sexta-feira, 23 de junho de 2023

Classe operária... ou trabalhadores fragmentados? João Bernardo 2008

 


 22 de Junho de 2023  Oeil de faucon  

Classe operária... ou trabalhadores fragmentados?

13 de Abril de 2008

Por João Bernardo

(As legendas foram adicionadas por nós. Nem pátria nem fronteiras)

É frequente lermos e ouvirmos dizer que a classe operária já não existe. Esta parece ser a tese mais comum. Há quem chegue ao ponto de afirmar que os próprios operários já não têm razão de existir, porque o aumento colossal da produtividade, proporcionado pela tecnologia electrónica, permite dispensá-los de uma vez por todas. Hoje, o trabalho, como tudo o resto, tornou-se virtual. Mas, talvez felizmente para eles, os mercadores de novidades têm memória curta e não se apercebem de que estão a apresentar-nos como última moda certas teses que a história abandonou.

Um velho argumento

Muito antes da era dos computadores, na década de 1920, nos Estados Unidos, um profeta da tecnocracia, Howard Scott, defendia a ideia de que o crescimento inexorável da produtividade ultrapassaria de longe as oportunidades de emprego e de investimento e conduziria a um desemprego crescente. A mesma tese ressurgiu no livro de Arthur Dahlberg, Jobs, Machines and Capitalism, de 1932, onde ele argumentava que o progresso técnico criaria um excedente permanente de mão de obra. E em Novembro de 1936, Harry L. Hopkins, um dos principais arquitectos do New Deal, escreveu ao Presidente Franklin Delano Roosevelt para o avisar de que o desenvolvimento contínuo da produção, acompanhado pelo crescimento contínuo da força de trabalho, implicava "a perspectiva de um problema permanente de desemprego e pobreza em grande escala".

O argumento segundo o qual o progresso da produtividade condenava os operários ao desaparecimento foi, portanto, formulado no auge do fordismo, quando a economia se baseava em máquinas industriais que a electrónica e a informática não tardariam a tornar obsoletas.

Vê-se, portanto, que a base empírica desta tese é falsa, quando os seus defensores actuais invocam a diferença entre a electrónica e a indústria fordista. E vemos também que a capacidade preditiva desta tese é nula, porque à sua primeira formulação se seguiu, após a guerra de 1939-1945, um período sustentado de pleno emprego nos países mais industrializados, fenómeno tornado possível precisamente pela elevada produtividade das fábricas fordistas. 


Em vez de reduzir a mão de obra, os avanços da tecnologia eletrónica, como qualquer outro avanço tecnológico, conduzem certamente ao desemprego em sectores que dependem de tecnologias atrasadas, mas, ao mesmo tempo, abrem novos sectores que exigem uma permanente requalificação profissional.

Mesmo reconhecendo este facto e reconhecendo que os operários não desapareceram, nem estão em vias de extinção, alguns teóricos argumentam que isso não implica necessariamente que os operários formem realmente uma classe. Com alívio ou com nostalgia, anunciam o fim da classe operária.

O Legado da Segunda e Terceira Internacionais

É verdade que os últimos marxistas que restam continuam a mencionar a classe operária, mas para eles esta referência tem mais um valor moral ou sentimental do que um valor verdadeiramente prático. Os partidos que se reivindicam da tradição leninista reduziram - ou melhor, reduziram, porque hoje a sua expressão política é infinitesimal, se é que não abandonaram completamente o leninismo - a classe operária a uma entidade abstracta. Viam o partido como o representante político desta classe, mas não reconheciam que a classe em si tivesse qualquer estrutura própria independente do partido. Só o partido dava à classe operária uma existência real e, sem o partido, a sua existência era apenas potencial. Na prática, isto levou à transformação da vanguarda numa elite dominante. 
 


Esta metafísica política estava ligada a uma tese muito difundida nas organizações mais burocratizadas da Segunda Internacional e que a Terceira Internacional herdou acriticamente. De acordo com esta perspectiva, que via as forças produtivas do capitalismo como a base do socialismo, o objectivo do socialismo era simplesmente abolir a propriedade privada e substituí-la pela propriedade estatal; além disso, a tecnologia industrial e a disciplina prevalecentes nas empresas capitalistas podiam ser mantidas inalteradas no socialismo.

