Maurice Merleau-Ponty: [Sartre] disse-me qualquer coisa como isto. Quando
se fala de um acidente em que morreram cem, duzentas, trezentas pessoas. É
naturalmente muito comovente e ninguém pode escapar a essa emoção. Mas quando
se pensa nisso", diz ele, "quer sejam trezentos ou dois mortos, bem,
para toda a gente, é exactamente a mesma coisa. O número não tem significado.
Georges Charbonnier: De maneira nenhuma. Matar um homem é o fim do mundo.
E a bomba atómica não é mais assustadora do que a escarlatina ou um autocarro.
Isso é certo.
Maurice Merleau-Ponty: Aí está. Bem, quando se pensa assim, está-se o mais
longe possível, diria eu, do colectivo. Isso significa que um colectivo, um
grupo de pessoas, sempre lhe apareceu como uma soma de consciências, não é
verdade? Dez homens são dez destinos, dez vidas. E cada um é, de certo modo,
tanto como todos os outros juntos, sem os podermos contar. Nós dizemos... Não
se pode pôr os homens uns ao lado dos outros e contá-los, dizendo que são...
Num certo sentido, há tanta realidade e valor numa única vida como em quinze
vidas. Bem, esta... esta linha de raciocínio não é geralmente apreciada por...
por não-filósofos. No outro dia, lembro-me de ter entrado num cinema, e a
empregada estava a sentar-me. E depois, quando passámos para o lado em que
estávamos, cinco pessoas tiveram de se levantar. E se déssemos a volta ao outro
lado do cinema, só incomodávamos duas pessoas. E a empregada obrigava-me a
fazer estas longas distracções. Então eu disse-lhe, sem me zangar, claro,
disse-lhe: mas afinal, é igual para todos. E ela olhou para mim como se eu
estivesse a gozar com ela. Ela não percebia nada da ideia de Sartre. É
obviamente uma ideia estritamente individualista. Por isso é impressionante ver
que Sartre partiu daí.
(Maurice Merleau-Ponty, entrevista
radiofónica a Georges Charbonnier, 1959)
YSENGGRIMUS — Perguntamo-nos muitas vezes o que
é a metafísica, e é demasiado fácil reduzi-la a abstracções nebulosas,
distantes, sapientes, gerais e etéreas, enquanto a posição metafísica está
presente na instalação mais concreta das categorias filosóficas nas nossas
mentes. É aqui que Jean-Paul
Sartre e Maurice
Merleau-Ponty se empenham plenamente na metafísica, a propósito do ser
humano. O que é exactamente esta posição metafísica? E, sobretudo, o que é que
ela significa? Ora, significa que os nossos dois pensadores burgueses, no seu
malabarismo explicativo sobre o problema emocional da morte acidental, isolam a
quantidade de seres humanos do conjunto das suas outras características. A
metafísica é um pensamento que separa, que isola conceptualmente as categorias
filosóficas, e que hipertrofia (quase sacraliza) o elemento valorizado e
brandido do momento. Aqui, é suposto tudo se resumir ao destino
único de indivíduos isolados, mónadas.
