A vitória da racionalidade é uma vitória a longo prazo. É esse o problema [...]. Não sei se existe uma Razão na História objectiva, na História tal como ela se desenrola. Mas penso que quando as sementes da racionalidade são lançadas, numa determinada questão, ela faz o seu caminho... faz o seu caminho. Temos muitos exemplos. E é desse tipo de confiança que estou a falar. Se têm a sensação de que, numa questão, têm uma resposta ou uma visão racional, então mantenham o vosso ponto de vista. Tentem partilhá-lo tanto quanto possível. Lutem por ele. E, no final, algo acontecerá. Deste ponto de vista, nada é inútil. Tudo o que pode ser feito, dentro de objectivos razoáveis, numa determinada questão, deve ser tentado. E se não o fizermos, se não tivermos essa confiança, só estamos a ceder aos impulsos irracionais que, de certa forma, ainda são dominantes... sendo que o principal impulso dominante é, afinal, o reinado do interesse privado, no seu sentido mais... mais... na verdade, mais cego... mais cego.
Alain Badiou, entrevista a Jean Comil, 2012
YSENGRIMUS — É com uma boa
dose de delicadeza sapiencial que Alain Badiou promove o
serviço intelectual e prático à racionalidade. Começa por retomar a noção
hegeliana de Razão Objectiva, de Razão na História, problematizando-a
discretamente. De facto, ele apresenta uma dúvida cautelosa sobre isso, dizendo
que pessoalmente, subjectivamente, não sabe se é possível concluir que há uma
vasta Racionalidade que objectivamente permeia a História. Alain Badiou, que é um filósofo
materialista, não está imediatamente pronto para brandir as grandes ideias
categóricas do idealismo objectivo e instalá-las, assim,
permanentemente, dentro da realidade, como se estivessem aí incorporadas. Como
produto prático, construído, ordinário e intelectual da acção colectiva humana,
a racionalidade não é o tipo de absoluto abstracto implacável que o sistema
hegeliano havia estabelecido. Pelo contrário, é uma questão recorrente e incómoda
sobre a qual precisamos continuar a pensar... e isso tem de ser mantido em
aberto.
A questão do serviço à racionalidade, aqui na obra de Alain Badiou, parece estar directamente
associada à acção, à intervenção intelectual ou social. E coloca-se de uma
forma profundamente dialéctica... mesmo no sentido antigo da palavra.
Observemos, em primeiro lugar, que Alain Badiou não identifica
mecanicamente a racionalidade com a verdade. Não se trata de decretar,
antecipadamente, que há uma forma clara e quadrada, simples e inequívoca de
explicar e problematizar o todo, e que é isso que deve ser imposto, e não
outro. Não, não é assim que funciona. A racionalidade é uma atitude
reivindicada. O seu estabelecimento e estabilização são adquiridos interactivamente,
e são conquistados socialmente. A vitória da racionalidade é uma vitória a longo prazo. Por outras palavras,
é uma viagem, uma viagem histórica, uma tribulação antiga, onde vamos encontrar ventos contrários
e atravessar oceanos complexos. A certa altura, em torno de uma questão, no
contexto de uma problematização, um corpo acredita que tem as alavancas da
intervenção racional. Mas esta convicção não está de modo algum assegurada. Ela
vai ter que brincar com a tensão, dar um passo à frente no palco do debate.
Acreditar que temos a chave é apenas o primeiro passo na conquista colectiva do
tratamento racional de um problema. A recomendação de tomar partido e agir em
conformidade é, por conseguinte, necessária, tanto com ousadia como com
prudência. Se acha que tem uma compreensão racional de uma situação. Vá em
frente, tome medidas, promova-o e algo vai sair. Isto é verdade em todo o caso,
sem rigidez nem dogmatismo, uma vez que, entre outras coisas, se a sua posição
for de facto irracional, inválida, infundada, baseada em pressupostos indevidos
ou afectos errantes, as outras intervenções do debate colectivo aparecerão e
impor-se-ão, ponderá-lo, racionalizá-lo, ou revê-lo e refazê-lo. E é desse debate
que emergirá a racionalidade, como resultado consensual, adquirido, não
imediato e, sobretudo, colectivo.