Foi em obediência a uma concepção deste tipo que os comunistas soviéticos, sob a direcção de Lenine, importaram para a Rússia o sistema taylorista e fordista de organização do trabalho. Sob a direcção de Estaline, expandiram-no muito para além do que, por vezes, poderia alcançar nos Estados Unidos.

Os partidos comunistas não viam qualquer contradição em afirmar que o poder político pertencia à classe operária e, ao mesmo tempo, privar os trabalhadores de todo o poder dentro das empresas. E, na realidade, não havia contradição, uma vez que o poder político não era exercido pelos trabalhadores, mas monopolizado pelos seus representantes, a burocracia do partido, que se juntou à tecnocracia das empresas para formar uma única classe de capitalistas de Estado. A reorganização económica da União Soviética no âmbito dos planos quinquenais foi o culminar deste processo, cujas consequências inevitáveis foram reveladas pelo estalinismo.

O marxismo ortodoxo atribuía uma função neutra às máquinas (enquanto tecnologia material) e à disciplina nas empresas (enquanto tecnologia humana), pelo que as relações estabelecidas entre os operários durante o processo de trabalho não condicionavam de modo algum a existência da classe operária enquanto entidade política.

Concepções deste tipo só podem ser sustentadas se a realidade social dos processos de trabalho for ignorada. As relações de produção, tantas vezes mencionadas pelos marxistas, incluem a forma de disciplina imposta aos trabalhadores no processo de trabalho e a forma de autoridade estabelecida pelos capitalistas no controle do processo de trabalho.

O terreno fundamental da luta de classes

Este era precisamente o principal terreno da luta de classes. A disciplina na empresa é o primeiro alvo da contestação dos operários, e a luta de classes reorganiza constantemente as relações de trabalho e o controlo do processo de trabalho. Em cada caso e em cada momento, a forma de disciplina em vigor na empresa constitui o elemento central de todo o sistema de relações estabelecido entre capitalistas e operários.

As grandes lutas sociais dos anos 60 e 70, tanto na América do Norte como na União Soviética e na China, mostraram que o taylorismo e o fordismo tinham esgotado as suas potencialidades como sistemas de controlo da força de trabalho. O capitalismo entrou então numa crise de produtividade cada vez mais profunda, que acabou por impedi-lo de responder a dificuldades que, noutras circunstâncias, não teriam colocado obstáculos significativos.

Esta esclerose tornou-se evidente em 1974, com a crise desencadeada pelo aumento do preço do petróleo. Foi então que os novos princípios de gestão empresarial e de controlo dos operários começaram a difundir-se progressivamente. Alguns autores referem-se à situação actual como "pós-fordista", mas como foi Ford quem primeiro aplicou sistematicamente o taylorismo à produção em massa, não vejo razão para não me referir também ao modelo de organização actual pelo nome de Toyota, que primeiro o aplicou sistematicamente e melhor o formalizou.

O sistema toyotista e a tecnologia electrónica que lhe está subjacente permitem o aumento das economias de escala, sem necessidade de concentrar fisicamente os operários no mesmo local.

Economias de escala e produtividade

As economias de escala são resultados obtidos quando o aumento do número de operários, do número de máquinas e da quantidade de matérias-primas é inferior ao aumento dos bens ou serviços produzidos. As economias de escala são um dos factores que impulsionam o crescimento da produtividade.

Qualquer dona de casa sabe que, se preparar uma sopa para três pessoas, não gastará três vezes mais esforço, tempo, gás ou electricidade do que gastaria numa única porção de sopa.

Para conseguir economias de escala, e não apenas para fazer sopa nas cantinas das empresas, mas em toda a cadeia de produção, o sistema fordista consistia em juntar, nas mesmas instalações industriais, milhares de operários, ou, nos mesmos escritórios, centenas de empregados, que operavam enormes conjuntos de máquinas, consumindo quantidades não menos colossais de matérias-primas. No fordismo, as crescentes economias de escala dependiam da concentração física dos operários nas mesmas instalações. Só podemos compreender a atitude dos sindicatos reformistas, dos partidos operários burocratizados e do sindicalismo radical e, mais tarde, das grandes vagas de contestação autónoma dos anos 60 e 70, se nos lembrarmos que milhares e milhares de operários se encontravam diariamente entre as paredes das mesmas instalações.

