9 de Setembro de
2022 Ysengrimus
Sua
Majestade é uma rapariga muito simpática,
mas
não tem muito a dizer...
Os
Beatles
.
YSENGRIMUS - A Rainha morreu.
Não sou particularmente monárquico, mas, sim, isto afecta-me. Primeiro, a falecida
Majestade, nascida em 1926, manteve nela algo do meu pai (nascido em
1923) e da minha mãe (nascida em
1924). Ambos os meus pais (que desapareceram juntos em 2015) morrem um pouco
uma segunda vez, em mim, com o desaparecimento da Rainha do Canadá. Esta
geração titânica da Segunda Guerra Mundial, os Gloriosos Trinta, o Vietname, os Choques
Petrolíferos e até o Millenarianismo estão atrás de nós agora, fantasmagoricamente
e tutelarmente. Os meus pais, e a sua rainha, eram gigantes em cujos ombros
ainda somos um pouco crianças quietas. O século XX acaba mesmo, mas agora, na
verdade, acaba de terminar, com a morte da Rainha do Canadá.
Sua Majestade falava francês impecável. A prova simples disso é esta
citação de um discurso que proferiu em francês em 1964. Parece-me que ainda há
razões para meditar sobre estas palavras de grande sabedoria real:
"Tenho
o prazer de pensar que há um país na nossa Comunidade onde me posso expressar
oficialmente em francês, uma das línguas mais importantes da nossa civilização
ocidental. Esta linguagem de clareza é um instrumento precioso ao serviço da
compreensão e estou certo de que a sua divulgação mais ampla e o aprofundamento
das suas riquezas só podem beneficiar todas as mentes e promover uma troca de
ideias mais frutífera."
Isabel II, Rainha do Canadá, Discurso na
Assembleia Legislativa do Quebeque, 10 de Outubro de 1964.
O colonialismo britânico, aquele em que o sol nunca se pôs, viveu. A
monarquia de Carlos III será uma anedota
ao jeito do Roc do Mónaco. Algo profundo termina aqui, imperceptivelmente, mas
radicalmente. A monarquia constitucional é, por si só, um mistério ondulante.
Escrevi um romance ternamente irónico sobre o assunto há alguns anos: LE ROI CONTUMACE (O Rei Contumaz). Basicamente,
mantemos o rei ou a rainha bem no lugar, mas despojamo-lo de todos os poderes. Fazemos
dele uma figura, imperial ou régia, mas vazia, oca, fatalmente convencional e
fútil, uma entidade espectral curando o mal dos reis inchados dos nossos
langores do Primeiro Mundo. Do ponto de vista dessa sensibilidade francesa, que
nenhuma força assimiladora jamais extirpará de mim e que sempre reivindico tão
impetuosamente, gostaria de explicar aos meus compatriotas anglo-canadenses, se
possível, o que normalmente se faz com um rei ou rainha quando ele ou ela não
serve mais. A França guarda, no seio de seu denso património histórico, todos
os cenários do destino do rei subvertido. Ou nós o executamos (Louis XVI —
1793), ou ele abdica (Charles X —1830), ou nós o depomos (Louis-Philippe
Premier — 1848)... é que temos motivações muito perversas, muito culpadas,
muito suspeitas e muito dolorosas. E quem sabe?
A motivação monárquia dos britânicos, dos australianos ou dos neo-zelandeses,
deixo-lha para eles. Que eles se expliquem, não é muito da minha conta. No
entanto, sobre a motivação canadiana, ainda tenho de ser um pouco responsável,
se é que alguma coisa. Para o Canadá, o monarquismo (constitucional, não é
eficaz, portanto) é um exercício fundamentalmente demarcativo. Primeiro a colónia,
depois o domínio, depois o grande país do tipo ronronante-vitorioso- simpático,
já não nos interessa tornar uma república clássica. O que querem, a República, no canto, são os
Estados Unidos. As armas, o sistema de saúde
privado, o plutocratismo desenfreado, a
geometria variável do proteccionismo, o imperialismo cínico, o teocritarismo
bem pensado, o militarismo elefantino, o empobrecimento
endémico, a falsa redenção
perpétua. Um pouco, também não muito, por uma vez... Sua Majestade era uma figura,
perturbadora, mas todos temos a certeza, pelo menos mitologicamente, que nos
permitiu, ano após ano, assumirmo-nos plenamente, nós canadianos, como civilização do
Novo Mundo, sem que nos questionem a cada curva dos trilhos se não somos, por acaso,
o 51º Estado americano.
