RENÉ — Este texto é publicado em parceria com www.madaniya.info.
.
Texto
do discurso de René no colóquio Raddho de Genebra, 6 de Março de 2020,
(Encontro Africano para a Defesa dos Direitos Humanos), uma associação
pan-africana para a defesa dos direitos humanos fundada em 21 de Abril de 1990
em Dakar.
A Índia anunciou em 6 de Agosto de 2019 a revogação da autonomia
constitucional de Jammu e Caxemira (13 milhões de habitantes), bem como a sua
deslocação. Esta decisão explosiva colocou sob tutela directa de Nova Deli esta
região rebelde reivindicada pelo Paquistão.
Esta medida sem precedentes, preparada no maior secretismo pelo
primeiro-ministro nacionalista hindu, Narendra Modi, poderia provocar, a mais
ou menos longo prazo, uma revolta sangrenta no vale de Srinagar, de maioria
muçulmana.
Muitas pessoas nesta região do Himalaia são hostis à Índia e continuam
comprometidas com a sua autonomia, que prevalece desde o início da República
Federal Indiana há sete décadas.
O primeiro-ministro paquistanês disse numa entrevista a 11 de Outubro de
2021 que a ameaça de conflito sobre o território disputado em Caxemira
representa o "ponto de tensão nuclear" mais perigoso do mundo.
Imrane Khan descreveu a Caxemira administrada pela Índia como uma prisão ao
ar livre, acusando o seu homólogo indiano, Narendra Modi, de copiar a
estratégia de Israel, permitindo que os colonos adquiram terras no território
disputado, reivindicado tanto pelo Paquistão como pela Índia desde 1947.
"Dentro da comunidade internacional, a Índia goza da mesma impunidade
pelas suas tentativas de alterar o equilíbrio demográfico da Caxemira como
Israel goza nos territórios palestinianos ocupados", acrescentou o
primeiro-ministro paquistanês.
Uma retrospectiva desta disputa que envenenou as relações entre estes dois
países desde a sua independência da tutela britânica em 1948.
https://www.middleeasteye.net/fr/entretiens/imran-khan-interview-cachemire-inde-israel-palestine-occupation-pakistan-nucleaire
.
1 - A maldição da geografia
Uma região montanhosa do sub-continente indiano, Caxemira faz fronteira com
três potências nucleares – China, Índia e Paquistão – bem como o Afeganistão.
A disputa entre a Índia e o Paquistão sobre Caxemira desde a partilha levou
a dois conflitos armados em 1949 e 1965, além da guerra de 1971, que levou à
independência do Bangladesh.
Além deste conflito inter-estatal, desde 1989, houve uma revolta interna na
Caxemira que deixou dezenas de milhares de mortos.
.
A- China: o efeito surpresa
Brincando com o efeito surpresa, na sequência do triunfo da revolução
comunista, a China agarrou, sem disparar um tiro, as partes do território de
Caxemira localizadas na sua periferia para assegurar o seu hinterland (região
pouco povoada e agreste – NdT). Esta anexação ocorreu em meados da década de
1950, quando o exército chinês entrou na parte nordeste de Ladakh.
A Índia e o Paquistão não podiam oferecer a menor resistência ao mastodonte
chinês.
Em 1956-57, os chineses atravessaram uma estrada militar através da zona de
Aksai Chin para garantir uma melhor comunicação entre Xinjiang e o oeste do
Tibete. A Índia fez a descoberta tardia desta estrada na fronteira entre os
dois países, levando à Guerra Sino-Indiana de Outubro de 1962.
A China ocupa o Aksai Chin desde o início da década de 1950, além de uma área
fronteiriça de quase 8% do território, o Trans-Karakoram Tract, cedido pelo
Paquistão à China em 1963.
A presença chinesa é confirmada pelo desenvolvimento de infraestruturas de
comunicação. Desde 1957, uma estrada liga Xinjiang ao Tibete (Estrada Nacional
219 da China) e desde 1978 liga Xinjiang ao Punjab.
.
2 - Desvantagem quádrupla do Paquistão face à Índia
Muitos observadores tendem a acreditar que a Índia levou a cabo o seu golpe
de Estado em Caxemira com o incentivo dos EUA em retaliação pelo alinhamento do
Paquistão com a China no projecto OBOR e a passividade de Islamabad nas
negociações EUA-Talibãs em Doha com o objectivo de promover a retirada dos EUA
do Afeganistão antes da campanha de reeleição do Presidente Donald Trump, em Novembro
de 2020.
Com efeito, a revogação unilateral da Índia do estatuto de Caxemira não
suscitou, longe disso, protestos internacionais, na medida em que, do ponto de
vista comparativo entre os outros dois protagonistas do conflito de Caxemira, o
equilíbrio inclina-se claramente para a Índia devido a uma desvantagem
quádrupla sofrida pela "terra dos puros" contra o seu rival: política
geo-estratégica, histórica, de deficiência em termos de imagem.
.
A – Desvantagem Geo-estratégica
Se exceptuatmos o Afeganistão, que está fora da corrida devido à sua
dimensão, demografia e poder militar, a relação é claramente desigual entre as
três potências fronteiriças com a Caxemira.
Sendo a única potência nuclear da comunidade muçulmana, o Paquistão sofre
da sua inferioridade face aos dois Estados continentais da Ásia, China e Índia,
tanto do ponto de vista da potência militar, do poder económico, da dimensão do
seu território e da sua demografia.
Além disso, o Paquistão é agora apoiado pela China, da qual é um dos seus
principais parceiros no projecto "Novas Rotas da Seda" e deve
integrar o posicionamento da China no panorama internacional na sua estratégia;
A principal razão para o seu silêncio face à absorção da China de um pedaço de
Caxemira.