Electrónica e monitorização

O toyotismo encontrou uma forma de reduzir, ou mesmo evitar, este risco político considerável. A electrónica permite aos administradores da empresa centralizar a recolha de informações e a tomada de decisões, independentemente de qualquer contacto físico com os operários e de qualquer relação física entre eles. Os diferentes processos de trabalho específicos são integrados em grandes grupos, mesmo que sejam realizados de forma isolada e, por vezes, a milhares de quilómetros de distância. Desta forma, aumentam-se as economias de escala sociais sem necessidade de as aumentar em termos materiais.

Além disso, a tecnologia electrónica conseguiu realizar um feito sem precedentes na história da humanidade: a fusão dos sistemas de controlo e dos processos de trabalho. Até à data, os operários tinham de ser controlados por agentes especializados, que não só não podiam ser maltratados, como os seus salários representavam uma despesa considerável para os proprietários das empresas. Para ser minimamente eficaz e evitar aumentos de custos inaceitáveis, este sistema de vigilância exigia a concentração dos operários nas mesmas instalações.

A ideia era aplicar economias de escala à vigilância. Agora, no toyotismo, o simples acto de operar uma máquina electrónica ou um computador constitui uma forma de vigilância do trabalho. Já não há distinção entre trabalhar e ser vigiado. Mesmo quando dispersos, os operários permanecem sob o olhar atento dos seus empregadores.

Uma das preocupações fundamentais do toyotismo é limitar a concentração física dos operários, ou mesmo dispersá-los fisicamente, e ao mesmo tempo concentrar os resultados do seu trabalho através da tecnologia electrónica. Há muitas formas de limitar a concentração da força de trabalho, fragmentando-a e dispersando-a. Sem pretender ser exaustivo, mencionarei aqueles que me parecem ser os mais importantes. (Classe operária... ou trabalhadores fragmentados? Por João Bernardo, 13 de Abril de 2008)

Oito formas de fragmentar a força de trabalho

1) Ao contrário do sistema fordista, que se baseava numa especialização rigorosa, o toyotismo divide cada linha de produção entre diferentes equipas de operários, que desempenham múltiplas funções dentro de certos limites. Desta forma, mesmo quando a mão de obra está concentrada nas mesmas instalações, está segmentada.

2) Estes capitalistas tentaram, com sucesso, impor horários de trabalho flexíveis aos operários de todas as empresas. Isto permite-lhes impedir ou dificultar o estabelecimento de relações de amizade entre colegas, o que é prejudicial à formação de redes de solidariedade; mais profundamente, trata-se de desestruturar o velho colectivismo proletário, uma vez que a flexibilidade dos horários de trabalho torna praticamente impossível a existência de associações de bairro ou a realização de simples reuniões em cafés ou bares.

3) Em muitos casos, a rotação da mão de obra é extremamente elevada. Isto significa que uma grande parte dos operários permanece na mesma empresa durante muito pouco tempo, o que impede o aparecimento de laços sólidos de solidariedade. Os capitalistas preocupam-se apenas em manter na empresa uma pequena percentagem de operários altamente qualificados, para os quais investiram muitas horas de formação profissional e que não querem perder.

4) Às consequências nefastas da flexibilidade do horário de trabalho juntam-se as consequências não menos nefastas da elevada rotação de mão de obra provocada pelos contratos a termo e pelo trabalho a tempo parcial. Estas duas formas de contrato proliferaram nas últimas décadas, contribuindo simultaneamente para restringir as relações entre pessoas que trabalham episodicamente nas mesmas empresas e para isolar entre si indivíduos que participam nos mesmos processos de trabalho.

5) A disseminação da subcontratação está a conduzir à fragmentação física das empresas. Por um lado, as empresas concedem frequentemente autonomia aos departamentos e transformam-nos em unidades formalmente autónomas, introduzindo a subcontratação no que anteriormente pertencia a uma única esfera de propriedade. Por outro lado, é também comum que uma empresa, em vez de comprar outra, subcontrate serviços a esta última. Em ambos os casos, em vez de estarem agrupados em grandes estabelecimentos pertencentes a uma única empresa, os trabalhadores estão divididos entre as empresas principais e os muitos subcontratantes, embora as suas actividades façam parte da mesma cadeia de produção.