Bem, no fundo, digamos a coisa como ela é, na minha qualidade de quebequense, para mim, a Rainha
ou o Rei de Inglaterra será sempre o monarca de uma força de ocupação. Para que
sinta o efeito traumático do facto de eu nunca ter saído da monarquia, enumero
simplesmente os meus reis e rainhas: Francisco I (seguido de um longo hiato), Henrique IV, Luís IV, Luís XIV,
Luís XV, Jorge III, Jorge IV, Guilherme IV, Vitória, Eduardo VII, Jorge V,
Eduardo VIII, Jorge VI, Isabel II e agora... uff... Carlos III. Pesando,
não me vai dizer. É o Canadá. Ter passado sob o jugo (eficaz ou putativo) dos
três maiores imperialismos modernos sucessivos: França, Inglaterra, Estados
Unidos. É uma lição de modéstia.
Mas de volta à dama do dia, que acabou de nos deixar. O meu filho Tibert-le-chat, que, na sua bela
formação universitária como humanista, tocou, entre outras coisas, na história
da Inglaterra, disse-me um dia: Já reparaste que alguns dos reis mais importantes da
Inglaterra foram rainhas (Isabel I, Vitória, Isabel II)? Até foram usados para
nomear grandes eras etno-culturais, era isabelina, era
vitoriana. Tibert-le-chat tinha visto bem. E ainda é outra coisa, no calibrado, que
os nossos Reis de França com a sua lei salica a duas voltas. Acredito que este factor
feminino, este factor rainha tem muito a ver com a realidade
empírica e mítica da monarquia constitucional. A rainha é uma figura hierática,
empática, gigantesca, para-patriarcal. A rainha é um rei divertido,
parlamentarmente gentificado, socialmente modernizado. A sua aparente
passividade, reserva estoica, silêncio tenso, estatura virginal (A Rainha Virgem
era o apelido de Elizabeth Première), coloca-a acima da confusão. Um rei
governa, residualmente, balbucia, bate. Uma rainha (uma verdadeira rainha num
só nível, não um regente ou consorte) reina. Poder-se-ia elaborar
longamente este ponto, muito inglês (o único regente da França que abordou
fugazmente esta subtil tendência política foi Anne d'Autricele, especialmente durante
a Funda
Parlamentar). Toda esta pompa simbólica é bastante excitante,
para o filósofo e para o semiologista, a propósito.
Muitos dos meus amigos franceses não entendem minha emoção atual, cheia de
tristeza enlutada. Eu, o marxista, o Mosqueteiro, o
libertário, derramei uma falsa lágrima de crocodilo pelo desaparecimento da
rainha da Inglaterra, esse autómato lânguido de bolsa vazia e sorriso
congelado, o quê? Mas, o nosso Ysengrimus, teríamos mudado? Atenção...
Atenção... Devemos medir a dimensão prática, prosaica, doméstica e vernácula
destas pequenas coisas. Primeiro, primeira observação: a morte de uma rainha
não é a morte da monarquia, é preciso uma margem, eu lhe digo. Isso vai
continuar, confuso agora, anedótico, falso, tablóide. E não são vocês, queridos
amigos da zona do euro, que vão bater na cara do tão pomposo príncipe Charles
na nota de vinte dólares. Que, esse tipo de símbolo, pesa, moralmente, numa
pequena bolsa cognitiva. Além disso, em segundo lugar, infelizmente, a rainha é
aqui seguida por um rei (Charles), que será seguido por um rei (William) que será
seguido por outro rei (baby George). A gente tem um século com caras sob a
coroa, aí, daqui pra frente... E eu,
a perda duradoura da figura feminina soberana, bem, isso afecta-me. Além disso,
não medimos totalmente os efeitos subtis e duradouros. E como o ocupante
anglo-canadense se vai aproveitar disso para não se aproveitar para romper o
vínculo monárquico, entenda um pouco a minha tristeza...