.
B- Handicap histórico
Aureolado da filosofia da "não-violência" iniciada pelo guia
espiritual da Índia e pai da sua independência, Mohandas Karamchad Gandhi, que fez
tombar o Império Britânico na Índia, a Índia é também um membro fundador do
"movimento não alinhado", o movimento emblemático do Terceiro Mundo,
impulsionando a independência dos povos colonizados na década de 1960-1970.
Por outro lado, o Paquistão, há muito o "guarda-costas" da
dinastia Wahhabi, foi membro efectivo da Rede aliança do campo atlântico no
âmbito do RCD (Cooperação Regional e Desenvolvimento), a organização sucessora
do Pacto de Bagdad, vulgo CENTO, (Tratado Central), o tratado central que
agrupa países muçulmanos não árabes (Paquistão, Turquia e Irão) e actua como
uma ligação intermédia entre a NATO (Europa-Oceano Atlântico) e a OTASE
(Ásia-Pacífico) e o seu ponto de apoio às suas guerras coloniais (Vietname,
África, etc.).
.
C- Desvantagem Política: Democracia contra Ditadura
A Índia, que se orgulha de ser a maior democracia do mundo, tem sido
consistentemente governada por civis, mesmo oferecendo-se o luxo de por duas
vezes impulsionar um muçulmano, o primeiro Zakir Hussein, para o cargo mais
alto, em 1969, vice-chanceler da Universidade Muçulmana Aligarh, que morreu no
cargo;
O segundo Abdul Kalam, em 2002, um cientista, além disso, ponta de lança do
programa balístico indiano e apelidado como tal de Homem-Míssil.
Por outro lado, o Paquistão tem sido governado por ditaduras militares
(Ayoub Khan, Pervez Mesharraf), cujo magistério foi intercalado com civis,
principalmente o clã Bhutto, Zulificar Ali Bhutto e a sua filha Benazir Bhutto.
É certo que os dois países têm sido palco de um sangrento acerto de contas dentro
da classe dominante. Na Índia, membros proeminentes do clã Ghandi: o próprio
Ghandi, bem como Indira Ghandi, filha de Pandit Nehru, que sucedeu ao seu pai
como primeiro-ministro. Mas as duas personalidades foram mortas por
co-religiosos num acerto de contas político.
Ao contrário do Paquistão, onde a eliminação da dinastia Bhutto foi feita numa
base sectária, na medida em que Zulficar era de fé xiita e, circunstância
agravante, a sua esposa iraniana, um crime imperdoável aos olhos dos rigoristas
wahhabi.
.
D- Desvantagem em termos de imagens.
O Paquistão serviu como base de rectaguarda para os talibãs, os
destruidores dos Budas Bamyan, um sinal de grande intolerância religiosa, e o
ataque aos símbolos da hiperpotência americana de 11 de Setembro de 2001.
"Guarda-costas" da dinastia Wahhabi, o Paquistão serviu também
como base de recuo para o seu potro, Osama bin Laden, líder da Al-Qaeda, a
organização terrorista islâmica de dimensão mundial, o seu último refúgio, onde
foi morto por um comando americano na sua casa, em Abbottabad, uma área
residencial do alto comando militar paquistanês.
Tantas desvantagens que levaram o Paquistão a levar a cabo uma revisão
decisiva da sua estratégia, optando por uma parceria com a primeira potência
planetária em construcção, a China, contra a Índia, agora 5ª potência económica
mundial, ultrapassando em 2019 as duas antigas potências coloniais do
continente asiático, Reino Unido e França, propondo mesmo, com a Malásia, para
trabalhar para a renovação do Islão. Uma postura nos antípodas de quase 70 anos
de rigor inqualificável, que valeu ao Paquistão a sua horrível reputação e
grande solidão no caso de Caxemira.
.
Epílogo: Existe alguém pior do que um carrasco, o seu lacaio!
Numa visita oficial à Índia em 24 de Fevereiro de 2020, o Presidente dos
EUA, Donald Trump, denunciou a cooperação indo-americana na luta contra o
terrorismo, numa tentativa de lisonjear o orgulho nacional da Índia como aliado
estratégico na Ásia; um potencial contra-peso para o poder chinês.
A declaração do presidente dos EUA ressoou numa opinião indiana escaldada
pela destruição dos Budas de Bamyan pelos talibãs, como o sinal do hallali
contra os muçulmanos em todo o país.
A sua profissão de fé parecia um pouco demagógica, na medida em que obscurecia
o papel dos Estados Unidos na instrumentalização do Islão como arma de combate
contra a União Soviética e o papel da "carne para canhão" atribuída
pelos americanos a grupos terroristas islâmicos: os Uyghurs contra a China, os
chechenos no Cáucaso contra a Rússia, os árabes afegãos contra a União
Soviética no Afeganistão, bem como a Al-Qaeda, o Daesh ou mesmo a Irmandade
Muçulmana na destruição dos inimigos da hegemonia americana, como parte da
estratégia da "faixa muçulmana", a faixa verde do Islão que circunda
os rivais dos Estados Unidos: China e Rússia.
Perus eternos da farsa da estratégia ocidental, os países muçulmanos,
especialmente o Paquistão, devem lembrar-se desta frase de um dos grandes
oradores da Revolução Francesa, Honoré Gabriel Mirabeau: "Existe alguém
pior do que um carrasco, o seu lacaio"!
Fonte: La problématique du Cachemire dans le jeu des puissances asiatiques – les 7 du quebec
Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice
Sem comentários:
Enviar um comentário