O ser humano que morre num acidente ou que vai sentar-se num cinema é aqui separado, enquanto indivíduo egocêntrico, de todas as diferentes características que o determinam, incluindo, crucialmente, as características que surgem naturalmente daquilo a que Merleau-Ponty chama o colectivo. A consequência disto é que algo que acontece a um ser humano específico, como morrer subitamente, é tão completamente grave, problemático ou doloroso no caso de uma pessoa como no caso de duas, ou de várias centenas. Ao procedermos assim, ao destacarmos e exaltarmos o ser humano que morre, não nos envergonhamos de uma minimização algo simplista da diferença qualitativa entre uma bomba atómica, a escarlatina ou um autocarro, causas de morte humana cujas motivações e determinações, essenciais ou acidentais, são, no entanto, muito diversas. O doloroso juízo de valor que se faz sobre a morte de um indivíduo pretende ser um absoluto metafísico e, nesse sentido, o absoluto não pode ser ampliado por uma acumulação quantitativa do número de mortes. O absoluto é o absoluto. Não se pode inflaccioná-lo. Encontramo-nos, portanto, numa situação em que, dada como negligenciável, a categoria da quantidade é separada das várias particularidades da mudança qualitativa que provoca. Para ilustrar a dificuldade desta forma de proceder, em termos de raciocínio, podemos primeiro, antes de nos enriquecermos (reparem nesta palavra) com a sabedoria vernácula da empregada de cinema, pensar no dinheiro. Dizer que ganhar ou perder um dólar seria tão grave, ou tão insignificante, como ganhar ou perder cem ou dez mil dólares, é proceder intelectualmente como se a quantidade específica isolada... um dólar... fosse radicalmente independente da mudança qualitativa provocada pela acumulação quantitativa de dólares. O que parece perfeitamente concebível no caso da tragédia de uma morte humana, o que nos leva a supor, pelo menos a nível ético, que a perda de uma vida humana ou de algumas vidas humanas é tão grave como a perda de um grande número de vidas humanas, parece de repente extremamente bizarro no caso do dinheiro. É preciso ser Nelson Rockefeller para afirmar que a perda de dez dólares ou dez mil dólares é basicamente a mesma coisa. Mas porque é que isto parece insustentável, especificamente neste caso, o dinheiro? Muito simplesmente porque a função exclusiva do dinheiro é ser um indicador quantitativo, ou seja, algo que faz funcionar quantidades de bens, ao mesmo tempo que lhes confere inevitavelmente características qualitativas. No caso do dinheiro, essas características qualitativas só podem resultar da acumulação quantitativa, uma vez que o dinheiro não é mais do que um dispositivo de organização de quantidades. Se quisermos ilustrar a correlação directa entre as categorias de quantidade e de qualidade de uma forma límpida, quase trivial, basta pensar no impacto sobre a qualidade de vida da detenção de uma boa quantidade de dinheiro... as nossas sociedades funcionando como ainda funcionam.
Passemos à aarumadora do cinema de Merleau-Ponty. Antes de mais, esta mulher anónima é uma trabalhadora. Está portanto intimamente envolvida na plenitude dialéctica (e portanto não metafísica) dos problemas com que se depara. E, em segundo lugar, a designação de não-filósofa, abertamente utilizada por Merleau-Ponty para a descrever, sob o pretexto de que ela não pensa automaticamente como Jean-Paul Sartre no desenrolar da sua vida prática, parece-me completamente irrelevante e altamente inapropriada. Em vez disso, diria que esta empregada de cinema é, de facto, um pensador, um filósofo, como tu e eu, mas um filósofo dependente do pensamento comum, o que, neste caso, significa menos pensamento metafísico, formulado e limpo, do que pensamento dialéctico, activo e confuso. Isto significa que esta trabalhadora em acção, que não pode ser suspeita de hipertrofiar o cogitativo contemplativo e passivo, estabelece e reproduz, na sua mente, as relações de tensão que estão associadas ao jogo de ligações entre um grupo de cinco cinéfilos, versus dois cinéfilos. A empregada também formula e reproduz, na sua mente, as relações de conexões e tensões que se estabelecem implicitamente entre o próprio Merleau-Ponty, no processo de entrada no cinema, e as outras pessoas que ele está prestes a perturbar. Parece-me que vale a pena lembrar que uma empregada de cinema é uma especialista empírica neste tipo de questões e que, ao seu lado, nós, filósofos, somos pálidos neófitos quando se trata dos argumentos mais delicados com que ela se depara acerca das acções e reacções das pessoas que são empurradas e esbarradas num cinema, ocupando os seus lugares depois delas. Quando a empregada de cinema decide que só vai levar dois espectadores em vez de cinco, mesmo que isso signifique fazer com que o único espetador que entra no cinema com ela, e que tem toda a liberdade de se movimentar, percorra uma distância maior, pois bem, ela pesa as suas alternativas, sem que a mais pequena ratiocinação de individualismo entre na equação. Ela procede percebendo o grupo dos dois e o grupo dos cinco como duas massas qualitativamente distintas. Os egos individuais que compõem estas duas massas são, de momento, menos importantes do que as próprias massas, sejam elas de cinco ou de duas cabeças. É aqui que a mobilização deste exemplo por Merleau-Ponty é particularmente bem sucedida, do ponto de vista filosófico. A situação ordinária que ele evoca é diametralmente oposta à das mortes trágicas, quantificáveis sem resíduo, que Sartre comentava.