Deste ponto de vista, congratulo-me com o facto de o
Governador-Geral do Canadá (a nossa Vice-Rainha), Sua
Excelência Mary Simon, que vai enterrar
Isabel II em nosso nome, ser uma mulher. Neste ponto, pelo menos, vamos deixar
cair a palavra: Maple Leaf
Forever! E, além disso,
manter as mulheres nesta posição do chefe de Estado do Canadá vai, penso eu,
assumir uma importância renovada, a partir de agora... para produzir uma
espécie de eco local perpetuando o respeito que ainda sentimos um pouco pela
última Imperatriz da Comunidade.
Dos cinquenta e cinco estados da supracitada Commonwealth precisamente,
restam apenas seis países úteis com o Rei da Inglaterra como monarca (quero
dizer, por país
útil, simplesmente um país com dois milhões ou mais habitantes). Estes são: Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova
Zelândia, Papua Nova Guiné e Jamaica. Uma outra pequena meia-dúzia de
principados têm o Rei da Inglaterra como monarca, mas são confetes do império.
Não me parece que as Ilhas Cook, o Rochedo de Gibraltar, as Granadinas, o
Arquipélago de Pitcairn ou o Belize pesem muito naquilo que será o futuro da
monarquia britânica. Este último, note-se de passagem, está muito melhor
bloqueado na constituição colonial canadiana do que na própria do Reino Unido.
Neste último, seria, de facto, bastante prosaico abolir a monarquia. Seria
suficiente para um referendo simples como o Brexit com uma pergunta clara (É a favor ou contra a abolição da
monarquia britânica, sim, não?). Um sim de 51% seria seguido por uma lei
ordinária da Câmara dos Comuns e catrapumba, o Palácio de Buckingham
tornar-se-ia um museu nacional e o país mudaria subitamente o seu nome.
Note-se que, nestas circunstâncias, a família Windsor não perderia os
seus outros palácios, as suas quintas, os seus outros ducados e apanágios, ou
os seus outros reinos. Isto significa que Carlos III, ou um dos seus
descendentes, poderia perfeitamente manter-se rei do Canadá enquanto já não era
rei da Inglaterra. Pungente. Porque no Canadá, meninas, meninos, para destravar
a monarquia, levem o vosso saco de biscoitos, porque não se joga. Devemos
reabrir a constituição, obter o acordo de sete províncias ou 70% da população,
dois terços das câmaras, colocar tudo no plano, e não sei mais o quê. Duraria
pelo menos dez anos. O colonizado é mais tenso e apegado a essas coisas do que o
seu colonizador, é um facto tristemente conhecido.
Uma das minhas velhas tias, uma irmã mais velha da minha mãe que não falava
uma palavra de inglês, levantou-se e penteou o cabelo como a rainha da
Inglaterra. E Julie Papineau, no
passado, fez um pouco do mesmo truque, modelando a sua aparência na da jovem
rainha Vitória. A monarquia constitucional, especialmente nas suas versões
coloniais, sempre teve, de maneira bastante diáfana, imperceptível, essa
dimensão insidiosa de um conto de fadas suave contra um fundo etnográfico duro.
Hoje, o discreto e implícito palácio de cristal acaba de ser despedaçado. E
acima de tudo, não nos iludamos: ele não voltará. A roda da história acaba de
nos dar um grande golpe, ali, com um grande golpe simbólico.
Fonte: La reine du Canada est morte – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis
Júdice
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