6) O que acabo de dizer sobre a subcontratação aplica-se igualmente ao sistema de franquia, muito comum, por exemplo, nos sectores da restauração rápida ou da lavandaria. A empresa-mãe permite que os pequenos patrões explorem filiais locais, mas impõe-lhes uma tecnologia, uma gama de produtos ou de serviços, um sistema de organização da mão de obra e um modo de tratamento da clientela que deve ser rigorosamente respeitado. Por outro lado, os pequenos capitalistas que aceitam o sistema de franchising vêem as suas despesas reduzidas porque beneficiam de uma tecnologia comprovada, de uma publicidade garantida e de um mercado fornecido pela empresa principal.

7) A fragmentação da força de trabalho resultante da subcontratação e do sistema de franquia assume proporções ainda maiores no sistema de "portage". Esse termo (em português, "terceirização") refere-se ao processo pelo qual uma empresa transforma alguns dos seus empregados em profissionais formalmente independentes, recontratando-os em seguida mediante o pagamento dos seus serviços. Na prática, o trabalhador "portado" fica totalmente dependente da empresa à qual vende a sua actividade, mas sem beneficiar das garantias que tinha anteriormente como empregado. A transformação do assalariamento em "portagem", que assumiu proporções maciças em certos sectores profissionais, conduz ao isolamento total destes trabalhadores.

Nos locais de trabalho onde antes se confrontavam com o empregador juntamente com os seus colegas, têm agora de o fazer sozinhos.

8) É preciso não esquecer que, nas últimas décadas, se assistiu à integração maciça de certos sectores da população no mercado de trabalho, nomeadamente das mulheres jovens, e à proletarização de actividades que, até há pouco tempo, eram apanágio das profissões liberais.

Não é a primeira vez que o capitalismo assimila rapidamente massas colossais de novos assalariados, mas, no final do século XIX e no início do século XX, fê-lo concentrando os novos proletários no mesmo ambiente físico e social. Desta forma, imigrantes de diferentes partes do mundo, falando diferentes línguas, rapidamente adquiriram hábitos idênticos e deram origem a uma cultura proletária comum. (Classe operária... ou trabalhadores fragmentados? Por João Bernardo, 13 de Abril de 2008)

Subcultura de massa e trabalho no domicílio

Hoje, passa-se exactamente o contrário, e os recém-chegados em massa ao mercado de trabalho capitalista, quando não são mantidos isolados, dispersam-se entre as empresas principais, as subcontratadas e as franchisadas, sem terem oportunidade de criar uma nova cultura proletária baseada, tal como a anterior, em vastas redes de camaradagem e solidariedade, e num confronto global com os patrões.

Como se isso não bastasse, e porque têm pouca confiança nos automatismos económicos e sociais, os capitalistas concentraram enormes esforços na disseminação de uma subcultura de massas baseada na ilusão da promoção individual. Este processo frustra duplamente a formação de hábitos e comportamentos comuns entre os novos elementos que compõem a força de trabalho.

Para coroar este processo, os ideólogos do capitalismo utilizaram toda a sua imaginação e anunciaram a utopia suprema: o trabalho seria realizado no conforto do lar, graças aos recursos electrónicos, em condições de máxima dispersão, e a gestão seria confinada aos gabinetes dos administradores, graças aos computadores, em condições de máxima centralização.

E, com efeito, o facto de o capitalismo actual multiplicar as formas de dispersão física e de fragmentação social dos operários, e de dividir as grandes unidades de produção em unidades mais pequenas, não o impede de desenvolver a concentração do capital, não só através dos métodos clássicos de aquisição, que dão origem a entidades económicas cada vez mais colossais, mas também através da multiplicação de ligações entre empresas que não envolvem relações de propriedade, como as alianças estratégicas, por exemplo.