Defini noutro lugar em que consiste essa atitude crucial de pensamento e acção, que é a racionalidade ordinária. Trata-se dessa capacidade natural, mas adquirida, de correlacionar adequadamente o empírico com o não empírico, reorganizando, nas nossas mentes e na nossa prática, uma reflexão, em parte constativa e em parte especulada, do funcionamento do mundo. Sobre este ponto, digne-se observar a imagem do quebra-cabeça, que coloquei no final do artigo. O puzzle, incluindo o tipo de puzzle, este passatempo antigo, este brinquedo milenar, este gnoseo simplificado, é uma espécie de exercício prático de racionalidade. Muitas vezes, um quebra-cabeça é resolvido colectivamente. Representa o confronto permanente entre uma imagem empírica, uma paisagem, um objecto, a fotografia que proporciona ao puzzle a sua representação visual, e uma estrutura secreta, profunda, diáfana, organizada, que deve ser libertada e reproduzida, ligando as peças. A reflexão que temos sobre o objecto em que estamos a trabalhar é tactear no método, a fim de nos estabilizarmos adequadamente. E as peças do puzzle, na sua dimensão secreta e profunda, contradizem a imagem da superfície, que também tem a sua própria complexidade. Representa o confronto constante entre uma imagem empírica, uma paisagem, um objecto, a fotografia que fornece ao puzzle a sua representação visual, e uma estrutura secreta, profunda, diáfana, organizada, que deve emergir e ser reproduzida através da ligação das peças. Os pensamentos que formamos sobre o objecto em que estamos a trabalhar andam às apalpadelas, tentando encontrar o equilíbrio certo. E as peças do puzzle, na sua dimensão profunda e secreta, contradizem a imagem superficial, que também tem a sua própria complexidade. A racionalidade é precisamente o que nos permite resolver um puzzle, apesar dos desvios a que as várias facetas da sua aparência superficial parecem convidar-nos. Note-se - sobretudo neste pequeno modelo - que, tal como na ilustração, se faltar uma peça, o encontro mental entre o empírico e o lógico permitirá normalmente representá-la visualmente, sem a ver. O acto irracional por excelência é aqui representado por uma criança que corta algumas das peças do puzzle com uma tesoura, para as encaixar onde lhe apetece na superfície do puzzle, acreditando desajeitadamente que está a impor a sua vontade a um mundo que deve primeiro ser compreendido... e depois modificado. Esta criança tosquiadora não é de modo algum um ser insignificante. Está em todos nós, transbordando de afecto, de emotividade, de languidez, de raiva contida e de ardor pré-lógico.
