sábado, 16 de março de 2024

UM FOGO, UMA TERNURA, UMA RISADA (Diane Boudreau, Marie Josée Gélineau)

 


 16 de Março de 2024  Ysengrimus 

YSENGRIMUS — Tal como na primeira colectânea analisada (Ici, tout simplement, 2005), os textos curtos e sóbrios da poeta Diane Boudreau (e da sua colega Marie Josée Gélineau, que assina aqui três textos) mobilizam essa formidável capacidade de se libertar do quotidiano, preservando um sentido puro e despojado de concretude. Vermo-nos desprender do mundo eclético e restritivo das trivialidades é o primeiro passo para a poesia.

 

Frivolidades

Descoberta

A minha vida

Raspado

O meu tempo

E o meu espaço

Por todas as ninharias

Que me incomodam

E envenenam

E desperdiçam

Os meus dias

Doces amigos

Quando tudo o que eu quero

Apenas amar-vos

E ser amado

Até ao infinito

(p. 32 – fonte tipográfica e paginação alteradas)

 

Nesta colectânea, são mobilizados valores poéticos mais antigos: a árvore, a terra árida do deserto, as musas, a voz nua, o canto das andorinhas, o Rio do Carvalho. Mas para além da variação madura das fontes de inspiração, o que nos fica é a dor silenciosa, a ferida de guerra, os fragmentos de estilhaços. Podíamos ficar a pensar na ferida, podíamos lamentá-la, podíamos deitar-nos. Mas nem pensar... lamentamos, mas estamos a recompor-nos. Vamos embora! Vamos lá!

 

Desolado (extracto)

Vá lá! Vá lá! Vá lá! Para o duche!

Como é suave e quente

A água vai correr

Na tua pele

Tranquilizando-te

Até à medula dos teus ossos

Sacode-te, sacode-te

Calça as tuas meias com flores

Ou às riscas ou às bolinhas

Rápido, fora!

Ainda resta algum ar...

Afia o focinho

E sente como é bom lá fora

Fora da tua toca.

(p. 16 - fonte tipográfica e paginação modificados)

 

E aqui estou eu, no meu corpo, tal como sou... Não trocaria o meu coração pelo de outra pessoa. E, no entanto, os médicos, com as suas infindáveis medidas preventivas, não desistem e não receitam nada de tranquilizador. É pena para eles. Nada me separará das minhas alegrias, da minha vida, da natureza da chuva... do amor. Estamos vivos, estamos a amar e, em todo o caso, o que é que havia antes?

 

Vivos

Como é que era

Antes

Antes de nós os dois?

Tenho demasiada areia

Nos meus olhos

Abro a porta

Para este jardim

Onde estávamos tão apaixonados

Lembro-me

A água era pura

E nós bebíamos

Com as mãos cheias

A todo aquele azul

Aquele azul celeste

Diante de nós dois,

Espantados, amando,

Como é que era?

Será que estávamos vivos?

(p. 48 - fonte tipográfica e paginação modificados)

 

Ao explorar a vida, a poesia aventura-se também a explorar a delicada interacção dos géneros. A fábula ou a moral (La grive et le tilleul), os aforismos (Pensées). Através de tantos canais, o que precisa de ser dito é dito. O que é, é. Esta felicidade está comprometida. Os constrangimentos da vida social fazem-na tropeçar. O novo amor nunca está assegurado. As ondas largas da vida deslocam suavemente os velhos amigos da rede de outrora para distâncias que se alongam impercetivelmente... 

A teia

Claro que sim

Não nos vemos muito

Escrevemos um ao outro com menos frequência

O tempo brinca com os nossos sentimentos

Mas todas estas ligações

Que me ligam a ti

Teceram

Uma teia debaixo dos meus pés

Que me mantém de pé

Mantém-me de pé

E o meu coração em frente

Vivo e bem

O coração nunca está só

(p. 56 – fonte tipográfica e paginação modificadas)

 

E depois - como a festa social obriga - entra em cena o mundo material, o fogo, as ondas, uma ostra de pérolas. Três irmãs atravessam corajosamente as estações, três pérolas sólidas de concretude marchando em direcção a um rio. E, oh, como esta dimensão sólida da irmandade é crucial em todo o processo. É ela que nos conduzirá na nossa viagem... e, em última análise, de volta às contingências e amplitudes da vida social, bem como ao companheirismo intelectual.

