra e Canadá), que morreu acidentalmente e se tornou um ícone mundial. Na realidade, tudo o que temos aqui é uma senhora que, na vida normal, poderia ter sido, digamos, uma modelo ou supermodelo muito aceitável. Ela não era intelectualmente muito boa em nada, mas acabou por ser a bezerra do boi enfadonho que viria a ser o herdeiro da coroa inglesa. A personagem de Lady Di vai voltar periodicamente, na caprichosa dipolina da sobrevalorização, uma vez que, inevitavelmente, os seus filhos principescos e os seus toreiros continuarão a perpetuar a mitologia actual. Ela era tão amada. Era amada porque era bonita e porque sabia posar para os media. Uma concha vazia. Tenho a certeza de que qualquer pessoa que interagisse directamente com ela a nível interpessoal rapidamente se aperceberia de que era inepta, atrofiada e intragável. Portanto, este é um outro tipo de ícone, o ícone martirizado que se foi, a figura trémula que se viu despojada de uma posição de princesa mágica e acabou no terrível e duvidoso tumulto de um acidente de viação suspeito, num túnel mundano da cidade, na companhia de personagens bizarras. Francamente, o que posso dizer para além de... cortina.

Madre Teresa. A imagem absoluta da santidade, da devoção aos Babis (nossa foto, acima) e a todos aqueles que sofrem. Esta senhora é vista como tendo salvado vidas, instalando dispensários em Calcutá e movendo-se para melhorar as particularidades pastorais do mundo. Esta é a versão cristã-caritativa de Gandhi, nada menos. Ora, infelizmente, quando se arranha um pouco a superfície, vê-se que ela era uma completa escroque, corrupta e comprada por todo o tipo de regimes suspeitos, com o dinheiro a fluir em todas as direcções, excepto na correcta. Quando este tipo de personagem for investigado por historiadores e não por jornalistas, perderá todo o seu brilho. Tornar-se-á claro que ela era, de facto, uma odiosa e uma completa maquinadora, que, no final, não fez nada de humanitário. Os seus dispensários eram mais um parque de estacionamento para os necessitados do que qualquer outra coisa. Uma figura indubitável e indiscutivelmente destinada a sofrer muito mal o choque da passagem do tempo.

Roch Voisine. Um pequeno cantor popular com um único êxito que ainda se encontra estagnado nos fragmentos da nossa memória. Um tipo bonito e antigo jogador de hóquei, que também apareceu em telenovelas sobre hóquei. É, de facto, uma figura sem qualquer interesse artístico. É um dos muitos representantes desta cultura pop que acaba por produzir tudo e mais alguma coisa em fábricas de salsichas, sem que haja nada de realmente decisivo ou significativo no meio da confusão. Mais uma vez, estamos a falar de uma personagem cuja memória dificilmente ficará gravada muito profundamente na consciência pata-histórica local com o passar dos anos. A voz é suave, a música lânguida, a letra romântica. É o suficiente para nos manter a sonhar durante um curto Verão. E depois dormir profundamente, com os dentes a bater, durante as três estações seguintes.

 

Fonte: L’ACADÉMIE DES SURÉVALUÉS (version Ysengrimus) – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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