27 de Junho de 2023 Robert Bibeau
Por Le Temps Publicado
em 08 Maio 2023. Actualizado em 10 de Junho de 2023 18:29.
Para onde vai a França? Pergunta a Suíça.
A resposta errada seria ficar-se pela troça culturalista dos gauleses eternamente descontentes. A crise é política. Emmanuel Macron afirma-se como membro do "extremo centro", encarnado sucessivamente na história pelo Directoire, pelo Primeiro e Segundo Impérios e por várias correntes tecnocráticas saint-simonianas. É o último avatar daquilo a que o historiador Pierre Serna chama o "veneno francês": a propensão para o reformismo estatista e anti-democrático através do exercício cameral e centralizado do poder.
O contencioso das reformas é um sintoma do esgotamento
deste governo de extremo-centro. Há trinta anos que não faltam avisos, que as
sucessivas maiorias afastam com um aceno de mão, chorando o corporativismo, a
preguiça e o infantilismo do povo. Administrada de forma autoritária e muitas
vezes grotesca, a pandemia do Covid-19 serviu de teste de colisão para os
serviços públicos de que o país se orgulhava e que, para além dos seus
serviços, constituíam parte da sua identidade.
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Emmanuel Macron, com o seu estilo jupiteriano, está a exacerbar a aporia em
que a França caiu. Nunca houve nada de "novo" nele e a sua postura de
homem "providencial" é uma figura banal do repertório bonapartista.
Não consegue imaginar outra coisa que não seja o modelo neoliberal de que é o puro produto, mesmo que isso implique
combiná-lo com uma concepção pirosa da história nacional, algures entre o culto
de Joana d'Arc e a fantasia reaccionária do Puy-du-Fou. O seu exercício do
poder é o de uma criança imatura, narcisista, arrogante, surda aos outros,
bastante incompetente, nomeadamente no plano diplomático, cujos caprichos têm
força de lei, à revelia do Direito ou das realidades internacionais.
Seria cómico se não fosse perigoso. A proibição da "utilização de aparelhos sonoros portáteis" para impedir que os opositores façam barulho, o isolamento policial dos locais onde o chefe de Estado se desloca, o lançamento de campanhas de rectificação ideológica contra o "wokismo", a "teoria do género", o "islamo-gauchismo", o "ecoterrorismo" ou a "ultra-esquerda" são apenas alguns dos pequenos indícios, entre muitos outros, que não enganam o especialista em regimes autoritários que sou. A França está a juntar-se de facto ao campo das democracias "iliberais".
Um arsenal repressivo à disposição dos poderes que se seguem
Alguns clamarão por exagero polémico. Peço-lhes que reflictam, tendo em
conta, por um lado, a erosão das liberdades cívicas em nome da luta contra o
terrorismo e a imigração, pelo menos nas últimas três décadas, e, por outro
lado, os perigos que representam, deste ponto de vista, as inovações
tecnológicas de controlo político e a iminência da chegada ao poder do Rassemblement National, ao qual os
governos anteriores terão fornecido um arsenal repressivo que tornará
supérfluas novas leis destruidoras de liberdades.
Não se trata aqui de "boas" ou "más" intenções do chefe de Estado, mas de uma lógica da situação a que ele se presta e que favorece sem necessariamente a compreender. Macron não é Putin nem Modi. Mas prepara-se para o advento do seu clone em França. Na melhor das hipóteses, a sua política é a de Viktor Orban: aplicar o programa da extrema-direita para evitar a sua chegada ao poder.
No contexto do colapso dos partidos do Governo, um "bucaneiro" - para usar o termo de Marx para o futuro Napoleão III - apoderou-se dos despojos eleitorais quando Nicolas Sarkozy, François Hollande, Alain Juppé, François Fillon e Manuel Valls saíram de cena. Achou "inteligente", para continuar a citar Marx, destruir a esquerda e a direita "ao mesmo tempo", para se instalar no conforto de um confronto com Marine Le Pen. Mas Emmanuel Macron só foi eleito e reeleito graças aos votos da esquerda, ansiosa por afastar a vitória do Rassemblement national. O seu programa, liberal e europeísta, nunca correspondeu às preferências ideológicas de mais de um quarto do eleitorado, para além do número crescente de eleitores não inscritos e de abstencionistas, que põem em causa a legitimidade das instituições.
Um presidente cego e desdenhoso
Apesar desta
evidência, Emmanuel Macron, cuja formação e carreira o tornaram ignorante das
realidades do Estado profundo e que foi eleito pela primeira vez para a
magistratura suprema sem nunca ter exercido o mais pequeno mandato local ou
nacional, procurou fazer prevalecer a combinação schmittiana de "Estado
forte" e "economia sã", promulgando as suas reformas neoliberais
através de decretos, contornando os organismos intermediários e aquilo a que
chama o "Estado profundo" da função pública, recorrendo a consultores
privados ou a conselhos a-constitucionais como o Conselho de Defesa, reduzindo
a França ao estatuto de "nação
start-up" e gerindo-a como um patrão que despreza os seus empregados,
os "gauleses refractários".
Uma crónica: as panelas de Macron, mais um totem na panela de pressão
O resultado não tardou a chegar. O homem que queria apaziguar a França
provocou o movimento social mais grave desde o Maio de 68, os Gilets jaunes,
cujo espectro continua a assombrar a família Macron. Com a mão no coração,
Emmanuel Macron garantiu, no início da pandemia de Covid-19, que compreendia
que nem tudo podia ser entregue às leis do mercado. Em várias ocasiões,
prometeu ter mudado para acalmar a indignação provocada pela sua arrogância. No
entanto, provou imediatamente que era incapaz de o fazer. Manteve o seu rumo
neoliberal e formou uma aliança com Nicolas Sarkozy em 2022 para impor uma
reforma financeira das pensões, apesar da oposição persistente da opinião
pública e de todos os sindicatos, não sem ignorar as suas contrapropostas.