Além disso, predominam hoje formas de concentração económica que dispensam a concentração da propriedade, a ponto de a empresa principal poder dividir-se em unidades formalmente independentes para melhor exercer o seu controlo económico sobre elas. (Classe operária... ou trabalhadores fragmentados? Por João Bernardo, 13 de Abril de 2008)

O papel do "just-in-time"

Um dos elementos-chave do Toyotismo é o sistema "just in time", que consiste em reduzir ao mínimo o número de artigos (produtos ou matérias-primas) armazenados em armazéns e em ajustar tanto o fluxo de produção às flutuações da procura como o tipo de produção às especificações da procura. Este sistema não se limita a reduzir os custos; tem uma série de outras implicações muito importantes para o processo operacional, mas gostaria de destacar aqui apenas uma delas.

No "just in time", é a empresa principal que dita o ritmo da produção aos subcontratantes e aos trabalhadores "portados"; pode fazê-lo facilmente porque a electrónica permite dispersar a recolha de informações e, ao mesmo tempo, centralizar a tomada de decisões.

A empresa principal determina o tipo de tecnologia a aplicar pelos subcontratantes e pelos trabalhadores "portados" e controla os resultados da aplicação desta tecnologia, em função da necessidade de adaptação da empresa principal ao fluxo e à natureza da procura. No entanto, apesar de estarem intimamente dependentes das decisões tomadas pela empresa principal, as empresas subcontratantes e os trabalhadores "portados" são independentes do ponto de vista da propriedade, com todas as responsabilidades inerentes a esta situação. Graças a esta forma de concentração económica, que não é acompanhada de uma concentração da propriedade, os capitalistas que dirigem as empresas principais apropriam-se da parte de leão dos lucros e podem transferir a maior parte dos fracassos para as empresas subcontratadas, ou seja, em última análise, para os trabalhadores destas empresas. Ao facilitar a proliferação de pequenas e médias empresas, este sistema agrava a dispersão física e a fragmentação social dos operários. Embora as empresas principais, bem como as muitas empresas subcontratadas e os trabalhadores "portados", estejam todos envolvidos nos mesmos processos de trabalho e produzam os mesmos bens ou serviços, os operários sentem-se ainda mais divididos e isolados.

Uma classe para capitalistas... mas não para os operários

Para os administradores da empresa, que controlam toda a rede de recolha de informações e de tomada de decisões, e que controlam também os procedimentos de vigilância electrónica, os operários existem como um corpo social unificado. Pode mesmo dizer-se que, no sistema toyotista, são os directores da empresa que asseguram a unificação social dos operários. Por outro lado, na medida em que o processo de trabalho os isola e dispersa fisicamente, os próprios operários já não se vêem, regra geral, como membros de uma classe social. Em suma, isto significa que os operários existem como uma classe para os capitalistas, mas não aos seus próprios olhos.

Podemos ver melhor as implicações deste paradoxo se o considerarmos em termos de auto-organização e hetero-organização. Tal como os mecanismos de exploração privam os operários do controlo do processo de trabalho e, portanto, da possibilidade de disporem dos resultados do seu trabalho, também os mecanismos de opressão os privam de qualquer controlo sobre as modalidades das relações que podem estabelecer entre si. Deste ponto de vista, defino a classe social dominante como aquela que consegue ditar os princípios de organização da outra classe - a classe dominada. Não se trata apenas de uma classe dominante com instituições como o governo, a polícia ou os tribunais. É muito mais do que isso, porque os capitalistas determinam até as formas de organização interna dos trabalhadores, e fazem-no mesmo em áreas que os trabalhadores consideram ser suas.