 

O livreiro

Em frente ao autor, o pintor

O encadernador, o joalheiro,

Ela volta a ser luz,

Imbuída de respeito e silêncio,

maravilhado

A cada obra de arte

Que ela toca

Com luvas de amor

(p. 23 – fonte tipográfica e paginação modificadas)

 

A mulher leva uma tareia. Ela luta. Resiste. Ela veste-se como uma renda. Não se trata de lhe dizer para se dobrar ou ondular. Latente, abrasador, há aqui toda uma reflexão sobre o sofrimento. Há também um reflexo do sofrimento, uma ondulação cintilante, como se, no fundo, fosse uma luz. Uma luz que arde, que instiga o tormento, que tortura. E tudo isto se agita, se joga, por baixo de uma superficialidade tão frágil.

 

Frágil

Contemplar

Olhos e sorrisos

E beber a luz

Sem querer agarrá-la

Porque ela pode fugir

Perante a beleza frágil

O humano... tão desajeitado

O sofrimento pode levar-nos à loucura

(p. 50 – fonte tipográfica e paginação modificadas)

 

Mas a luz também cura. Sobretudo quando é levada pelo vento das estações: Maio, Setembro. Todos estes elementos do mundo desempenham o seu papel na grande cura. Cada um tem as suas luzes e os seus espaços, um bosque de cicutas, um céu frio, os humores misteriosos do fim do Inverno. O tempo (como temperatura, como ciclo das estações, como avanço irreversível) faz o seu trabalho. Ele colocava patine e polia as nossas poderosas e silenciosas inteligências do mundo. E, ufa, precisamos mesmo disso. Porque há muita falta de inteligência neste mundo mau. E a filosofia e a busca da estética, que aqui se encontram com tanta doçura, têm-se deparado muitas vezes com a ininteligência, a crueldade e a estupidez.

 

Estupidez

Em todo o lado,

Está em todo o lado,

Na água, no ar e no fogo

Espreitando dentro de nós

Ladrando, mordendo e assustando

Como um cão raivoso!

Minha irmã ferida

Aqui estão as nossas mãos, os nossos braços, as nossas vozes

Para te embalar, para te consolar

Para vos dizer mais uma vez que ela está em todo o lado

Na água, no fogo, no ar e no vento

E até no sangue

Mais ignorante do que malvada

E desajeitada, e sem bússola

Ela é inquieta, ela tem pena

E cada um tem a sua vez

Aquele que magoa, aquele que consola

Quem desiste, quem perdoa

Minha doce amiga,

Para acalmar o barulho dentro de nós

Que nos perturba,

Vamos caminhar ao sol!

(p. 54-55 – fonte tipográfica e paginação modificadas)

 

Equilíbrio entre sabedoria e ardor, entre ontologia geral e consciência social, esta pequena colecção pretende continuar a dizer que o optimismo se ganha, se conquista, se deposita e se fermenta como um licor. A natureza alimenta-nos, mas nós aproveitamo-la e, ao fazê-lo, temos de estar atentos a nós próprios. Nem tudo é negro e nem tudo é cor-de-rosa. É preciso redescobrir tudo e nunca exagerar na serenidade.  Amour, est-ce la fin? (Amor, será o fim?) (Marie Josée Gélineau)

A coleção de poesia Un feu, une tendresse, un rire contém 40 poemas (37 de Diane Boudreau e 3 de Marie Josée Gélineau). Está dividida em três sub-colecções mais pequenas: En moi le silence (p 9 a 26), Dénouer l'âme (p 31 a 56), e Lumière guérisseuse (p 59 a 66). Seguem-se um epílogo de duas páginas intitulado Remerciements (Agradecimentos) (p 72-73) e duas breves notas sobre os autores (p 74). A colecção é precedida de um prefácio de Claude Hamelin (p 7), cuja mensagem principal é que: esta colectânea de poemas é uma verdadeira caixa de jóias! O livro é ilustrado com sete fotografias de paisagens (seis a preto e branco e uma a cores). 

Diane Boudreau, Marie Josée Gélineau, Un feu, une tendresse, un rire, Diane Boudreau, 2016, 68 p.

 

Fonte : https://les7duquebec.net/archives/232442

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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