Perante o novo movimento social maciço que se seguiu, Emmanuel Macron fechou-se na negação e no sarcasmo. Reclama a legitimidade democrática, repetindo que a reforma fazia parte do seu programa e que foi adoptada por um processo institucional validado pelo Conselho Constitucional.
Uma realidade paralela
Só que: 1) Emmanuel Macron só foi reeleito graças aos votos da esquerda,
que era hostil ao aumento da idade da reforma; 2) o povo não lhe deu maioria
parlamentar nas eleições legislativas que se seguiram à eleição presidencial;
3) o projecto de lei dizia respeito aos "princípios fundamentais da
segurança social", que são de direito comum, e não a uma lei de
"financiamento da segurança social" (artigo 34º da Constituição), um cavalo
legislativo que permitiu utilizar o artigo 49. 3 para impor o texto; 4) o
governo resignou-se a este procedimento porque não dispunha de uma maioria
positiva, mas a ausência de uma maioria para o derrubar no final de uma moção
de censura; 5) o Conselho Constitucional é composto por políticos e altos funcionários
públicos, e não por juristas, e preocupa-se menos com o respeito pelo Estado de
Direito do que com a estabilidade do sistema, como já foi demonstrado pela sua
aprovação das contas fraudulentas da campanha eleitoral de Jacques Chirac em
1995; 6) o abuso do procedimento parlamentar suscitou a desaprovação de muitos
especialistas constitucionais e foi acompanhado pela recusa de qualquer
negociação social.
Como em 2018, Emmanuel Macron está a responder à raiva popular com violência policial. As violações da liberdade constitucional de manifestação, o recurso a técnicas policiais de confronto e a utilização de armamento militar que provoca ferimentos irreversíveis, como escoriações e mutilações, levaram a França a ser condenada por organizações de defesa dos direitos humanos, pelo Conselho da Europa, pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e pelas Nações Unidas.
Perante estas acusações, Emmanuel Macron afunda-se numa realidade paralela
e radicaliza o seu discurso político. Mal reeleito graças aos votos da
esquerda, incluindo os de La France insoumise, coloca esta última fora do
"arco republicano", cuja demarcação reivindica o monopólio. Vê a mão
da "ultra-esquerda" nos protestos contra a sua reforma. Justifica a
violência policial com a necessidade de combater a violência de certos
manifestantes.
Excepto que, mais uma vez 1) a recusa, recorrente desde a contribuição dos votos da esquerda para Jacques Chirac em 2002 e o bypass parlamentar do "não" no referendo de 2005, de ter em conta o voto dos eleitores quando este desagrada ou provém de uma família política diferente da sua, desacredita a democracia representativa, alimenta o abstencionismo deletério e incita à acção directa para fazer valer os seus pontos de vista, o que não foi sem sucesso no caso dos "Gilets jaunes" e dos jovens nacionalistas da Córsega, que obtiveram o que foi negado aos sindicatos e aos eleitos; 2) o incumprimento das decisões judiciais por parte do Estado, quando estão em jogo interesses agro-industriais, leva os ecologistas a ocuparem os locais dos projectos litigiosos, correndo o risco de se confrontarem; 3) a estigmatização de uma ultra-esquerda cuja importância está ainda por demonstrar é acompanhada pelo silêncio do governo sobre as agressões da ultra-direita identitária e dos agricultores produtivistas que multiplicam os ataques aos ecologistas.
"Não é preciso ser um black bloc para denunciar os excessos estruturais da polícia"
Não é preciso ser "Amish" e querer voltar à "luz das
velas" para questionar o 5G ou a incoerência do governo quando usa
granadas para defender mega-piscinas enquanto os lençóis freáticos do país
secam. Não é preciso ser um black bloc para denunciar os excessos estruturais
da polícia. Não é preciso ser de esquerda para diagnosticar a crescente
sobre-exploração dos trabalhadores, com empregos cada vez mais precários, em
nome da lógica financeira, para identificar o desvio de bens públicos em
benefício de interesses privados, ou para deplorar a "massa louca"
distribuída às empresas e aos contribuintes mais ricos. Também não é preciso
ser um cientista para perceber que o Governo Macron não tem amor pelos pobres.
A sua única resposta é criminalizar os protestos. Agora quer dissolver a
nebulosa Soulèvements de la terre, patrocinada pelo antropólogo Philippe Descola,
pelo filósofo Baptiste Morizot e pelo romancista Alain Damasio! Quando Gérald
Darmanin ouve a palavra cultura, puxa do seu LBD.
Nesta corrida precipitada, foi dado um passo decisivo quando o governo atacou a Ligue des droits de l'homme (Liga dos Direitos do Homem). Ao fazê-lo, o Governo Macron colocou-se voluntariamente fora do "arco republicano". Esta associação, que nasceu com o caso Dreyfus, é indissociável da ideia republicana. Só o regime de Pétain se atreveu a atacá-la. Em todo o mundo, são os Putins e os Orbans, os Erdogans e os Modis, os Kaïs Saïed e os Xi Jinping que fazem tais comentários. Sim, a França está a cair.
Fonte: Ces chroniqueurs qui personnalisent la dégénérescence de la société française – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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