Remodelação de cidades

Podemos observar esta hetero-organização na remodelação urbana a que todas as grandes cidades têm sido sujeitas. Situados nas zonas mais antigas, com os traços mais distintivos que deram a cada cidade a sua originalidade, os antigos bairros operários estão a desaparecer. É um processo conhecido em inglês como gentrifying: por um lado, as fachadas dos edifícios são preservadas ou, se necessário, restauradas à sua configuração original, mas, por outro, os interiores são completamente transformados e modernizados. Os apartamentos são vendidos a bons preços aos membros das classes dirigentes, que adquirem assim o privilégio de viver nos centros e nas zonas mais populares da cidade. O mesmo fenómeno se passa com os cafés e pequenos restaurantes dos antigos bairros populares, que, devidamente renovados, oferecem à nova clientela uma mistura de sofisticação culinária e de recordações de um passado típico. Entretanto, os operários, expulsos dos seus bairros tradicionais pelos mecanismos económicos, são empurrados para os subúrbios, onde têm de começar do zero se quiserem criar redes de solidariedade, e fazem-no em condições particularmente difíceis porque, nas zonas periurbanas, prevalece um tipo de urbanização deliberadamente concebido para restringir as relações de vizinhança. Este duplo processo reflecte um reforço da coesão interna das classes dominantes e um enfraquecimento dos laços entre os operários. A hetero-organização dos operários neste quadro urbano é simbolizada pelos centros comerciais, que são lugares de socialização hegemonizados económica e culturalmente pelo capital. Se, no passado, os operários estabeleciam, nos seus próprios termos, relações directas de vizinhança e amizade nos bairros onde viviam, hoje passam uma parte considerável dos seus tempos livres nos centros comerciais, onde a sua presença é efémera, onde é impossível estabelecer relações estáveis e onde todos os tipos de contacto são condicionados por uma disposição intencional dos espaços que tende para a dispersão e a fragmentação.

No mundo actual, temos, por um lado, os capitalistas com uma coesão transnacional, consolidada por múltiplas organizações nacionais, mas também ligada internacionalmente e supranacionalmente por redes muito estreitas. Do outro lado, temos os operários que, na sua relação com os capitalistas, são dominados globalmente como classe, mas que estão divididos entre si e não lutam como classe. Esta dupla situação implica que, nas condições actuais, a classe operária tem uma existência meramente económica, como produtora de mais-valia e vítima de exploração, sem ter uma existência política e sociológica, como sujeito de lutas e base de formas de organização contrárias ao capitalismo.

Enquanto esta situação se mantiver, a resistência do capitalismo não será abalada, e aqueles que hoje evocam falsamente uma "crise do capitalismo" fariam melhor em tentar compreender a crise do anti-capitalismo.

A dupla situação da classe operária, presa entre a sua existência económica para o capital e a sua inexistência política e sociológica, tenderá a agravar-se nos próximos anos. Só a luta contra a exploração pode dar aos operários uma identidade sociológica de classe, porque só a esse nível é que encontram uma comunidade fundamental e estabelecem laços de solidariedade. Não estou a falar de dias gloriosos, de bandeiras vermelhas ao vento e de outros clichés; estou a pensar nos protestos mais banais e simples que preenchem o quotidiano daqueles que trabalham ao serviço dos outros. Como juntar estas acções, como utilizar estas experiências para reconstruir progressivamente uma existência e uma consciência de classe, numa situação em que as pressões que reforçam o isolamento e a dispersão são muito fortes?

A crise... do anticapitalismo

Isto explica, sem dúvida, a apologia da fragmentação das lutas defendida pela maior parte dos ideólogos pós-modernos. É verdade que, de um certo ponto de vista, essa atitude pode parecer sensata, porque actualmente não há nada que sugira a possibilidade de movimentos vastos e generalizados. Contra os instigadores de palavras de ordem clássicas desprovidas de sentido prático, os pós-modernos podem pelo menos invocar o facto de os seus apelos serem ouvidos. Por outro lado, vêem a fragmentação das lutas não como um limite a ultrapassar, mas como o objectivo estratégico a atingir. O seu ideal é criar um conjunto de guetos ligados entre si pelo mercado e tendo como linguagem comum o "politicamente correcto".

Se todos ficarem fechados entre espelhos e deixarem de usar palavras que revelem a persistência real dos problemas, como é o caso do vocabulário "politicamente correcto", e se o mercado se encarregar de satisfazer as necessidades da maioria, tudo correrá bem no melhor - ou no menos mau - dos mundos. Se há exploração, fala-se de cidadania. Se as mulheres são negligenciadas e recebem menos do que os homens, estabelecemos a igualdade no domínio gramatical e construímos uma sintaxe curiosa, cheia de barras, hífenes e parênteses, onde substantivos, adjectivos, artigos e pronomes aparecem nas suas variantes masculina e feminina. Se algumas pessoas são vítimas de racismo devido à sua cor de pele, são designadas pela origem geográfica dos seus antepassados longínquos. E se todas as discriminações continuam a existir, criam-se grupos, clubes e associações apenas para preservar os seus membros, isolando-os em comunidades de iguais, para que a sociedade no seu conjunto não mude nem um bocadinho. O mercado assegura as relações entre estas ilhas ideológicas e permite que elas se tornem parte integrante da sociedade capitalista em termos económicos fundamentais.