Ordinária e prática, ou contemplativamente cogitativa, a viagem colectiva da racionalidade encontrará um grande número de armadilhas. No legado da história da filosofia, a maior parte dessas armadilhas são hoje destacadas pelos herdeiros intelectuais do irracionalismo. Há sempre muito gargarejo, na sala de aula ou no bar, para promover ideias irracionais. Sobre a invoque Nietzsche, Kierkegaard, Heidegger, Henri Bergson, Novalis. Plotino & Cossin. Você quer alguns, desde que você queira alguns, há alguns. Na realidade, porém, estamos perante um problema muito mais complexo do que o da simples instalação num campo filosófico. O programa racional deve desdobrar-se, não segundo uma dinâmica de escolástica filosófica, mas numa relação motora com o pensamento concreto e através de uma atividade sustentada, em abstração intermediária. Alain Badiou dá-nos um exemplo da manifestação da irracionalidade na vida ordinária contemporânea. Este é o caso terrível do carácter privado da grande propriedade. É completamente irracional, no sentido em que é diametralmente oposto ao funcionamento efectivo da vida cívica e da existência social. Se o capitalismo conseguiu resistir, arrastar-se, foi graças às lutas reformistas dos trabalhadores e das massas colectivas. Durante uma longa fase histórica, as massas apropriaram-se progressivamente de uma parte da propriedade pela força. E foi esta motricidade contraditória que manteve o sistema em funcionamento, apesar dos impulsos irracionais que o definem e o empurram para a sua tendência para o desequilíbrio. Se não se estabelece, voluntariamente ou não, este tipo de dinâmica contraditória no capitalismo, acaba-se por ficar preso a uma situação como a que enfrentou em 1929. O grande capitalismo cego vence. Apanha os bolsos de toda a gente, neutraliza os seus inimigos, empobrece as massas, enfia todas as mercadorias na mesma caixa de classe, sobe por cima dela e fica lá preso. Por ter ganho desta forma, perde. Mata a circulação do capital prático que a sustenta. Os colossais activos detidos por entidades privadas constituem um sério obstáculo à racionalidade das tendências económicas. Terão de ser colectivizados num dado momento, de acordo com um ou outro modus operandi. É a única maneira de os organizar racionalmente. Esse dia há-de chegar.A racionalidade do pensamento e da acção é uma dinâmica fluida. É um dispositivo fundamentalmente interactivo. É um resultado vasto das massas, prático, móvel, solto, sempre renovado. Não é algo inerte. Não é uma configuração mecânica e certamente não é um gesto livre de emoções, feliz ou teimoso. A racionalidade é algo que você adquire. É uma prioridade da visão de mundo que servimos e que envolve uma dimensão importante de tomar partido, portanto um corpo de crenças. Estas crenças são hipóteses, a serem verificadas ou falsificadas. Terão de ser ponderados e ajustados na interacção social. No início desta entrevista, Alain Badiou referiu-se, para exemplificar, às três guerras que foram necessárias para finalmente tornar as relações entre a Alemanha e a França mais serenas. Três guerras, duas das quais foram guerras mundiais, milhões de mortes, todas ao serviço de uma abordagem irracional, é um preço elevado a pagar pelo triunfo do equilíbrio saudável das coisas, grandes e pequenas, na Europa, se é que de facto é... Uma confusão desgrenhada, para chegar a um resultado que, em última análise, tende a ser racional. Podemos ver, citando este amargo exemplo, como que de passagem, que o custo da racionalidade pode ser muito grande... e que o serviço à racionalidade não é um dever fácil, simples ou óbvio. É por isso que Alain Badiou usa aqui a noção de confiança. É preciso confiar na racionalidade. Devemos continuar a servi-la e, se não o fizermos, capitulamos e, capitulando, renunciamos, a longo prazo, a uma configuração adequada da existência social. E aí, a porta está aberta para todas as possibilidades de excessos e todos os excessos. A riqueza desta observação reside no facto de a racionalidade não ser plana, linear, lisa ou inerte. Não está, de modo algum, isenta de uma relação de crise, de uma dinâmica de debate e, fundamentalmente, de uma motricidade de interação social. A racionalidade é fundamentalmente dialéctica. Ela emerge, ela emana. É uma imanência social e, ao mesmo tempo, transcende necessariamente o indivíduo. Não existe a minha racionalidade, a sua racionalidade ou a vossa racionalidade. Há uma racionalidade, fluida e sistémica, como resultado colectivo. E ela acaba por tomar forma, por um tempo, quando o debate, e sobretudo a acção correlaccionada com o debate, se estabelece, se configura, se põe em prática, se estabiliza, e entra na História.
Ousemos confiar na tese racional. O programa que apresenta está connosco
pelo menos desde o Neolítico (e talvez
até antes). A longo prazo, que
é a imensa torrente do desenvolvimento histórico, não cometeremos qualquer erro
em lutar por ela.
Fonte: Oser faire confiance à la thèse rationnelle, et la servir – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice
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