A empregada de cinema é aqui confrontada com um grande número de ligações qualitativas. E estas podem ser de qualquer tipo. Por exemplo, há uma série de riscos aleatórios. Se incomodarmos duas pessoas, reduzimos o risco de uma delas ficar excessivamente perturbada, ao passo que se incomodarmos cinco, esse risco pode tender a aumentar. Além disso, se incomodarmos duas pessoas, o pequeno ruído é menor do que se incomodarmos cinco. O impacto no resto da sala é alterado por estas escolhas. É bom que todas estas pessoas, incluindo o próprio Merleau-Ponty, que se vai sentar no seu lugar, tenham menos probabilidades de tropeçar ou de se incomodar com a massa formada pelo grupo de várias pessoas. Podemos também supor que a arrumadeira está a ponderar os seus riscos quando conduz este único espectador, ligeiramente comprimido, numa longa viagem à volta de todo o cinema. Ela supõe, ou pelo menos conjectura, que essa personagem será talvez um pequeno Sartrien bem-humorado que lhe evocará, sob uma metafísica intempestiva, a perturbação, integral e indiferente, de cada ego isolado, sentado na sua poltrona, como exclusivo de cada um e quantitativamente inerte... exprimindo, assim, a sua própria perturbação. Ela apercebe-se de que também tem de lidar com isso. Ela já viu tudo isso antes.
Sejamos claros. O carácter sartreano deste argumento, apresentado por Merleau-Ponty à empregada do cinema, reside precisamente no facto de implicar que cada indivíduo, no seu ego egocêntrico, será também completamente perturbado, enquanto mónada absoluta, como se estivesse a morrer, duas e/ou cinco vezes, de modo que a acumulação quantitativa destas perturbações seria desprovida de consequências qualitativas. Ora, Senhor Filósofo, isto não está de acordo com os factos. Na realidade dialética da existência, o que acontece é que uma acumulação quantitativa, incluindo uma acumulação quantitativa de seres humanos, é susceptível de ampliar qualitativamente a rede de conexões, incluindo a rede de conexões de resistência. É fácil perceber que a empregada de cinema não está lá apenas para permitir que o indivíduo Merleau-Ponty se sente num lugar confortável. Ela também tem de se certificar de que tudo está em ordem no cinema e de que não há incómodos, preocupações ou indivíduos excêntricos que resistam porque alguém se coloca à sua frente, ou por qualquer outro motivo. Autoridade pequena, discreta, não neutra, com mais responsabilidade do que poder, a arrumadeira de cinema está consciente de que a quantidade humana tem consequências qualitativas, num espaço onde a calma é necessária e o movimento deve ser reduzido ao mínimo. Ela zela para que as possibilidades qualitativas de alterar essa calma e esse consenso mínimo sejam também reduzidas ao mínimo. Para o conseguir, o número de pessoas perturbadas desempenha um papel qualitativo crucial. Assim, se esta trabalhadora não compreendeu o raciocínio de Sartre, é devido à imperfeição limitada, diria a limitação destilada, do pensamento sartreano, que tem, de acordo com o seu hábito irritante, a caraterística de isolar mais uma vez metafisicamente o ego humano, especialmente o ego filosofante. E de lhe dar uma amplitude monádica tão grande que a sua acumulação parece insignificante. Qualquer acumulação quantitativa, por mais pequena que seja, é susceptível de transportar raios qualitativos de todos os tipos. Este é o conteúdo dialéctico fundamental da correlação entre as categorias de quantidade e qualidade. E é isto, ao nível do princípio das categorias filosóficas, e muito antes de invocar critérios morais, éticos ou humanistas, que torna necessário ter em conta os colectivos, mesmo os pequenos colectivos, e mesmo num ambiente tão calmo, abafado, socialmente estabilizado e altamente incontestado como o de uma sala de cinema escura.
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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