YSENGRIMUS — Aqui estamos nós, no meio do nada, numa
aldeia provinciana não especificada, num pequeno mundo simultaneamente remoto e
íntimo, que gira em torno do colégio (fictício) de Sainte-Bernadette des Anges.
É uma França profunda, mas é também uma França moderna. É uma França
simultaneamente ancorada e fresca, que bebe grandes vinhos tintos e come pratos
com molhos, mas que também exclama mdr e #quelquechoseàsedire.
Esta França meio-terceirizada e meio-rural, cruzamento de todas as influências,
é também a ilha deserta de Les Joyeux Naufragés. O nome de Gilligan é
Aurore e o nome do capitão é Jean-Michel...
Neste espaço micro-urbano fechado, já não se é judeu ou árabe, boche ou
francês, burguês ou aristocrático, operário ou vagabundo. Juntamo-nos,
silenciosamente, numa demanda. É uma busca oculta, problemática, insidiosa,
semi-consciente. Nada mais nada menos do que a busca de um punhado de pessoas
comuns ousadas à procura da sua estrela. Mas não se passa grande coisa. Não há
armas, não há conspiração, não há assassínio (há uma certa sensação de
thriller, mas sem o assassínio e o crime - tenho de admitir que acho isso muito
satisfatório), não há um barulho especial. Quer seja antiquado ou modernizado,
o mundo para o qual estamos a olhar, com um olhar ligeiramente assustador, é
sobretudo um mundo de mulheres. Uma professora, a sua directora, uma das suas
alunas, duas senhoras idosas um pouco misteriosas e tão solidamente francesas,
com tudo o que isso implica da lentidão contemporânea.
Algo vai nascer. Mais precisamente, nascerá um romance. E, no entanto, o terreno é bastante seco. Dois velhos vivem na nostalgia do amor, um amor perdido após uma partida cheia de languidez, um amor prostrado, apaixonado e intemporal no quotidiano. Um casal que definha num multiculturalismo que perdeu o sal e o relevo está à beira da rutura. As mães solteiras (putativas ou efectivas) são um número incontável. A memória, o modelo de amor, é um pergaminho enrugado, um brigue que bate, um tremor da alma. Não conseguimos fazer voar os nossos patos selvagens nas águas límpidas das histórias de sucesso amoroso. São estes os tempos em que vivemos, que posso eu dizer?
E no entanto, pesado e ondulante como um ramo de tempestades, o romance
percola, a tensão amorosa vibra, a pulsão da atracção mútua retesa-se, a
justiça das fatalidades enraizadas reclama o seu insaciável nivelamento.
Estamos a falar de afinidades electivas 2.0. quando mesmo o regresso da
desilusão ainda encontra uma forma de enxame de animalescos. São bactérias,
claro, porque o velho Jean-Michel é imundo. Também há borboletas nos estômagos
e aranhas nos tectos. Tudo o que o vosso insectário sentimental pode
reivindicar. E, no entanto, o Jean-Michel barbeia-se de fresco. As mulheres da
nossa história estão a fazer as suas ligações progressivas. Os homens
recompõem-se. A vida continua. Uma miniatura permite-nos sentir o que é tão
vasto aqui, aqui mesmo.
O estilo de Johanna Petit tem uma deliciosa precisão vernacular. Também neste caso, nasce um velho romance. San Antonio deixou crescer a barba e deu uma palmadinha nas costas de Fred Varga. No processo, o thriller de pretexto ficou na sarjeta, como um mau preservativo inglês cuja fissura imparável não se quer medir. Mas estava estragado, o preservativo inglês na sarjeta, resultado do amor indescritível de Sana e Frédy. É por isso que Johanna Petit, com armas, expressões idiomáticas e bagagem, irrompe neste mundo. E ela veio ao mundo emergindo dele.
É mais do que abrir os olhos, é mudar a
forma como olhamos para as coisas, mudar o nosso ângulo de visão, Sherlock! Então
verás... a vida e as pessoas do quotidiano são muito mais incríveis do que na
ficção mais extravagante, penses o que pensares. Tudo pode acontecer na vida,
tudo mesmo. Na literatura, pelo contrário, a história está limitada à
imaginação, aos lugares comuns, ao ego do autor, às necessidades do guião e às
expectativas dos mestres, do editor e do público leitor. A ficção não é mais do
que uma imitação da vida encerrada num quadro. Mas a vida galopa, e a realidade
não tem interesse em parecer plausível...
Este romance liberta a vida. Liberta-a dos constrangimentos narrativos,
afasta-a da basinade das leis do género, afasta-a das obrigações das boas
maneiras verbais, e deixa sangue e lágrimas nas dobras diabólicas das suas
várias fendas e bolsos, para variar. É um romance pequeno, épico, de câmara ao
ombro, no sentido estritamente brechtiano da palavra... porque o que nos
acontece é pequeno, e é o pequeno que é grande.
Johanna
Petit, L’étoile des audacieux, Montréal, ÉLP éditeur, 2018, formats
ePub ou Mobi.
Fonte : https://les7duquebec.net/archives/232252
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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