Multiculturalismo e consumismo

Os ideólogos pós-modernos esforçam-se por acentuar as clivagens culturais, étnicas ou sexuais que dividem os operários, ou vão ao ponto de inventar clivagens quando elas não existem na prática. Russell Jacoby observou com pertinência, em The End of Utopia: politics and culture in an age of apathy, que, mesmo quando a mundialização da actividade económica coloca os operários em situações idênticas, os pós-modernistas pretendem ocultar essa realidade apelando a especificidades culturais fictícias. E a indústria cultural capitalista segue alegremente as pegadas dos descobridores da pós-modernidade, colhendo os frutos financeiros e consolidando as condições sociais de reprodução do capital. Existe uma forte ligação entre o multiculturalismo e o consumismo. Num mundo em que as opções de vida dos operários são estritamente limitadas e em que a vida quotidiana de todos obedece a normas semelhantes, o multiculturalismo existe exclusivamente sob a forma de consumo dos chamados produtos - objectos ou serviços - multiculturais.

Chegamos assim ao paradoxo da situação actual, em que o capitalismo é dominado por grandes empresas transnacionais, geridas por uma elite que adopta uma mentalidade totalmente cosmopolita e supranacional, e em que os operários não só estão sujeitos às fragmentações criadas pelo sistema de administração toyotista, como também estão divididos por nacionalismos, regionalismos e todo o tipo de especificidades étnicas, físicas e culturais exaltadas não só pela má vontade da direita mas, pior ainda, pela boa vontade de uma certa esquerda. O grande problema hoje é partir de lutas fragmentadas com o objetivo de ultrapassar essa fragmentação. Este é o maior desafio que temos pela frente, e só nesta perspetiva poderemos definir uma estratégia de luta contra o Capital tal como ele é hoje - contra o sistema Toyotista de organização do trabalho.

João Bernardo

(Traduzido do português para a língua francesa para uma coletânea de textos do autor a publicar pela revista Ni patrie ni frontières).

João Bernardo é autor de várias obras, infelizmente todas inéditas em francês: Para uma teoria do modo de produção comunista (1975), Marx critico de Marx.  1977), Lutas sociais na China (1949-1976) (1977), O inimigo oculto (1979), Capital, sindicatos, gestores (1987), Crise da Economia Soviética (1990), Economia dos conflitos sociais (1991), Dialéctica da pratica e da ideologia (1991) Estado, a silenciosa multiplicação do Poder (1998), Poder e dinheiro Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial, Séculos V-XV, (3 vol.) (1997, 1999, 2002) ) (1997, 1999, 2002), Transnacionalização do Capital e Fragmentação dos Operários. Ainda Há Lugar para os Sindicatos? (2000), Labirintos do fascismo (2003) e Democracia Totalitária. Teoria e Prática da Empresa Soberana (2004).

Militante do Partido Comunista Português (1964-1966) e depois de um grupo maoísta (1966-1973), foi expulso de todas as universidades do seu país por razões políticas e exilou-se em França entre 1968 e 1974. Entre 1974 e 1975, foi um dos redactores do jornal libertário Combate, que apresentava entrevistas com activistas de comissões de trabalhadores que, na altura, ocupavam fábricas ou tentavam dirigi-las. Actualmente, vive e trabalha no Brasil. O primeiro capítulo do seu livro Transnationalisation du capital et fragmentation du prolétariat foi publicado no número 4-5 da revista Ni patrie ni frontières e pode ser consultado no sítio web mondialisme.org. Trata-se de uma série de conferências dadas aos trabalhadores da Central Única dos Trabalhadores (CUT), a principal central sindical do Brasil).

 

Fonte: Classe ouvrière… ou travailleurs fragmentés ?João Bernardo 2008 – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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